Rodrigo Ratier

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Opinião

As 22 falácias do vereador da CPI contra o padre Júlio Lancellotti

Falácia. O dicionário Houaiss registra dois significados para a palavra: "1 - afirmação inverídica; inverdade; 2 - qualquer enunciado ou raciocínio falso que entretanto simula a veracidade." Embora as lorotas em forma pura também estejam presentes nas campanhas de desinformação, são mais comuns as técnicas que constroem argumentos enganosos, mas aparentemente verdadeiros.

Quando o alvo é a Igreja Católica ou um de seus integrantes, as falácias costumam mobilizar o pânico moral - sentimento de medo diante de uma ameaça, seja ela uma pessoa má, doença ou catástrofe. No clássico "Chatô, o Rei do Brasil", Fernando Morais registra o episódio em que o magnata das comunicações Assis Chateaubriand ameaça destruir a reputação do arcebispo metropolitano de Belo Horizonte:

"- Se esse filho da puta continuar com essa conversa fiada, vou escrever um artigo nos jornais dizendo que sei a história dele. Vou dizer que ele estuprou a própria irmã. Chateaubriand não conhecia d. Antônio dos Santos Cabral e não sabia sequer se ele tinha irmãs, mas (...) se não fosse contido a tempo, ele [Chateaubriand] sem dúvida teria cumprido a ameaça - e o bispo que se arranjasse para desmenti-lo." Trecho de "Chatô, o Rei do Brasil", de Fernando Morais

O ano era 1933, mas poderia ser 2024. Pegue-se o vídeo que embasa o argumento do vereador Rubinho Nunes (União-SP) para tentar criar uma CPI que mira o padre Júlio Lancellotti:

"A CPI vai investigar as entranhas dessas ONGs que levam uma bagatela de dinheiro para simplesmente explorar a miséria [na Cracolândia]. Eu vou fazer um raio-x, vou fazer um exame nas entranhas desse sujeito. Todo mundo vai saber o que tem por trás do Lancellotti. Esse padre vai ter de prestar esclarecimento na Câmara. Vou arrastar ele pra cá em coercitiva, nem que seja algemado. (...) A atuação dele no centro de São Paulo vai ser investigada a fundo. (...) Vai saber o que ele faz na hora em que ele tá quietinho."

Vereador Rubinho Nunes (União-SP)

Rubinho é egresso do MBL (Movimento Brasil Livre), uma das organizações de extrema-direita que percebeu com mais agilidade quão facilmente as redes sociais podem ser instrumentalizadas pela desinformação. O MBL elegeu gente e provocou confusão. Agora, suscita menos paixões por conta de seu próprio farisaísmo - a queda do deputado Mamãe-"as ucranianas são fáceis porque são pobres"-Falei é o exemplo mais célebre. E, também, querendo ser otimista (ano novo, né, gente), porque talvez as falácias como estratégia de visibilidade tenham prazo de validade.

Desconstruída por intensa mobilização das redes - com outra chave discursiva, o padre Júlio também sabe manejá-las -, a proposta da CPI naufraga com a retirada de assinaturas para que ela se concretize. Quem sabe as pessoas são capazes de aprender, de tanto serem enganadas, ao menos nos casos mais farsescos.

Uma pequena contribuição nesse sentido é a lista de falácias, não exaustiva, compilada a partir de um vídeo em que Rubinho tenta explicar as razões do pedido de CPI. As aspas são do próprio vereador. Se o catálogo se parece com o do meu texto "Caso Patrícia: 20 estratégias bolsonaristas de difamação" não é por preguiça: a turma é repetitiva mesmo.

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  1. Mentira disfarçada: Negação de algo sabidamente mentiroso usando um complemento para evitar consequências legais ("eu nem citei o padre Júlio Lancellotti quando fiz o protocolo de abertura da CPI").
  2. "Sanduíche" de mentira: Enfileirar duas ou mais verdades e uma mentira, para que ela assuma ares de verdade. "ONGs e políticos esquerdistas distribuem drogas, cachimbos e seringas para usuários". Cachimbos e seringas são distribuídos como política de redução de danos para prevenir contaminação por doenças. Drogas nunca foram distribuídas por esses agentes.
  3. Vitimização: Mostrar-se como perseguido e injustiçado. "O establishment elegeu um novo fariseu [o vereador]", "Senti na pele a política de cancelamento".
  4. Falsa causalidade: Apresentar relação inverídica de causa e efeito. "Se a miséria não acabar, o financiamento dessas ONGs não vai acabar."
  5. Distorção do lugar de fala: Uso indevido de marcadores sociais para interditar a discussão. "Sou cristão e sempre apoiei a causa das igrejas."
  6. Apelo à emoção: Manipular os sentimentos do interlocutor para causar medo ou repulsa. "[As ONGs] dão cachimbo, dão seringa e deixam [os dependentes químicos] jogados ao relento."
  7. Falsa oposição: Contrapor duas coisas que não são alternativas entre si. "[Os esquerdistas] criticam a violência da polícia mas não criticam a violência do tráfico de drogas e dos ladrões que roubam celular."
  8. Generalização: Usada costumeiramente para reforçar estereótipos. "Pessoas roubam e furtam não é para se alimentar. Roubam para usar drogas."
  9. Neologismos: Invenção de termos para distorcer significados ou sublinhar rótulos. "Máfia da miséria" para se referir a ONGs, "bolsa-crack" sobre os pagamentos de bolsas a dependentes químicos.
  10. Simplificação da causa: Tentativa de atribuir causas simples a fenômenos complexos. "As ONGs distribuem marmitas para os usuários, os traficantes distribuem a droga. Aí cria-se um ambiente fértil para a cracolândia."
  11. Exageros: Afirmações superlativas sem lastro factual. "A indústria da droga [na cracolândia] cresceu de maneira exponencial."
  12. Oposição amigo X inimigo: Base estrutural do discurso populista. Visa, de um lado, criar inimigos; de outro, fornecer um alvo para a base de aliados. "A política simplesmente escuta as ONGs, os usuários de drogas e os militantes dos direitos humanos. Quando nós vamos ouvir os cidadãos que carregam as cidades nas costas?
  13. Bem X mal: Variação da estratégia amigo X inimigo. "[Você está do lado da] política séria que combate a cracolândia ou a política que simplesmente alimenta o tráfico?"
  14. Descontextualização: Omissão das circunstâncias que acompanham um fato. O vereador exibe notícias sobre aumento de furtos e agressões entre 2021 e 2022 na cracolândia sem relacionar as ocorrências, por exemplo, com o crescimento da criminalidade na cidade ou com o aumento do fluxo de pessoas na região por conta do arrefecimento da pandemia de covid-19.
  15. Espantalho: Simplificação caricatural do argumento contrário pela eliminação de nuances. "A esquerda continua romantizando os usuários de drogas", "A [ONG] Craco Resiste quer resolver o problema com futebol, cinema e pipoca."
  16. Ad hominem: Ataque ao argumentador e não a seu argumento. "[Lancellotti] é um padre ligado ao MST, ao PT."
  17. Desumanização: Negar humanidade a determinadas pessoas, reduzindo-as a uma ou mais características negativas. "Cracudos, pessoas viciadas e noias entregues à morte."
  18. Heroicização: Mostrar-se como destemido, por vezes como o único capaz de enfrentar uma provação. "Não é porque a imprensa vai me cancelar que eu vou parar (...). Eu fui eleito para expor as mazelas e colocar o dedo na ferida."
  19. Exemplar saliente: Destacar um comportamento "fora da curva" como se fosse representativo do grupo. "Olha o noia [sic.] com a placa 'o fluxo [aglomeração humana para consumo de droga] é indomável'."
  20. Falácia de associação: Enfileirar possíveis adversários para que o interlocutor se oponha a todos por não gostar pelo menos de um deles. "O Lula entrou em campo, a Marina Silva entrou em campo, o Lindbergh Farias entrou em campo, eles estão unidos com as ONGs."
  21. Acuse-os do que você faz: "A mídia de esquerda quer abafar o escândalo da Mynd e da Choquei". No caso, a acusação é do uso de uma estratégia (cortina de fumaça, desviar o foco de um assunto com outro) tradicional da extrema-direita.
  22. Teoria da conspiração: Apresentar-se como portador de uma verdade desconhecida e chocante. "Naturalmente tem coisa muito grande aí dentro [das ONGs que atuam na cracolândia]."

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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