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Tony Marlon

Covid-19 roubou 100 mil futuros possíveis para o Brasil

08.ago.2020 - Márcio Antônio do Nascimento, que perdeu o filho Hugo Nascimento, vítima da covid-19, participa de ato em memória aos quase 100 mil mortos pela doença no Brasil, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro - JORGE HELY/FRAMEPHOTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO
08.ago.2020 - Márcio Antônio do Nascimento, que perdeu o filho Hugo Nascimento, vítima da covid-19, participa de ato em memória aos quase 100 mil mortos pela doença no Brasil, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro Imagem: JORGE HELY/FRAMEPHOTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Tony Marlon

10/08/2020 11h06

Perdemos: uma das nossas maiores presidentes da república, aquele que descobriria a cura da doença que mais nos atormenta. Quem mudaria a economia, transformaria a educação.

A primeira astronauta brasileira a chefiar uma missão espacial. Em seu casaco se lia: Peixinhos, Brasil.

Aquela que viria a ser a primeira ministra do meio ambiente vinda de uma cooperativa de catadores, o prodígio que voltou a pintar de verde e amarelo a Fórmula 1, trinta e cinco anos depois da morte do Senna. O camisa 9 do hexa, a nova 10 inesquecível que também se chamava Marta.

Partiram: quem iria pedir o namorado em casamento na próxima semana, a que não sabia que o sonho de ser mãe já havia acontecido em seu ventre. Um casal de cinco anos que esperava tudo isso passar para juntar as famílias numa cerimônia de três dias. Enfim sem máscaras, sempre sem medos, com abraços demorados cheios de um amor que insistem em não entender e respeitar.

Como se amor precisasse caber em entendimentos, como se para amar necessitássemos da aprovação do outro.

Se foram: quem enfim quitou a casa sonhada depois de 30 anos, prestação por prestação. Quem ganhou a camisa autografada do último campeão brasileiro, mas o presente chegou em casa dois dias depois da entrada no hospital. E ela que treinava seis horas por dia para correr a São Silvestre em homenagem ao pai, que se foi de câncer ano passado.

Ele amava correr pela manhã, ela amava qualquer coisa que fosse importante para ele. Tinha feito uma camiseta, tinha o rosto dos dois. Ficou numa gaveta ao lado da cama.

Você e eu não veremos mais: o senhor que cedeu seu lugar no ônibus naquela tarde que chovia e você voltava com compras pesadas. A mulher que uma vez insistiu para que o motorista esperasse alguém que parecia atrasado demais para o próximo ônibus. O motorista que esperou.

O garoto de 17 anos feliz com o primeiro emprego desde a semana passada, começo do próximo ano iria para o tão sonhado intercâmbio. Não deu tempo.

A vizinha que tinha um cachorro que latia engraçado, o vizinho que cantava Zeca Pagodinho no último volume. A senhora que sempre reclamava do barulho dos dois, mas era vista dançando no quintal quando tocava Ser Humano.

Cem mil brasileiros e brasileiras não poderão tocar a vida, como sugerem. Cem mil histórias foram interrompidas, cortadas ao meio, inacabadas. Cem mil sonhos, jeitos de viver. Pais, mães, tios, sobrinhas, filhos e filhas. Cem mil pessoas se foram, famílias e famílias em luto.

Quando uma de nós morre, o país perde um pouco de futuro também.

Contra a naturalização da barbárie recomendo doses diárias de Inumeráveis, de Relicário e de bom senso. Você pode querer não acreditar, criar mil motivos para não falar mais sobre isso ou viver uma normalidade inexistente, mas está na nossa frente a dor e o desafio de uma geração.

Nas palavras de Daniel Patrick Moynihan, qualquer um tem direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos. E o fato é que passamos de cem mil mortes, e aumentando. O fato é que enquanto você lia este texto possivelmente mais três brasileiros se foram.