Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Plano Diretor, a trilogia: habitação
Para concluir a nossa trilogia sobre o Plano Diretor, vou falar de um tema central para o Rio de Janeiro e para os grandes centros urbanos: a moradia popular. Por todo o Brasil, o debate da habitação está relacionado à produção de desigualdade que moldam as nossas cidades. Vivemos e convivemos em meio à má distribuição habitacional, de serviços públicos ou privados. Cruzamos cidades para chegar ao trabalho, atravessamos grandes distâncias para levar ou buscar as crianças nas escolas. As áreas consideradas mais nobres têm seus serviços funcionando com fluidez, enquanto nas periferias e bairros populares os mesmos praticamente inexistem. O mercado imobiliário e o poder público investem somente em determinadas regiões em detrimento de outras, ao passo que centros urbanos ficam cada vez mais desiguais.
As quase distópicas cidades brasileiras, equivocadas em sua origem e em sua maioria negligentes com a morada dos mais pobres, seguem ausentes de políticas públicas que relacionem território e moradia, sem pouco encarar o processo de periferização e adensamento desordenado nas periferias e favelas. Só na região metropolitana do Rio de Janeiro, existia um déficit habitacional de mais de 360 mil unidades em 2019, segundo dados da Fundação João Pinheiro. Os dados pós-pandêmicos devem ser ainda mais assustadores e ainda não temos um Censo consolidado para verificar a nova realidade desses tempos.
Mas por onde começaríamos? Tanto se fez e tanto já se formulou e os desafios continuam exponenciais. O primeiro grande desafio continua sendo o financiamento, sem dúvida. Como se financia cidades socialmente referenciadas e que encaram as desigualdades? Há muito que se estimular ainda sobre a utilização do Fundo do Amparo ao trabalhador — o FGTS. Nos últimos anos, este foi um dos grandes instrumentos de financiamento da produção de moradia e é acertado afirmar que à medida que temos mais brasileiros contribuindo, maior será nossa capacidade de produção. Contudo, é preciso dimensionar o equilíbrio econômico e os limites desse funding imobiliário, onde a taxa de desemprego e a população economicamente ativa não rompam as relações de equilíbrio com o sistema. Entretanto, é preciso estimular outras formas de financiamento, ampliando não só as variáveis financiadoras mas também garantindo que a captura das mais-valias urbanas possa ser inserida num sistema de equidade e garantia de direitos e é nesta parte do texto que insiro os instrumentos urbanísticos, aqueles criados para complementar o sistema nacional de habitação.
São Paulo, por exemplo, arrecada mais de 500 milhões de reais por ano com a Outorga Onerosa do Direito de Construir. Esse instrumento nada mais é do que cobrar do proprietário um valor percentual pelo direito de usufruir o potencial construtivo máximo previsto no Plano Diretor para o seu terreno, de acordo com a sua localização e o tamanho da construção. Basicamente este instrumento considera que o valor do terreno está diretamente relacionado ao quanto é permitido construir nele, que é uma atribuição dada pelo poder público através do Plano Diretor. Desta forma, o lucro obtido pelo potencial construtivo dado a um terreno pertence, em parte, à coletividade e deve ser arrecadado pelo município como forma de financiar o desenvolvimento mais justo da cidade.
Quem construir uma casa até o Coeficiente Básico não precisa pagar outorga. Mas aqueles que constroem prédios até o Coeficiente de Aproveitamento Máximo ou maior que o básico pontuado no plano, devem pagar para a coletividade - ou seja, à Prefeitura. Esse valor deveria ser utilizado para financiar as políticas de moradia popular em diversos níveis, desde melhorias habitacionais, produção de novas unidades e locação social.
E no Rio? Apesar da Outorga Onerosa estar prevista desde o Plano Diretor de 1992, infelizmente o Rio de Janeiro não conseguiu implementar este instrumento de forma adequada e perdeu a oportunidade de recuperar um volume enorme de recursos no boom imobiliário provocado pelos mega eventos esportivos.
Outra ferramenta preterida pelos municípios, incluindo o Rio de Janeiro, é o IPTU progressivo, que visa combater a especulação imobiliária e os imóveis vazios. Essa ferramenta, que foi pouquíssimo regulamentada nas cidades, faz parte de um conjunto de outros instrumentos, como desapropriação com pagamento em títulos, Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC). Essa ferramenta faz com que o valor do IPTU de terrenos que não são utilizados de acordo com a sua função social aumente progressivamente com o tempo, estimulando que se dê um fim para o terreno em vez de deixá-lo abandonado, visando a especulação e a impossibilidade de se revender mais barato o imóvel, inserindo-o assim no mercado.
Além das modalidades de arrecadação do Estatuto das Cidades, novas modalidades de arrecadação e novas incidências urbanas são experimentadas ao redor do mundo. Em Atlanta, bairros inteiros recebem fundos de reparação e tem investimentos privados, capitaneados por de líderes financeiros negros dos EUA e do mundo. Escolas, parques, equipamentos urbanos são financiados por fundos privados oriundos de doações e ações de reparação racial.
Na Espanha, há um debate sobre o financiamento não só do transporte público urbano, mas também dos centros de bairro impactados pelos eixos viários e pelos processos de expansão de cidade, atrelando recursos para os modais e para requalificação urbana. Vancouver, Berlim e Portugal trazem arranjos para moradia associados ao metrô e VLT, compondo os fundos de moradia e de habitação desses lugares.
Além da produção, é fundamental, em se tratando de Brasil, avançar num debate ainda espinhoso: a melhoria habitacional. Afinal, como garantir essa política em larga escala, com financiamento público, mesmo com todos os entraves em relação à irregularidade da terra e com a pouca experiência em larga escala da Assistência Técnica? Os dois grandes elementos do déficit são a precariedade das residências (em média 40% no Brasil) e o ônus excessivo com aluguel (em média 30% do déficit brasileiro),ou seja, a produção apenas não equacionará nossos problemas.
Contratar arquitetos em larga escala, desenvolver tecnologias da construção mais razoáveis e adaptadas aos nossos desafios climáticos e econômicos. Financiar a arquitetura e urbanismo público com a captura das mais-valias. Um tanto de competência e empatia dos gestores locais. Um presidente menos incapaz e um capitalismo regulado. No melhor dos mundos, um capitalismo superado. Aliás, boa ideia para um próximo artigo: o capitalismo e as cidades!
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