Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
As Cidades do Cuidado: uma teoria decolonial
Há pouco mais de um ano, fui convidada a participar da primeira versão online do TEDx Laçador, para falar em 10 minutos sobre cidades. À época estava bastante estimulada a fazer debates urbanos sobre pandemia e o enfrentamento ao capitalismo. Acabara de ler o livro "Coronavírus e a Luta de Classes" e já antecipava a perda de mais de um milhão de pessoas sem dúvidas... De lá pra cá, venho engrossando o caldo dos intelectuais brasileiros dedicados aos debates do pós-capitalismo da geração "C" ( geração covid) e aprofundando o debate ao redor do título dado TED: A Cidade do Cuidado.
Viu-se em dois anos o retrato e a cor da desigualdade e a localização da morte. A letalidade nas favelas chegou a ser cerca de 30% maior do que em territórios com maior concentração de renda. A mudança das cidades foi gritante. Aumentamos 20% a quantidade de lixo hospitalar e não estamos dando conta do destino de máscaras e potes de álcool em gel. Para a surpresa dos desavisados com as barbáries urbanas, descobriu-se que em algumas cidades brasileiras mais da metade dos domicílios tem intermitência de água, portanto o slogan #fiqueemcasa se tornou inócuo, tendo em vista que uma das principais armas contra a covid é o acesso à água limpa (e o uso de máscaras).
Desemprego, fome, miséria, ausência de casa e ausência de cidade. Nesse contexto, somado à grave crise institucional, democrática e civilizatória, é preciso estabelecer uma reposta de cidade que cuide, e que entenda as redes sociais familiares, o ecossistema familiar e de proximidade (vizinhança) como fundamentais para o fortalecimento econômico, social e de melhores práticas. Espelhada na Economia do cuidado ("care economy theory")
A pandemia do coronavírus me desafiou, eu, uma arquiteta periférica e preta, a sugerir novos imaginários para as cidades, longe das mortes e do genocídio que passamos. Me parafraseando, "o vírus já nos matou muito e agora é preciso cuidar. As cidades precisam ser espaço de cura e de cuidado."
A primeira coisa a se pensar são as dimensões desse cuidado. A cidade que cuida é a que humaniza as pessoas. Num país escravista, esse é um grande desafio, tendo em vista que em pleno século 21 crianças pretas são jogadas do 9º andar pelo racismo.
Numa cidade onde mais da metade da população não é tratada como humana, porque são pretas e mestiças, é difícil garantir formas de humanização e de cuidado, em que acesso à água, tratamento de esgoto, espaço verde e proteção ambiental e bem-viver são abstrações no cotidiano.
O morador da cidade, o citadino, precisa ser humano pra contemplar e usufruir do espaço urbano, precisa olhar a cidade na escala dos olhos, precisa ter tempo pra contemplar e vivê-la. Não é correndo, não é no chão como um morador em situação de rua, não é enclausurado em casa. O citadino precisa ter tempo para ver a cidade a partir dos seus olhos e não dos olhos de quem está servindo. Ele precisa ver a cidade não a partir das longas distâncias do metrô, apinhado num ônibus, sufocado num trem, no corre. Ele precisa poder contemplar, à altura dos olhos e não do piso, não da precariedade do trabalho informal da calçada. É preciso garantir tempo e qualidade do tempo urbano.
Além do tempo, no pós-pandemia a gente precisa falar da água, e dizer que o capitalismo das periferias reservou as águas para alguns e poluíram os rios urbanos que agora tão fazendo falta. Numa cidade sem água, não se lava, não se cuida, não se cura. A SOS Mata Atlântica fez uma pesquisa e constatou que só 6,5% dos rios do Brasil têm água limpa, potável.
Nas cidades do cuidado, não teremos espaço para traços coloniais nem para as feridas abertas do colonialismo, pois o processo será de humanização irrestrita. Grada Kilomba, intelectual em quem aposto para tais reflexões, fala dos passos do tornar-se sujeito e que é preciso dizer que é um processo importante numa cidade decolonial. É preciso humanizar os sujeitos da cidade. É preciso nos tornar sujeitos.
Construída a nova lógica, é preciso garantir um pacto civilizatório, radical, contracolonial e libertador, em que todos se tornam sujeitos de fato, estabelecendo regras de convívio, segurança, cuidado e garantindo o nosso novo normal. Sem o descarte de alguns, sem o privilégio de outros, sobrará tempo. A tecnologia e a cultura da proteção coletiva poderá emergir e podemos dizer que, nesse sentido, a tecnologia social dos povos originários, dos quilombolas sempre está correta. Nós, os pretos, os indígenas, sempre cuidamos dos nossos.
Nesse outro mundo, sem desumanizados, deveremos ter mais tempo para as tarefas domésticas, para os nossos núcleos familiares. As crianças ficarão mais tempo conosco, e pra isso a cidade deverá de fato inseri-las. Espaço para elas ficarem, brincarem, não serão mais estranhos no espaço urbano. Escorregas fora do lugar, fraldários como regra, mulheres amamentando em todo lugar, creches parentais, estatais e integrais, cidades com menos carros, porque não sei se vocês sabem, o trânsito é o principal motivo de morte acidental para as nossas crianças e adolescentes no nosso país de acordo com o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). Se nossas crianças estiverem mais a pé na cidade, teremos que ter um trânsito com menos carros e com uma outra velocidade.
As distâncias precisarão ser menores. Não poderemos ficar longe de onde as crianças estão. Com isso, preciso que todo mundo seja responsável pela minha criança e que a minha criança esteja perto, como as cidades médias africanas e seus núcleos para mulheres, idosos e crianças se recolherem. A escola precisa portanto estar do lado, e num mundo-aldeia que estamos pensando aqui, essa escola é tão perto e essa aldeia é tão humana, que todos seremos responsáveis por todas as crianças, eliminando a sobrecarga parental e sobretudo a materna.
Nessa cidade onde todos se olham, todos se conhecem e se cuidam, o espaço público é o lugar do encontro e é da escala humana, não há prédios altos que nos isolam, mas há vilas, ecovilas, onde todos se encontram nos espaços coletivos, que são verdes e acessíveis a todos. Podemos pensar inclusive uma outra relação com o plantio e com a soberania alimentar e derrubar a lógica atual que diz que ter mais dinheiro é sinal de poder comer melhor. A chave estará no ter mais tempo para entender o que se come e plantar o que se precisa comer.
Na nova aldeia, a oca, a casa, precisa ter um custo de produção e manutenção barato, ela não vai ter piscina, porque teremos rios públicos, limpos, acessíveis, todos os valões serão rios, pois não teremos rios lagoas, ou piscinas para alguns, teremos pra todos. Ela não terá muitos livros porque teremos uma biblioteca-parque em cada bairro, com muitos livros impressos e digitais.
Nesta nova cidade, é preciso garantir trocas e escutas, então eu preciso ter menos ruído, mais proximidades e mais praças e anfiteatros. Eu preciso comunicar perto e ir mais longe na comunicação, então precisamos universalizar o acesso digital.
Na cidade que cura e cuida, vamos adoecer menos, viver mais, porque teremos menos estresses cotidianos, comeremos melhor da nossa produção orgânica do bairro, andaremos mais a pé e teremos tempo de amar mais e melhor. É preciso pensar um tempo de amor entre nós. Vamos garantir o cuidado de todos contra qualquer vírus, garantir a vacina para todos nós, e vamos acessar igualmente, de todos os lugares o SUS, que terá um médico de família para cada quarteirão, pra cada bairro, para todas as famílias.
A cidade do cuidado tem outra relação com a produção, ela reparte o excedente e não visa o lucro, ela não sacrifica quem não pode pagar e valoriza o trabalha, o braçal e o intelectual. A cidade do cuidado é portanto a reordenação de prioridades. Ela radicaliza democracia, ela pactua entre nós o nosso projeto de bem-viver. Agô de Exu para construir o caminho das nossas cidades, lavar a alma, aquietar nosso luto e cuidar dos nossos nesta nova engenharia e economia urbana.
Quem quer desejar novas utopias e fazer parte desse pacto? A mim caberá cada vez mais desenhar esta cidade. A todos caberá desejá-la. É urgente, vamos?
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