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Sandra Caselato

Dia dos Mortos

2.nov.2017 - Idosa deixa flores em túmulo no dia de Finados no Cemitério do Araçá, na região central da capital paulista - Suamy Beydoun/Agif/Estadão Conteúdo
2.nov.2017 - Idosa deixa flores em túmulo no dia de Finados no Cemitério do Araçá, na região central da capital paulista Imagem: Suamy Beydoun/Agif/Estadão Conteúdo

03/11/2020 04h00

A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do Caminho.

Santo Agostinho

Mesmo sendo espírita, kardecista, minha avó olhou para mim com os olhos arregalados quando falei para ela, aos 9 anos, que durante a noite costumava me ver fora do meu próprio corpo e voar por vários lugares. Nunca mais falei sobre isso, tamanho o susto que ela pareceu demonstrar. Também guardei para mim mesma algumas conversas que tive com pessoas que já morreram.

Evitei falar sobre essas coisas durante toda a minha vida, pelo receio da reação de espanto e falta de entendimento de quem estava à minha volta. Mas eu mesma nunca me assustei com nada disso. Pelo contrário, quando, pela primeira vez, conversei com uma amiga que havia falecido aos 17 anos, tive a certeza interna de que somos mais do que nosso corpo e que a morte física não é o fim da vida.

Muitas religiões e crenças espirituais reconhecem essa dimensão extrafísica, que a ciência ignora por não conseguir mensurar, e o Zeitgeist* da sociedade ocidental atual nos diz que não existe.

Ontem foi Dia dos Mortos, Finados. Também foi aniversário do meu pai. Ele diz que gosta de ter nascido nesta data "por causa do feriado, apesar de ser um dia em que sempre chove". Talvez o céu também chore, acompanhando o lamento saudoso de tanta gente se lembrando, ao mesmo tempo, das pessoas queridas que já se foram.

Meus pais não são religiosos e não fui criada dentro de nenhum credo ou doutrina. Fui desenvolvendo minhas próprias teorias e hipóteses com base em minhas experiências e a partir da minha curiosidade sobre algumas religiões. Mas sempre com bastante cautela, ciente de que muitas vezes essas coisas são consideradas loucura ou bobagem, já que a ciência é o parâmetro geral que define o que é e o que não é realidade em nossa civilização ocidental.

Entretanto, o que hoje é tido como misticismo, crença ou tabu, durante a maior parte da existência humana foi considerado verdadeiro e normal, dentro da visão de mundo de cada grupo ou civilização. Esta dimensão espiritual ou extrafísica era tida como parte da realidade, tão importante quanto o plano concreto material, físico e objetivo. Assim é em todas as culturas ancestrais de que tenho conhecimento: de matriz africana, indígena, aborígene, celta, orientais etc.

Muitas culturas ainda contam com um dia específico dedicado à memória dos mortos, para homenagear, rezar por eles ou evocar os que já partiram.

Algumas celebrações são mais festivas, como a mexicana, que tem origem indígena e dura três dias, nos quais as pessoas "zombam" da morte enfeitando as ruas e organizando desfiles. De forma geral, os mexicanos acreditam que as almas dos que já se foram visitam seus parentes nesta data. Costumam então decorar altares para eles dentro de casa com flores, caveiras de papel machê, retratos dos falecidos e pequenas oferendas.

No Brasil, muita gente costuma levar flores aos cemitérios no Dia de Finados. A data, instituída pela tradição católica na Idade Média, é um momento de oração pelos que se foram, e para que as almas que estão no purgatório cheguem até a santidade perfeita e a eternidade.

Diante da pandemia, várias pessoas aderiram a visitas antecipadas ao cemitério e em datas alternativas ao 2 de novembro. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a entidade católica Cáritas Brasileira, criaram a campanha #CuidarDaSaudade, sugerindo o plantio de árvores em memória aos entes falecidos para evitar aglomerações nos cemitérios e ao mesmo tempo incentivar a preservação do meio ambiente.

Este ano, enquanto os casos de Covid-19 seguem aumentando no país, o Dia de Finados se reveste de um sentido particular, talvez mais forte. Os muitos falecimentos, dificuldade em se despedir e restrições em velar os mortos, em muitos casos intensificam o processo de luto.

Novos rituais de despedida têm sido, então, criados para ajudar a processar as perdas das pessoas queridas e viver o luto, cumprindo o distanciamento social. Missas, celebrações e homenagens têm sido transmitidas pela internet, TV ou rádio. Já participei de algumas virtualmente desde o início da pandemia.

As pessoas têm buscado maneiras diferentes de lidar com as perdas, ao mesmo tempo em que rituais ancestrais e diferentes modos de entender a morte continuam vivos, carregados de mistério e, mesmo que adaptados, seguem importantes nos processos de luto.

E você? Como você entende e lida com a morte? Como tem processado seus lutos?

* Zeitgeist: conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo)