Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Entre o shopping e a floresta
Há alguns meses comprei um colchão e há alguns dias um tênis.
Enquanto minha esposa e eu deitávamos nas camas espalhadas pela loja, experimentando os modelos, aprendemos que o melhor material para colchões é o látex. Segundo a vendedora, o produto era natural e de origem amazônica. Diferentemente do material usado no famoso travesseiro da Nasa, ele não deforma. Além disso, proporciona imenso conforto, "nos abraça", diria a vendedora.
Em outro momento, fui ao shopping comprar um tênis. Ao experimentar um dos calçados, a vendedora logo me informou que a borracha do solado era natural. O primeiro atributo usado por ela para a venda estava associado ao conforto; o segundo, ao uso de borracha, cuja matéria-prima havia sido extraída de seringueiras.
Em ambos os casos, a borracha obtida naturalmente foi vendida como um diferencial, algo que valorizava a marca e me faria ficar satisfeito em pagar mais pelo bem que iria adquirir. Essa visão, contudo, não é compartilhada em um dos estados-símbolo do extrativismo vegetal no Brasil, o Acre.
Segundo livro recentemente publicado, escrito pelo antropólogo norte-americano Jeffrey Hoelle e traduzido por Daniel Belik, o extrativismo no Acre está associado na maior parte dos casos à pobreza e à decadência. Essa percepção contrasta com a que se refere ao gado, vinculado à riqueza e ao progresso.
No livro, intitulado "Caubóis da Floresta: O crescimento da pecuária e a cultura de gado na Amazônia brasileira", o resultado mencionado acima é obtido a partir de entrevistas realizadas pelo pesquisador. Nelas, o antropólogo pediu para representantes de três das principais práticas econômicas no Acre (extrativismo, agricultura e criação de gado) que associassem essas três práticas a quatro diferentes palavras: riqueza, pobreza, progresso e decadência.
Entre o grupo de seringueiros, a grande maioria (85%) associava o gado à riqueza e o extrativismo à pobreza. Entre os fazendeiros, 100% pensavam no extrativismo associado à pobreza e 85% à decadência.
Ao colocar lado a lado minhas experiências de compras e o livro de Hoelle, podemos enxergar uma imensa distância entre as percepções do shopping em São Paulo e dos produtores rurais no Acre. Para vencer essa distância, é necessário melhorar a qualidade de vida dos extrativistas, um dos objetivos da SOS Amazônia.
Fundada em 1988, a associação foi criada para reagir à substituição das florestas por pastagens. Enquanto nossa constituição era promulgada em Brasília, o movimento dos seringueiros, no Acre, unia forças para reduzir a devastação. Naquele ano, professores, estudantes universitários e representantes do movimento social, incluindo o ativista e seringueiro Chico Mendes, criaram a Associação SOS Amazônia, para defender a causa extrativista e proteger a Floresta Amazônica, apoiando as populações tradicionais.
Em conversa com Álisson Maranho, diretor técnico na associação, ele conta sobre o trabalho que a SOS Amazônia tem feito para valorizar esses produtos florestais, como a borracha, e ainda outros como buriti, andiroba e copaíba, que dão origem a óleos e cosméticos.
Com recursos do Fundo Amazônia, o projeto liderado por Álisson contribuiu para o desenvolvimento de diversas associações e cooperativas locais, estruturando cadeias de valor e contribuindo para que a renda dos produtores locais crescesse.
Hoje, os recursos do Fundo Amazônia foram suspensos, em razão das ações descabidas do governo federal brasileiro. Apesar dos moradores dos centros urbanos valorizarem e aparentemente estarem dispostos a pagar mais por produtos da nossa sociobiodiversidade, o extrativismo ainda parece associado à pobreza e à decadência.
É um retrato perturbador. Precisamos que os povos e comunidades tradicionais continuem contribuindo para a conservação das florestas e organizações como a SOS Amazônia têm um papel fundamental para que isso aconteça.
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