Você é boa o suficiente
Suzana não usava biquíni, apenas maiô inteiro, de peça única, pois tinha vergonha. Aos 16 anos, não havia nada de errado com seu corpo, mas o fato de não ter depilado as pernas a impedia de pôr até mesmo o maiô e entrar na piscina com o resto da turma naquele dia. Fiquei ali com ela conversando na beira da piscina enquanto nossos colegas da escola se divertiam na água.
Com a mesma idade, eu também me sentia mal com meu próprio corpo, me sentia mal comigo inteira, como um todo, para falar a verdade. E detestava essa sensação. Odiava não gostar de mim mesma. Queria ser outra pessoa, sem encucações, com boa autoestima. Mas esse pensamento só piorava ainda mais o meu problema de "ter que existir no mundo".
Durante a vida tive muitas amigas que se auto depreciavam, e desde os 6 ou 7 anos me lembro de meninas diminuindo umas às outras. Não sei como era com os meninos. Estava já muito enroscada em minhas próprias opressões internalizadas para conseguir enxergar o que acontecia ou não com eles.
Digo opressões internalizadas pois não acredito que esse "me sentir mal comigo mesma" vem do nada ou de algum problema emocional ou psicológico individual. A autocrítica e baixa autoestima de tantas mulheres vem em grande parte da forma como nossa sociedade e cultura patriarcal, machista e misógina se infiltra em nossas mentes e vidas desde muito jovens, nos fazendo acreditar que somos "menos" ou "não merecedoras".
Cresci lutando contra essa sensação de inadequação e tentando me expressar e me colocar no mundo apesar dela. Um trabalho interno exaustivo e incessante, que me privou de muitas oportunidades na vida. Imagino as dificuldades ainda maiores que enfrentam mulheres negras e trans em condições socioeconômicas piores que as minhas.
Na faculdade, conheci Divanize Carbonieri. Lutava contra a autodepreciação, assim como eu. Era minha melhor amiga, sentia que nos compreendíamos em nossa falta de autoconfiança. Confesso que às vezes eu me irritava com ela, exatamente por me ver refletida em sua baixa autoestima.
Mas a maior parte do tempo eu me impressionava com sua inteligência e seu interesse em assuntos tanto subjetivos e metafísicos quanto do mundo objetivo, concreto. Ainda criança, ela havia lido todos os livros da biblioteca da cidade onde crescera! Dizia que desde pequena queria ser escritora. Escrevia cadernos e mais cadernos de contos, poemas, textos. Admirava essa sua capacidade de pôr ideias no papel.
Já eu, me sentia inadequada até mesmo para tentar escrever. E se alguém lesse? Seria o fim! Ela, ao contrário, escrevia, deixava fluir a vida, sua criatividade, sua sabedoria. Porém, não permitia que ninguém lesse e, depois, jogava tudo fora, queimava os cadernos... E eu pensava: ainda bem que não escrevo pois pelo menos evito passar por mais essa vergonha e auto decepção de descartar o que faço.
Surpreendentemente estou aqui agora escrevendo esta coluna, há um ano já. Para isso, precisei superar muitos auto julgamentos e crenças profundas de que "não sou boa o suficiente". Um trabalho emocional longo e árduo de auto superação.
Minha amiga Divanize, igualmente, conseguiu enfrentar seus monstros internos que a impediam de expor publicamente seus escritos. Me contou que somente a partir de 2015/16 parou de destruir o que escrevia, e com muita coragem começou a mostrar para outras pessoas e a se inscrever em editais.
Assim, em 2017 foi publicado seu primeiro livro de poemas, "Entraves", que recebeu o Prêmio Mato Grosso de Literatura. Depois dele já vieram mais cinco livros! Um deles, "Passagem Estreita", é agora um dos 10 finalistas no Prêmio Jabuti 2020, o concurso literário mais importante do Brasil!
Minha celebração, admiração e orgulho são imensos, não apenas pela qualidade da sua obra, mas por saber da longa e difícil jornada que ela precisou enfrentar para chegar até aqui! É uma conquista pessoal e também coletiva, de todas as mulheres!
Em suas próprias palavras: "Tenho 48 anos, publiquei meu primeiro livro tardiamente, com 45. Mas percebi que isso é comum entre muitas mulheres escritoras, principalmente da minha faixa etária ou mais velhas." Conta que descobriu isso quando começou a participar do "Mulherio das Letras", um coletivo literário feminista que reúne cerca de 7 mil mulheres e busca dar visibilidade, questionar e ampliar a participação de mulheres no cenário literário. E continua: "Muitas mulheres escrevem a vida toda, mas não se sentem seguras para publicar e nem mesmo para se assumir escritoras ou poetas. Se dizer poeta ou escritora já é uma conquista enorme", diz Divanize.
Seu próximo livro, "Nojo", que está prestes a ser lançado, tem muita relação com este tema da autoestima feminina.
O livro "Passagem Estreita", que concorre ao Prêmio Jabuti, também trata da condição da mulher em nossa sociedade. Vários dos textos retratam o sofrimento muitas vezes ligado à condição feminina: sensação de menos valia, insegurança em relação à própria aparência, trauma de ordem sexual ou outra. Em 19 contos, o livro conta a história de mulheres em atividades não diretamente ligadas ao ambiente doméstico ou dentro dos papéis familiares (mãe, filha, irmã) e amorosos (esposa, namorada, amante). As narrativas fogem desse padrão para enfatizar a plena potencialidade de indivíduo único das protagonistas.
Dia 26 de novembro sai o resultado final do Prêmio Jabuti, que será divulgado em cerimônia online. Torço por você, Divanize! Que este seja apenas mais um dentre muitos prêmios! E que cada vez mais mulheres sigam seu exemplo e se sintam seguras o bastante para escrever e se colocar no mundo sem medo!
Para saber mais sobre Divanize Carbonieri e adquirir suas obras acesse o site da editora Carlini & Caniato.
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