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Tainá de Paula

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Plano Diretor, a trilogia: áreas rurais são possíveis?

Horta Manguinhos é a maior horta urbana da América Latina - Ezequiel Dias
Horta Manguinhos é a maior horta urbana da América Latina Imagem: Ezequiel Dias

01/05/2022 06h00

Dando sequência à nossa trilogia aqui na coluna, vamos trazer uma discussão que divide opiniões, mas que dialoga com uma perspectiva internacional de enfrentamento à crise alimentar e ao contexto pandêmico: as áreas produtoras de alimento no espaço urbano. As áreas reservadas para a agricultura urbana são ponto-chave de rediscussão hoje e nas cidades brasileiras o desafio é superlativo: como responder ao processo de conurbação acelerada e hiperurbanização das cidades ao longo do século 20? Como enfrentar a fome nos grandes centros urbanos?

2014, o Brasil conquistou uma de suas maiores vitórias: saiu do mapa da fome da ONU.

Agora, com o crescimento do desemprego e da inflação, a fome volta a assolar a população brasileira - 116,8 milhões de pessoas vivem com algum nível de insegurança alimentar, sendo 19,1 milhões de insegurança grave. O aumento do dólar também contribui para esse cenário: o agronegócio direciona sua produção para a exportação, deixando o mercado interno desabastecido e os preços nas prateleiras dos mercados mais altos.

Com isso, não só voltamos ao mapa da fome, mas também voltamos à insegurança alimentar e à carestia de preços de alimentos. Considerando que a segurança alimentar consiste no "acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais" (como definido na II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), a insegurança alimentar brasileira vem não só com o acesso a alimentos em quantidade insuficiente, mas também no acesso a alimentos de baixa qualidade. Isso acontece quando comemos alimentos cheios de agrotóxicos (desde seu início, o governo Bolsonaro já liberou mais de 1600 novos agrotóxicos) e quando comemos majoritariamente alimentos ultraprocessados.

No Estado do Rio de Janeiro, 1,7 milhão de pessoas estão em situação de extrema pobreza. Pesquisa da Cufa mostra que 82% da população de comunidades e favelas depende de doações para se alimentar, sendo o número médio de refeições por dia dessas famílias 1,9. O empobrecimento da população - que tem cor e tem CEP - está ligado ao avanço da fome.

A capital, segunda maior cidade do país, com quase 7 milhões de habitantes, está em processo de discussão do Plano Diretor, que dá as diretrizes da legislação urbanística dos próximos 10 anos e que toca o tema da segurança alimentar em seu corpo produzido pela Prefeitura. Nos princípios (Art. 3º, inciso VII), nos objetivos (Art. 6º, inciso II) e nas diretrizes (Art. 7º, inciso XI) do Plano, além de contemplar a previsão de áreas verdes urbanas convertidas em hortas agroecológicas para produção de alimentos, "destinados ao atendimento da população carente, dos alunos das escolas públicas e dos hospitais" (Art. 275, § 4º) e da indicação de que o desabastecimento de alimentos consiste em "ameaça, risco ou dano às condições normais de funcionamento da cidade" (Art. 441).

Porém as políticas urbanas de enfrentamento à insegurança alimentar estão indicadas em termos bastante genéricos. Falta indicar o avanço da agricultura urbana - familiar, agroecológica, definir que as áreas onde o imposto será em definito o ITR (imposto de terras rurais), uma vez que o pagamento de IPTU não só inviabiliza economicamente a produção de pequenos e médios produtores e impossibilita que estes produtores acessem linhas de fomento direto e indireto, além de financiamento público e privado.

Além disso, é fundamental pensar no enfrentamento à insegurança alimentar a partir da noção de soberania alimentar - "o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos" (Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar, Havana, 2001) - e à luz de políticas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas. Na proposta de Plano Diretor que está sendo discutida, há apenas uma menção à questão alimentar em conjunção com a questão ambiental: uma das diretrizes do plano é o estímulo à implantação de empregos verdes, que contribuam com a "adaptação da cidade às mudanças climáticas e com o incremento da produção de alimentos" (Art. 7º, inciso XIX).

Não é possível um planejamento de políticas de alimentação sem considerar as práticas e condições locais de produção e distribuição dos alimentos, o que significa tanto reconhecer os hábitos da população quanto considerar a disponibilidade de espaços de plantio e a qualidade dos solos - esses dois últimos fatores devem levar em conta projeções de um futuro com clima diferente do que tivemos ontem e que temos hoje. Mercados populares, entrepostos alimentares urbanos e pátios de logística: não se trata apenas do território de produção alimentar, resguardado dos processos especulativos urbanos, mas também as áreas que servirão de suporte para a produção ser escoada até chegar à população.

Nos movimentos camponeses, há uma palavra de ordem que diz que "se o campo não planta, a cidade não janta". Cidades são por excelência centros consumidores - e não produtores - de alimentos, mas vem ganhando espaço a política de que são necessárias áreas verdes, tanto as de floresta quanto as de produção de alimentos. Produção agroecológica de alimentos nos centros urbanos como resposta fundamental à fome. Verde para curar e alimentar as cidades.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL