Lemann: pobres bilionários, criminalizados por ajudar a educação!
Pelas páginas da Folha de S.Paulo de hoje, somos informados da existência de uma nova classe oprimida no Brasil, a dos bilionários interessados em educação. A constatação é de Denis Mizne, que desde 2011 ocupa o cargo de diretor-executivo da Fundação Lemann. Está no último parágrafo da entrevista, sem espaço para o contraditório, a seguinte declaração: "Mas existem ainda alguns campos que criminalizam o aporte técnico e a influência da sociedade civil em políticas educacionais. São visões conspiratórias, como 'As fundações querem privatizar a educação pública'. Será que não fica claro que o nosso compromisso é com a educação pública?".
Como sofrem os empresários bilionários e seus prepostos! Para quem não é da área, um pouco de contexto: a entidade liderada por Mizne, como se sabe, leva o nome de Jorge Paulo Lemann, homem que por sete vezes chegou a ser considerado o mais rico do Brasil. Por causa de umas questões paralelas, como diria Chico Buarque, Lemann hoje é apenas o 3º mais multimilionário. Sua fortuna, de cerca de R$ 80 bilhões, aumentou R$ 3 bilhões mesmo com o pedido da recuperação judicial das Lojas Americanas, de que ele é um dos donos.
Vamos aos negritos. Começo pela "criminalização". De que crime são acusadas as fundações e institutos empresariais? E principalmente, por quais instrumentos se visa criminalizá-las? Não há notícia de que algum CEO dessas entidades tenha sido processado, preso, ferido por mordida de cão policial ou tido a cabeça aberta por um cassetete da tropa de choque, como ocorre com alunos e professores em protesto. Eles, sim, podem falar em criminalização. Mizne e seus pares, ao contrário, navegam bastante bem pelos círculos de poder.
São muitas as palestras no Congresso, as reuniões com o MEC, os cursos internacionais bancados para políticos e as confraternizações com tomadores de decisão. Uma das mais prestigiosas foi o "Encontro de Altas Lideranças", patrocinado pela Lemann em 24 e 25 de novembro de 2022, em Oxford, Reino Unido. As altas lideranças formavam um grupo eclético, que incluía do vice-presidente Geraldo Alckmin a Cláudio Castro e Romeu Zema, governadores de RJ e MG, professores de Oxford e deputados federais, de Tabata Amaral a Mendonça Filho, de ex-primeiros-ministros como Tony Blair a Silvio Almeida, titular dos Direitos Humanos e Cidadania. Anfitriões da reunião, Jorge Paulo Lemann e Denis Mizne não poderiam faltar.
A "criminalização" a que se refere, oriunda de "alguns campos" - a indeterminação do sujeito é conveniente -, descreve o conjunto de críticas contra a atuação dessas entidades. Vindas principalmente dos movimentos sociais e das universidades públicas, põem em relevo a falta de representatividade social das fundações e institutos empresariais, a excessiva ingerência que possuem sobre a gestão pública na educação, os questionáveis resultados obtidos pelos programas que patrocinam e a ausência de legitimidade para palpitar sobre o assunto.
As "armas" dos críticos são investigações acadêmicas, análises e artigos de opinião. O "tribunal de exceção" em que "criminalizam" Lemann e companhia é o debate público. É legítimo questionar, por exemplo, porque uma página nobre da imprensa, inteiramente dedicada à alfabetização, é entregue ao diretor da Fundação Lemann. Mizne não é especialista na área, não realizou pesquisas acadêmicas sobre o tema, não tem experiência em gestão de projetos de alfabetização. Talvez por isso se saia com uma metáfora ultrapassada sobre a questão: "Para uma criança analfabeta, é como se a aula fosse na China. Ela olha para a lousa, para os livros, e vê um ideograma que não é capaz de entender."
É um estereótipo. O tempo todo, crianças pensam e criam hipóteses sobre o funcionamento da língua, descobrem regularidades, aprendem uns com os outros e com seu entorno. São, portanto, sujeitos de saber, desejosos de aprender com professores que tenham conhecimentos didáticos adequados para entender onde estão e como auxiliá-los a avançar.
A imagem da aula na China, porém, é reveladora da visão de boa parte dessas entidades sobre a educação: alunos são tábulas rasas e é preciso uma solução que os faça aprender. Geralmente, uma bala de prata tecnológica - e importada, se possível. A Lemann investiu um bom dinheiro na versão brasileira dos programas Khan Academy (Matemática) e Learnzillion (planos de aula em todas as disciplinas).
Como não deu resultado, mudaram de assunto e hoje falam em formação do professor. O papel nunca é de um intelectual autônomo, mas do técnico que, tutorado, deve aplicar aulas previamente preparadas - adivinha por quem? Não há nada escondido, está na entrevista: "Entramos com apoio na formação dos professores e na produção dos materiais didáticos e da avaliação de fluência. Gradativamente, os estados vão assumindo esse processo."
É isso o que você leu: embora os estados tenham equipes técnicas concursadas, currículos próprios, programas de formação inicial e continuada, universidades com pedagogia e licenciatura, com oferta de mestrado e doutorado na área, material didático específico e que sejam a instância legítima para planejar e oferecer educação, na visão de Mizne, devem se submeter às soluções das fundações e institutos bancados por super-ricos. Caso se comportem direitinho, aos poucos podem operar sem a vigilância dos magnatas. Mas não ouse criticar, porque chamar isso de "privatização da educação" é "visão conspiratória".
Os adjetivos, aliás, são usados de forma binária e em profusão para desqualificar quem pensa diferente. "Conspiradores", "ideológicos", "atrasados". Já eles trazem "aporte técnico", "prioridades que fazem sentido", "evidências". É a clássica estratégia neoliberal de se fazer passar como discurso acima do bem e do mal e de rotular os dissidentes.
Tenho alguma experiência pessoal no assunto: logo após a Lemann assumir a edição da revista Nova Escola, onde eu então trabalhava, fui carimbado como "resistente a mudanças". Raquítica a tal resistência: rapidamente fui demitido. Em menos de cinco anos, a fundação conseguiu pulverizar aquela que já foi a segunda maior publicação impressa do país e acabar com seu jornalismo. Citar essa desimportante passagem biográfica pode render outro rótulo, o de "ressentido". Ainda assim, gostaria de finalizar tranquilizando a todos que nenhum bilionário sofreu maus-tratos, foi ferido ou criminalizado durante a escrita deste humilde artigo de opinião.
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