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Como as mudanças climáticas afetam a vida cotidiana?

Homem carrega garrafão de água durante seca história no Amazonas em outubro de 2023 - Bruno Kelly/Reuters
Homem carrega garrafão de água durante seca história no Amazonas em outubro de 2023 Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Julia Moióli

Colaboração para Ecoa

19/08/2024 05h30

Diante de tragédias como a que aconteceu no Rio Grande do Sul, é fácil identificar as consequências dos eventos extremos causados pelas mudanças climáticas: chuvas intensas e enchentes deixaram cidades inteiras submersas, centenas de mortos e milhares de desabrigados, aeroportos e rodovias destruídas e plantações deterioradas - apenas para citar algumas.

Mas a verdade é que as alterações no clima do planeta já afetam a população diariamente, ainda que grandes catástrofes não estejam em curso. Alguns aspectos da vida cotidiana prejudicados, segundo o Fórum Econômico Mundial, são:

Saúde, com o aumento no risco de alergias e doenças respiratórias, além de surtos e pandemias;

Custo de vida, já que eventos extremos e o aumento do nível do mar comprometem as cadeias de suprimentos, elevando o preço e alterando a disponibilidade de produtos e serviços;

Infraestrutura das cidades e trânsito, prejudicados pelas ondas de calor, secas e chuvas;

Mercado de trabalho, uma vez que a má qualidade do ar e as altas temperaturas comprometem as condições de trabalho e a produtividade, e as perdas econômicas decorrentes de eventos extremos se refletem em diminuição dos salários;

Taxa de natalidade, com muitos casais desistindo de ter filhos por conta das mudanças climáticas e do futuro do planeta.

Quais problemas de saúde estão associados ao clima?

Ao longo do ano, com a mudança das estações, certas doenças se tornam mais ou menos comuns. Com o clima alterado, esse padrão também se intensifica.

"Nas ondas de calor, quando a temperatura aumenta, a umidade relativa do ar diminui, intensificando problemas circulatórios, cardíacos e respiratórios, como asma, bronquite e alergias", diz João Lima Sant'Anna Neto, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), inclusive, metade da população mundial poderá sofrer de algum tipo de alergia até 2050.

"Mais chuvas e enchentes, por sua vez, fazem com que as enfermidades de veiculação hídrica, como leptospirose e cólera, ocorram com maior frequência", completa Sant'Anna Neto.

As mudanças climáticas também favorecem surtos de doenças, como a dengue, que já registra mais de 4,5 milhões de casos só este ano. Isso porque o aumento da temperatura e as alterações no ciclo da água facilitam as condições para a proliferação do mosquito transmissor.

E você já percebeu que está até mais difícil dormir durante as ondas de calor? Pesquisadores da Universidade de Copenhague (Dinamarca) analisaram dados obtidos de pulseiras de monitoramento e descobriram que o aumento na temperatura noturna (especialmente quando as noites excedem 10ºC) é prejudicial ao sono e isso pode impactar o metabolismo, a produtividade e a saúde global.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) destaca ainda os impactos das mudanças climáticas na saúde mental: "As alterações climáticas minam muitos dos determinantes sociais para uma boa saúde, tais como os meios de subsistência, a igualdade e o acesso aos cuidados de saúde e às estruturas de apoio social."

O que está acontecendo com a água e com os alimentos?

Por conta das as mudanças climáticas, o país perdeu, nos últimos 30 anos, mais de 15% de sua superfície de água, o que equivale a uma vez e meia toda região do Nordeste, de acordo com o projeto MapBiomas, rede colaborativa, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia.

A crise hídrica já é vivida de perto pela maioria dos brasileiros. No ano passado, um temporal deixou 1,5 milhão de pessoas sem energia e, consequentemente, sem água na Grande São Paulo, uma das regiões mais prósperas do país.

Além disso, no dia a dia, notícias e relatos da população sobre falta d'água e racionamentos - especialmente cortes de abastecimento noturnos - são frequentes na imprensa e nas redes sociais.

Também há impacto direto na qualidade dos alimentos. "Com as sucessivas ondas de calor, é cada vez mais difícil, por exemplo, encontrar verdura fresca e boa no mercado", lembra Sant'Anna Neto.

A conta também fica cada vez mais cara: eventos extremos em todo o mundo afetam a produção agrícola, diminuem as safras e elevam os preços.

"Com o Rio Grande do Sul embaixo d'água, o preço da carne e do arroz, que são dois produtos típicos de lá, certamente será afetado."

Outro exemplo: quem comprou ovo de Páscoa este ano sentiu que o presente pesou no bolso - cerca de 10% mais que no ano anterior, para ser mais específico. A explicação: o preço do cacau duplicou no ano passado, por conta de alterações no ciclo de chuvas em Gana e na Costa do Marfim, os maiores produtores do planeta.

O que mais fica caro?

Não é só o preço dos alimentos que tem pesado no bolso. Com as altas temperaturas, usamos mais ventilador e ar-condicionado e aumentamos a temperatura da geladeira. Resultado: a conta de energia elétrica sobe.

Além disso, com mais surtos de doenças e com a intensificação de problemas de saúde, como os respiratórios, mais pessoas procura, pronto-socorros e hospitais e compram remédios - as faltas no trabalho também aumentam.

Quem é mais afetado?

As pessoas vulneráveis têm sido desproporcionalmente afetadas pelos impactos das alterações climáticas, de acordo com o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

"A vulnerabilidade é maior em locais com pobreza, desafios de governança e acesso limitado a serviços e recursos básicos, conflitos violentos e elevados níveis de meios de subsistência sensíveis ao clima (por exemplo, pequenos agricultores, pastores, comunidades piscatórias)", aponta o documento.

Como podemos nos adaptar?

"A primeira coisa que temos que ter em mente é que a natureza do clima é a mudança - ele sempre mudou ao longo da história da humanidade e vai continuar mudando", diz Sant'Anna Neto, da Unesp. "O diferencial é que, no atual momento que estamos vivendo, essa mudança é muito mais acelerada, por isso vamos senti-la cada vez mais, de várias maneiras."

De acordo com a NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration), agência do governo dos EUA encarregada da previsão e do monitoramento do clima, em seu site Climate.Gov, "os seres humanos podem adaptar-se às alterações climáticas reduzindo a sua vulnerabilidade aos seus impactos.

"Aqui no Brasil, não temos ainda uma cultura de percepção do risco - e me refiro a coisas simples, como acompanhar a previsão do tempo", acredita Michel Nobre Muza, professor do curso técnico de meteorologia do IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina).

"A maioria das pessoas não se atenta com antecedência, por exemplo, para as altas temperaturas e baixa umidade do ar das ondas de calor e acaba sofrendo mais com desidratação e problemas respiratórios; outro exemplo é a exposição frequente em casos de tempestades, quando deveriam se planejar para evitar certas exposições no período."

Entre as ações sugeridas pela NOAA estão: mudança para terrenos mais elevados para evitar a subida do nível do mar, plantação de novas culturas que podem prosperar sob novas condições climáticas e utilização de novas tecnologias de construção. Mas lembra: "A adaptação requer frequentemente investimento financeiro em pesquisa, tecnologia e infra-estrutura nova ou melhorada."

Fonte: João Lima Sant'Anna Neto, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Michel Nobre Muza, professor do curso técnico de meteorologia do IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina), "Climate change, thermal anomalies, and the recent progression of dengue in Brazil", "Rising temperatures erode human sleep globally", Fórum Econômico Mundial, IPCC, MapBiomas Brasil, NOAA, OMS, ONU.