Consciência social de Raí podia ser tão viralizável como vídeo do discurso
Raí foi a primeira pessoa famosa que eu me lembro de ter visto ao vivo. Ídolo no São Paulo, Paris Saint-Germain e campeão do mundo em 1994 com a seleção brasileira, naquela altura do começo dos anos 2000 ele se consolidava em outros campos. Ao lado do também ex-jogador Leonardo, trazia a Fundação Gol de Letra no mundo.
Gol de Letra é uma ONG que transforma positivamente a vida de muitas pessoas a partir das periferias de São Paulo. Une a entrega de ações socioeducativas, aquelas que completam o que crianças e jovens aprendem nas escolas, enquanto articula políticas públicas em favor de uma educação radicalmente melhor.
Na tarde em que nos conhecemos, eu era um adolescente que acreditava que jogador de futebol masculino só existia na TV, num campo. Ou em carros importados, longe do Brasil e da realidade da maioria de nós. Raí falou por alguns minutos sobre a importância de termos um projeto de país estruturado no equilíbrio das oportunidades e na reparação às injustiças estruturais. Destacou o papel de pessoas públicas feito ele para mover essas conversas dentro do debate nacional.
Naquele dia, eu voltei para casa pensando se outros jogadores que eu admirava pelo futebol também faziam coisas assim, pelo país. A resposta eu deixo para você.
Na semana passada viralizou uma imagem de Raí discursando em um dos muitos eventos organizados pela França em favor de um projeto de futuro que acolha, respeite e considere todas as vidas. O contrário disso é pensar que só algumas merecem respeito e proteção do Estado. Para as restantes, a violência do punho, das palavras e do esquecimento. Ovacionado ao subir no palco mesmo tantos anos depois de encerrar a carreira, Raí lembrou sobre o futuro que poderia acontecer por lá.
"No Brasil, vivemos um pesadelo. Quatro anos de misoginia, quatro anos de homofobia, preconceito, milhares de mortes, desmatamento. A extrema direita é o ódio. Se quisermos mudar a nossa realidade, o nosso poder de compra, a nossa vida, vamos mudar com uma estratégia, um projeto, uma nova política, mas os nossos valores fundamentais nunca devem mudar."
Sim, eu sei. Todas essas violências não acabaram como num passe de mágica, do dia para noite por aqui. Nem vão. Não são chamadas violências estruturais à toa. Mas uma coisa é o Estado construir estratégias que barrem e superem tudo isso. Outra bem diferente é este mesmo Estado banalizar e normalizar essas violências, institucionalizando que algumas vidas são menos vidas que as outras. Quando Raí subiu ao palco, resumiu esse risco. A população francesa entendeu o recado, basta olharmos os resultados eleitorais do domingo (7).
Por mais de uma vez, eu escrevi sobre o poder do esporte como uma plataforma de comunicação em defesa de valores como democracia e os direitos humanos. Em especial o futebol, que atravessa a vida de milhões de pessoas no país. As pessoas que ocupam as quatro linhas têm uma relevância afetiva imensa. A maioria delas tem uma autoridade imensurável, especialmente junto às juventudes. Não foi uma coincidência que ídolos franceses feito Konaté (Liverpool), Dembélé (PSG) e Koundé (Barcelona) tenham se mobilizado como se mobilizaram, nas últimas semanas.
Kilyan Mbappé, do Real Madrid, possivelmente o maior jogador desta geração, usou a visibilidade da Eurocopa em diversos momentos para defender uma visão de país, e de mundo, em que não existam pessoas de primeira e segunda classe. Vidas que sejam respeitáveis e outras que não. Consegue imaginar os jogadores do futebol masculino do Brasil botando a cara no sol desta maneira?
Em resumo, se juntando para defender um mundo que seja aquilo: um lugar em que todas as maneiras de ser e estar possam florescer e realizar o seu potencial, com todo o apoio possível para isso. Sendo respeitadas e acolhidas, sem distinções de qualquer natureza? Como alguém pode discordar de algo tão feijão com arroz? Mas, essas vozes existem. Estão cada vez mais fortes. Por sorte, outras feitas a de Raí, também.
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