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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cinema de rua da Rua Augusta fecha hoje; sobre importância e despedidas

Espaço Itaú de Cinema - Wiki Commons
Espaço Itaú de Cinema Imagem: Wiki Commons

16/02/2023 06h00

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Eu me lembro saindo daquele corredor, dos degraus. Eu me lembro da chuva. Me lembro das pessoas que caminhavam apressadas para cima, pra baixo. Eu me lembro das roupas que as pessoas vestiam, dos guarda-chuvas monocromáticos que elas usavam.

Eu me lembro de gente ao meu redor conversando curiosa se o que haviam entendido era mesmo aquilo que aquele diretor francês ainda pouco conhecido por aqui quis dizer, fazendo o filme que fez. E elas foram ver.

Eu me lembro de um casal que parecia se conhecer pouco ainda, ele perguntando os interesses gastronômicos dele. E ele respondendo que "sim, com você eu topo tudo. A gente vai". E depois os dois desceram a Rua Augusta.

Foi assim, foi desse jeito, que eu fui pela primeira vez num cinema que não fosse no Campo Limpo, que não fosse no meu bairro. Que não fosse numa periferia. Foi desse jeito que eu descobri que Santo Amaro era o centro para mim, mas para aquelas pessoas todas ali esperando a chuva passar, não. Muitas nem conheciam o que era.

Foi assim que eu conheci o Espaço Itaú de Cinema pela primeira vez. O conheci tantas muitas outras vezes, por duas décadas e 1 ano depois.

Eu soube: dia 16 de fevereiro, 28 anos depois de nascer, com uma sessão de filme grátis, a última floresta, do Luiz Bolognesi, e não poderia ser outro, encerram-se as atividades de um dos mais tradicionais cinemas de rua de São Paulo.

Agora, no Brasil todo, serão 3.163 salas.
Estados Unidos e Canadá têm 40.700.

A gente vai adiando o próximo encontro com quem a gente gosta, a gente vai adiando o próximo encontro com aquele lugar que a gente gosta, daí chega um dia que é 16 de fevereiro. E ele deixa de existir, e ela vai embora.

Me lembrei do que aprendi tem alguns anos atrás, não lembro com quem: o que transforma um espaço em lugar é a nossa habilidade de construir afeto e memória com ele. Lugar é quando eu significo um espaço. Daí toda vez que eu penso nele depois eu choro. Ou dou um suspiro profundo.

Por isso, eu que já comecei triste pelo fim de quem me acolheu tanto, continuei me entristecendo na matéria ao perceber que, pode ser, talvez, quem sabe, o jornalista que a escreveu pudesse já ter estado por lá tantas vezes, vivido por lá tantos amores, rompimentos também, E tinha nas mãos a chance de fazer uma manchete assim:

Cinema na Rua Augusta vai ser fechado. O lugar dará espaço a um espaço.

Eu sei, uma multidão talvez não entendesse. Quem lesse talvez comentasse bravo, algum engraçadinho transformaria em meme achando que fosse erro. O diretor do diretor do diretor de quem escreveu a matéria talvez não gostasse, demitiria todo mundo em quem manda, por isso. Mas seria uma homenagem e tanto, vai.

Cinema na Rua Augusta vai ser fechado. O lugar dará espaço a um espaço.

Eu li que vão construir um prédio, mais um. E aí, é capaz que vire o lugar para alguém também, mas, poxa, não teremos nunca mais o Espaço Itaú de Cinema para um domingo chuvoso de fevereiro.

Não teremos mais um lugar para aquele coração acelerado que se pergunta, olhando no relógio, se ela vem mesmo. Ou foi tudo um sonho combinarem aquele encontro. Eu sempre procurava essa pessoa da vez quando entrava lá.

Se ele vem mesmo, ou se encontrou o amor da sua vida justamente quando desceu do 857P - Terminal Campo Limpo - Paraíso, no ponto errado. E mesmo assim existiu um encontro que muda tudo. Quando é para acontecer, acontece. Não era você.

Não se terá mais: aquela demora com frio na barriga, esperando a vez de pedir um chocolate quente e talvez algo salgado para comer. Alguém que você quer beijar te esperando na mesa, disfarçando quando você olha.

Aquelas folhas caindo em cima de uma pessoa que só parou ali porque lá na rua está barulhenta demais: mãe, eu vou chegar mais tarde, tá? Preciso resolver um negócio.

Mateus é o nome do negócio.

Nem terá mais a senhorinha que olha longe num canto de parede, pensando que, se eu não me engano, eu já vim aqui uma vez. Na década de 1950, o 1470 da Rua Augusta era o Instituto Goethe.

O Espaço Itaú de Cinema, ou Anexo como dizem, vai fechar, vai acabar. 93.744 sessões depois. E eu sei que as coisas fecham, que as coisas acabam. Que a vida é fluxo, é circular. Eu, sei, eu sei. Aliás, eu amo a vida por isso. Mas o Espaço Itaú de Cinema, ou Anexo como chamam, vai fechar, vai acabar.

E eu a 2.651 quilômetros de distância nem conseguirei tomar um último café. Agradecer por ele ter sido tanto, por ter contado que o centro é tudo ao redor da gente. Que a cidade é de todo mundo.

Dizer que a gente ainda se esbarra por aí, quando eu for um senhorzinho na véspera da morte, já delirando as últimas imaginações e alguém me perguntar, baixinho: ei, você está vendo algum céu aí? E eu vou responder que, sim. Eu tô.

Tem dois banquinhos para pedir um café, outras mesas com casais sorrindo e uma árvore bonita que eu não vejo o fim.

O Ministério Público entrou com uma ação, tenta com a justiça impedir que o cinema e o café saiam dali. Enquanto você lê esse artigo é possível que tenha conseguido, que nada tenha deixado de existir. E que esse artigo tenha sido só uma declaração de amor de urgência.