Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Kéré e o novo mundo
Finalmente um Prêmio Pritzker que pode fomentar e discutir os rumos da arquitetura mundial no restante do século 21. Francis Kéré, arquiteto africano pouquíssimo estudado nas escolas brasileiras de arquitetura e tão fundamental para a ressignificação dos marcos civilizatórios impostos pela colonialidade, ganha um reconhecimento histórico, que precisa ser debatido e reverberado.
No último Congresso Internacional de Arquitetos, o UIA-2021, sediado no Brasil, o arquiteto pontuou em uma palestra magna a necessidade de um pós-pandemia de encontro e que a forma é desimportante, num contexto em que as pessoas precisam de espaços de conexão no pós-pandemia. Aliás, este sempre foi um mote importante de sua arquitetura, seja pela necessidade de conectar indivíduos, seja pela construção de debates políticos ao redor de uma perspectiva decolonial de nação e soberania, como o novo parlamento de Burkina Faso, que reforça a necessidade de um local onde todas as ideias possam construir uma nova democracia africana, em contraposição aos regimes autoritários e as referências globais eurocentradas.
Num outro sentido, Kéré refunda em grande medida a perspectiva local, a arquitetura encampada por Sérgio Ferro nos anos 1980 no Brasil, presente no canteiro e atenta aos materiais construtivos. Grande desafio dos países da diáspora, a reconstrução da divisão do canteiro e a apropriação dos usuários nos processos construtivos em seus projetos aprofundam as discussões encampadas por Eladio Dieste e por todo o debate de autogestão na América Latina (incluindo o Brasil), fazendo com que sua arquitetura recupere elementos vernaculares, como no Lycée Schorge também em Burkina Faso.
Construindo, portanto, uma nova lógica, a contracolonialidade de seus projetos passa a ser uma marca inovadora, marcando o papel também indutor da arquitetura e do urbanismo em uma sociedade radicalmente livre, emancipadora e igualitária. Há em sua formulação, uma tecnologia da inovação, a serviço da cultura da proteção coletiva do cuidado e de outros cenários para sociedades pós-apartheid e pós-subalternidade. Afinal, é urgente pensarmos alternativas para territórios africanos devastados pelos impactos do capitalismo extrativista, assim como para nossos quilombolas, indígenas e todos os povos subalternizados da diáspora.
O primeiro arquiteto negro a ganhar o Prêmio, reforça uma arquitetura de um afrofuturo, no qual estética, técnica e outra corporeidade para pessoas negras podem ser alcançadas e construídas. Kéré é um gênio de seu tempo e eleva a chamada pela Europa de "arquitetura da escassez" ao patamar de arquitetura do futuro. Projetos como a escola primária em Gando reforçam que é condição fundamental nos aproximarmos dos povos originários e aos saberes tradicionais.
Com Kéré, a arquitetura passa a ser parte de um processo de reconexão com importâncias urgentes deste tempo. Somente um homem negro, da diáspora, comprometido com o futuro dos seus, poderia liderar esse debate. E que bom que a comunidade de arquitetos foi capaz de reverenciá-lo em vida. Que venha um ciclo de mais arquitetos atentos às realidades sociais e capazes de construir agendas radicais de enfrentamento à miséria, à desigualdade e à opressão, capazes de pensar a reumanização dos sujeitos neste novo mundo a ser projetado.
É necessário que Kéré seja mais conhecido, repasse seu método e nos oriente em reflexões urgentes: projetos decoloniais que empreteçam o Brasil e desconstruam o lexo e a tradição colonial.
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