Em 'Cem Anos de Solidão', o mágico é, antes de tudo, recurso político
De hoje em diante, o escritor colombiano Gabriel García Márquez e o seu "Cem Anos de Solidão", livro que o tornou conhecido em todo o mundo, não sairão das conversas e dos podcasts daquelas pessoas apaixonadas por filmes e séries. A aguardada história que segue as sete gerações da família Buendía estreia hoje, na Netflix.
Gabo, como era chamado, fez a sua passagem em abril de 2014, aos 87 anos de idade. Escritor, jornalista e roteirista, o colombiano foi um dos grandes intelectuais do seu país e um dos alicerces do que chamamos de realismo mágico latino-americano.
Mais do que um gênero, o realismo fantástico ou mágico é uma perspectiva narrativa em que o extraordinário atravessa a realidade cotidiana. Ele não é apenas um exercício estético, pois traz para a mesa profundas questões culturais e políticas de outras maneiras. Na América Latina, por exemplo, é um instrumento poderoso para questionar opressões, resgatar tradições orais e valorizar a visão de mundo de povos subalternizados. Percorrendo esse caminho, a literatura rompe com o racionalismo eurocêntrico e abraça outras formas de interpretar o mundo. As nossas formas de interpretar o mundo.
Em "Cem Anos de Solidão", Gabriel transformou o povoado fictício de Macondo em um palco onde o extraordinário e o cotidiano se entrelaçam de forma tão natural que as pessoas leitoras são convidadas a aceitar o impossível como parte da vida. Como bons brasileiros, tem dias que a gente acorda e acredita que segue num sonho, tão inacreditável é a nossa realidade.
Embora a obra esteja repleta de elementos fantásticos, aparentemente pouco palpáveis, eles são profundamente enraizados nas experiências e no contexto social da nossa região. A peste da insônia, que impede os habitantes de Macondo de dormir e os força a rotular os objetos para não esquecer seus nomes, pode ser lida como uma metáfora das crises de identidade e memória que assolaram o continente. Pode.
Além disso, a chuva que dura quatro anos, onze meses e dois dias pode simbolizar os tempos de sofrimento coletivo, como as guerras ou instabilidades políticas, transformando a realidade em uma narrativa carregada de simbolismo. E é por isso que os livros são tão fascinantes, necessários e temidos. É, geralmente, onde as pessoas e regimes totalitários primeiro atacam: na imaginação.
Em seu trabalho "A influência das ditaduras militares latino-americanas no realismo mágico", as autoras Gabriela Fialho, Isabela Castro, Isabella Rinelli e Luisa Englert destacam que "os escritores elaboraram, no realismo mágico, um estilo de escrita que encobre sutilmente as críticas ao totalitarismo, as quais não podiam ser perceptíveis, em razão do período marcado pela repressão e censura". Elas explicam que os simbolismos têm o papel de contar as coisas sem contar as coisas. Explicar o mundo pegando atalhos.
Antes ou depois de assistir a série, leia "Cem Anos de Solidão", o livro. Você não vai se arrepender. Aproveita o embalo e já vai conhecer outras obras do realismo fantástico ou mágico. Recomendo uma brasileira, bonita que só: "A Mulher que Pariu um Peixe: e Outros Contos Fantásticos de Severa Rosa", da Rai Soares. O mundo pode ser explicado de muitos jeitos.
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