'Ainda Estou Aqui': uma aula de cinema e de contação de história
Foi um silêncio daqueles em que deu para escutar até o que estava pensando cada uma das pessoas que saía da sala de cinema. O filme "Ainda Estou Aqui" é marcante como uma criação artística fora da curva, o que ele realmente é. Basta observar a sua repercussão em festivais mundo afora, o público que atraiu - mais de um milhão de pessoas já foi aos cinemas - e os rumores de chances crescentes de um Oscar para a Fernanda Torres. Mas esse filme ocupa uma outra importância como jeito de conversar as conversas difíceis do nosso tempo. Ao menos para mim.
Era uma vez o sequestro e morte de uma importante figura política brasileira, ex -parlamentar cassado pela Ditadura Militar. Neste filme, você acompanha o medo que cercava as pessoas e aquele tempo, a partir da história de sua esposa, Eunice, em busca de respostas e alguma justiça. Um jeito de assistir é assim.
Era uma vez uma família liderada por uma mãe, que tem o pai e marido arrancado de casa sem nenhuma explicação. E de uma mãe que fez o que precisava ser feito para criar suas filhas e o filho, enquanto buscava uma resposta aparentemente simples hoje, mas nem pouco lá atrás: onde é que ele está? E de suas filhas e seu filho que nunca tiveram o direito de ter aquele pai nas festas de aniversário ou no Natal. De dar um último abraço, de se despedir.
A primeira história conversa com algumas pessoas no Brasil de hoje. A segunda, com qualquer pessoa, em qualquer tempo. Eu não conheço ninguém que ache razoável ou normal desaparecer um pai ou mãe de família do dia para noite, deixando saudade, muita dor e cinco crianças pelo caminho.
Walter Salles nos entregou um jeito de conversar sobre um dos nossos períodos mais traumáticos dizendo que dentro de tudo aquilo que acontecia, que hoje a gente lê como História, tinha era um bocado de gente que fazia almoço aos domingos, que ia à praia. Um pai que desafiava o filho no pebolim, e se perder vê se chora baixo que está todo mundo dormindo. Aquelas pessoas que saíram do cinema saíram sabendo mais sobre como as coisas aconteciam na Ditadura Militar, como eram feitas. E saíram torcendo, disso eu tenho certeza, para não serem elas, algum um dia, a desaparecer de suas famílias. Sem nem poder dar um adeus.
Uma pessoa me falou sobre a importância histórica de um filme como este, num momento como este, e eu concordei com ela. Mas eu perguntei o que havia sentido, ao fim da sessão. Ela repetiu o que havia dito, com outras palavras. E daí eu perguntei de novo: o que você sentiu, no corredor de saída do cinema, quando "Ainda Estou Aqui" acabou? E ela variou a primeira resposta, mais uma vez. Foi quando esta coluna começou a tomar forma.
Grande parte do campo progressista brasileiro, e uma fatia cada vez maior da sua esquerda, segue apostando que a única maneira de mobilizar a sociedade é pelo convencimento teórico e intelectual. Parecem ter se esquecido que somos papel, caneta e coração, como canta o Emicida. As conversas não atravessam as calçadas onde as pessoas estão. Elas ficam do outro lado da rua, esperando que alguém vá até lá. Mas quem tem tempo? Quem tem força ou saúde para isso? Aí, num filme, domingo à tarde, ela aparece na tela.
Que o filme "Ainda Estou Aqui" nos lembre que existem muitas maneiras de se contar uma mesma história. E de nomear o que é preciso. Antes que sejamos nós a não estarmos mais aqui, contando história alguma.
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