Para renascer, Santos precisa parar de se achar especial
Um homem de boné e regata, atarracado e algo gordo, desce apressado as escadas de saída dos portões 1/2 do estádio Urbano Caldeira. Usa óculos, aparenta 50 e poucos anos, tem o rosto vermelho e chora alto. Está sozinho. Quero apoiá-lo, ofereço algumas palavras ("Calma, faz parte") e um abraço lateral. Me arrependo no mesmo instante, maldito seja o inventor da camiseta sem mangas. Meu colega lacrimoso tem a pele besuntada, e, calor demoníaco daquele 6 de dezembro, de suor basta o meu.
Mais um lance de degraus e a massa das cadeiras sociais encontra as torcidas do setor Cosmo Damião. Estamos em fuga. Ainda há jogo, mas o goleiro João Paulo tem outros planos. Abandona o emprego, se lança ao ataque e deixa a meta vazia. Mal chega ao meio-campo e dá-se o óbvio. O gol de cobertura do argentino Lucero é a senha para sair voando do estádio. Acabou a paz armada entre a diretoria e as organizadas.
Estouram bombas, há confronto entre torcedores, e deles com a polícia. Um torcedor exibe o manancial de sangue vertido pelo rosto como salvo-conduto contra os cassetetes. Na rua Tiradentes, barulho de vidros arremessados, gritos, novas explosões. Disparamos sem olhar para trás, rumo ao Canal 2. Em sentido contrário, o ruidoso cortejo das TrailBlazers do Choque prenuncia a batalha campal que rasgaria a madrugada.
"O dia que sempre parecia impossível aconteceu", anuncia a voz em off do vídeo "O Santos vai renascer". Em tom épico, com imagens da torcida aos prantos e trilha sonora de "Jesus Chorou", dos Racionais, fala-se em "trauma", "ferida aberta", "sensação de morte", "clima de luto", "página mais triste da nossa história", "desespero", "angústia" e outras hipérboles negativas para se referir ao inédito rebaixamento.
Não me reconheço nesse melodrama. O Santos cair para a série B parecia "impossível" a quem? Impossível era encontrar um santista confiante de que o time já tinha se livrado do cadafalso ao chegar a 43 pontos. Na última rodada, apesar de só 3 das 27 combinações possíveis de resultado rebaixarem o Peixe, não havia sequer uma alma tranquila na Vila Belmiro. A história lhes deu razão.
A gestão Rueda fez força para cair, mas a quase certeza do "vai dar ruim" vem de antes. Em boa medida, somos produtos de nosso tempo, e as marcas que ele nos imprime, sobretudo durante a infância e a juventude, podem ser duradouras. Fui criança no final dos anos 1980, adolescente na década de 1990 e tenho uma tese: para quem foi forjado santista nessa época, a relação com o time sempre vai ser de desconfiança e cautela, às vezes de pessimismo e medo.
Exagero? Imagine o desespero de Rodolfo Rodriguez, o mítico arqueiro uruguaio, ao olhar para o então esburacado campo do Urbano Caldeira e enxergar a seguinte linha: Ijuí, Davi, Pedro Paulo e Luisinho; Celso, Antonio Carlos, Mendonça e Glauco; Edelvan e Osmarzinho. Foi com nomes desse quilate que o alvinegro disputou a Copa União de 1987. Não corria o menor risco de dar certo: em 15 jogos, apenas duas vitórias, penúltimo na classificação geral. Uma bênção que o rebaixamento só tenha sido oficialmente instituído no ano seguinte. Caso contrário, estaríamos na segundona de mãos dadas com o lanterninha do certame, o Corinthians.
Quando o assunto é desempenho pífio no Campeonato Brasileiro, o triênio 1987-1988-1989 não deve nada aos três últimos tenebrosos anos. À salvação por inexistência de descenso de 1987 sucedeu-se, em 1988, outra campanha lamentável: 18o lugar, a apenas 3 pontos da degola.
O ano seguinte foi ainda mais estranho. Novamente péssimo, o Santos era nome certo no "torneio da morte", um hexagonal que definiria os quatro rebaixados. Salvou-se por uma canetada: amparado por uma liminar na justiça comum, o Coritiba recusou-se a jogar com o Peixe em Juiz de Fora (o Couto Pereira estava interditado) em dia e horário diferente de outra partida decisiva para suas pretensões. O Santos foi ao estádio e venceu por W.O. Querendo demonstrar força no comando da CBF, um então novato Ricardo Teixeira resgatou o alvinegro e esmagou o revoltoso Coxa Branca com um rebaixamento sumário.
A coisa melhorou um pouco nos anos 1990, mas o vice-campeonato de 1995 parecia confirmar que nada, nunca mais, iria dar certo. Felizmente os títulos nacionais de 2002 e 2004, a Copa do Brasil de 2010, a Libertadores de 2011 e os 7 títulos paulistas entre 2006 e 2016 vieram desestabilizar essa crença. Mas há outras estatísticas inquietantes.
Das 37 edições do Campeonato Brasileiro desde 1987, o Peixe ficou, em mais de metade delas, naquela parte da tabela que a torcida apelidou de "Zona Santos" - a meiuca hoje equivalente ao espaço entre o 7o e o 14o lugar, onde nada de muito animador acontece. Em 1 a cada 3 Brasileirões brigamos no topo, e flertamos com o descenso em média em 1 a cada 8 torneios.
Não é ruim, nem muito espetacular. Na comparação com outros dois gigantes nunca rebaixados, São Paulo e Flamengo, nos saímos um pouco pior. Nas 21 edições da era dos pontos corridos, o Peixe terminou no bloco de cima em 7 ocasiões. O Flamengo, em 12, e o São Paulo, em 13. Ficamos na intermediária 11 vezes (o tricolor, 8, e o Fla, 5) e na rabeira em 3 ocasiões.
O São Paulo, embora tenha lutado contra o rebaixamento em edições recentes, nunca terminou o Brasileirão entre os 6 últimos. E o Flamengo, embora tenha cultivado uma relação abusiva com a segundona por 4 vezes, há 10 anos não termina entre os últimos e desde 2016 finaliza entre os 6 melhores. Ou seja: entre os sobreviventes, estivemos por mais vezes na prancha do pirata. Até afundarmos.
Volto ao vídeo da TV do clube e ao tom profético do narrador: "O clube que milagrosamente se tornou o maior do mundo mostrará novamente por que é tão sagrado". O extenso compilado de "perebices" que, assim como as glórias, também são parte de nossa história, autoriza perguntar: Qual o problema com a série B?
Soa patética a pintura da queda em ares épicos. Mais ridícula ainda é a proposta de aposentar temporariamente a camisa 10 (Neymar pediu o mesmo para a 11) ou, pior ainda, não jogar de branco. Suspeito que Pelé seria o primeiro a ajudar se estivéssemos na lama. Várias de suas atuações mais marcantes foram contra times pequenos (8 gols no 11 a 0 contra o Botafogo-SP em 1964, o gol antológico contra o Juventus, supostamente o seu mais bonito, em 1959). Vida que segue sem drama. Viemos do sofrimento. Vamos sem medo e sem soberba à 2ª divisão. Oxalá voltaremos. Enquanto isso, desfrutemos.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.