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Tainá de Paula

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Uma nota técnica sobre as resistências dos centros urbanos

Porto Maravilha após obra na região da avenida Rodrigues Alves, no Rio de Janeiro (RJ) -  Bruno Bartholini/Divulgaçao
Porto Maravilha após obra na região da avenida Rodrigues Alves, no Rio de Janeiro (RJ) Imagem: Bruno Bartholini/Divulgaçao

Tainá de Paula

13/06/2021 06h00

A ideia de promover intervenções urbanas nas áreas centrais não é nova. A consolidação das cidades brasileiras construiu centros históricos adensados, atrelados à perspectiva de vanguarda e alinhada com o avanço da industrialização no mundo e principalmente na Europa. O modelo de passeios públicos, promenades, largos e boulevards teceram os centros e a mudança do próprio capitalismo e das relações sociais os confere novos contornos e processos.

O debate sobre "renovação", termo que apesar de estar em desuso e já desconstruído em diversos estudos como os de Françoise Choay, Helena Menna Barreto, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Lélia Mendes de Vasconcellos, Claudio Lima Carlos e vários outros, volta e meia é utilizado em projetos urbanos centrais, requentando ideais eugenistas, elitistas e pouco conectados com o espírito do tempo no que se refere à preservação da memória urbana e social. As permanências e insurgências presentes em ocupações, ruínas e reusos deveriam ser melhor valorizadas num país com tão poucas reservas de Patrimônio.

No Brasil, há ainda muito a se avançar no debate sobre intervenções nas áreas centrais de forma qualificada. O modelo do arrasa-quarteirão, protagonizado pelo modernismo brasileiro, fez com que os centros das médias e grandes cidades fossem muito descaracterizados ou, em casos excepcionais, empenhassem um papel quase que de congelamento e cenografia, com o emblemático exemplo de Ouro Preto e Paraty. No caso da cidade do Rio de Janeiro, são mais de dois séculos de sucessivas intervenções desde a Missão Francesa, passando pelos planos Agache e Doxiadis, que resultaram no aterramento da Baía de Guanabara e de mangues e lagoas, demolição de morros e construção de grandes avenidas.

Na primeira década do século 21, mais de cem anos depois da abertura da Avenida Beira Mar na administração Pereira Passos e do porto do Rio de Janeiro no governo Rodrigues Alves, Eduardo Paes lançou o Porto Maravilha, que transformou a Av. Rodrigues Alves e o Elevado da Perimetral no Boulevard Olímpico, inaugurado em 2015. E ontem, como hoje, as grandes obras na área central do Rio de Janeiro desconsideram a população pobre que habita o centro. A maior intervenção do Porto Maravilha para os pobres do Centro foi um teleférico que nunca funcionou plenamente e que hoje está parado. Além de ter em seu histórico dramáticas remoções muito estudadas em diversos estudos à época.

É por isso que em 2021, quando se anuncia o Reviver Centro, apenas seis anos depois do Centro para Todos e do Plano de Habitação e Interesse Social do Porto Maravilha, ambos na gestão anterior do atual prefeito, revivemos as mesmas preocupações de sempre: que as intervenções garantam a permanência das pessoas que mantiveram o centro de fato vivo e dê mais dignidade às suas moradias, e que ao mesmo tempo crie oportunidades para se tornar uma opção para aqueles que mesmo trabalhando na área central, somente conseguem uma moradia formal em bairros afastados dos seus locais de trabalho.

Nesse sentido, a prioridade do Reviver deveria ser manter quem já habita e atrair quem já tem motivos para morar na área. não construir benefícios claros de programas habitacionais, que foram anunciados, mas não foram explicitados de como serão realizados: locação social, moradia assistida, assistência técnica e melhorias habitacionais por exemplo. Ademais, é necessário resgatar uma dívida do já citado Plano de Habitação do Porto, que pretendia oferecer 10 mil novas moradias no Centro ampliado e 6 anos depois, não fez nenhuma. Nenhuma linha clara para a atuação em cortiços (há 155 cortiços no mínimo no Centro do Rio), nenhum programa já em execução ou decretado para os mais pobres.

O projeto tem muitos artigos sobre a reconversão de imóveis, retomando pontos do projeto de lei n.136/2019 inclusive, e não deixa claro até que ponto haverá transformações de uso e quais são os limites de intervenção nas envoltórias dos bens culturais de uma cidade que é Capital Mundial da Arquitetura. Engessar os processos de restauração não fizeram bem ao Patrimônio Brasileiro sem dúvida, que tem pouquíssimas reconversões interessantes e flerta com o debate do falso histórico, vide exemplos importantes como a Pinacoteca em São Paulo.

Mas se o projeto não é claro quanto à viabilização das suas boas intenções que já eram promessa do Eduardo Paes em outubro de 2015, quando entregou à cidade o Plano de Habitação do Porto, o mesmo não acontece quando propõe a realização de Operações Interligadas, um instrumento que a maioria das cidades deixou de usar desde que foi aprovado o Estatuto da Cidade, lei federal de 2001, quando mecanismos mais eficientes e transparentes passaram a ser usados nas cidades. O Reviver Centro identifica mais de 200 imóveis no Leme, Copacabana e Ipanema, nos quais hoje somente são permitidas edificações de no máximo 4 pavimentos, em função de um dispositivo da lei orgânica vigente desde 1989.

O simples anúncio desta possibilidade provocou uma valorização destes terrenos, cuja inclusão procura justificar-se na geração de recursos para investir na área da operação. Especialistas de instituições reconhecidas e respeitadas como o Instituto de Arquitetos do Brasil e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo têm advertido o risco que representa ressuscitar um instrumento polêmico, agravado por voltar com uma flexibilidade maior, já que no passado, as operações recebiam autorização legal uma a uma. Isto traz uma possibilidade de judicialização que representa insegurança jurídica para os investidores potenciais e pode fazer com que o Reviver tenha o mesmo fim do Centro para Todos e de planos anteriores.

Tudo isso dito, é possível garantir um "Reviver" Centro nos moldes que se apresentam? A resposta está agora nas mãos da Câmara de Vereadores onde o projeto tramita. Há de se incluir uma agenda profunda de transparência dos recursos, clareza das destinações, onde fundos de Patrimônio, Moradia e Cultura devem ser os principais destinatários dos recursos gerados, assim como dispositivos de participação e controle do Projeto.

Nesse sentido, o mercado imobiliário não pode ser o único ator garantido e beneficiado no projeto, que tem potencial para requalificar e reativar estruturas abandonadas pelo próprio Estado, seja por uma visão equivocada de cidade, seja por condições estruturais de um modelo econômico que compromete direitos e arruina cidades. E, por favor, não utilizem reviver para os centros. Os centros resistem apesar dos pesares!