Como o desperdício de alimentos afeta as mudanças climáticas?
Julia Moióli
Colaboração para Ecoa, de São Paulo
30/09/2024 05h30
Todos os anos são produzidas 4 bilhões de toneladas de alimentos no planeta. Estimativas do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) indicam que um terço desse total seja desperdiçado. Nos aterros sanitários (e lixões, em grande parte do mundo), esse lixo orgânico sofre decomposição, produzindo GEE (gases de efeito estufa), que causam o aquecimento global e contribuem para a mudança climática.
De acordo com a FAO (sigla em inglês para Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), a perda e o desperdício de alimentos são responsáveis por até 10% das emissões globais de GEE. Para efeito de comparação, isso representa quase cinco vezes o total do setor de aviação e, se representasse um país, seria o terceiro maior emissor do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
"Um desses GEE é o metano, que é 20 vezes mais eficiente como um gás de efeito estufa que o próprio dióxido de carbono", alerta Tercio Ambrizzi, diretor do IEE (Instituto de Energia e Ambiente) e coordenador do INCLINE (Interdisciplinary Climate Investigation Center), núcleo de apoio a pesquisa em mudanças climáticas, ambos da USP (Universidade de São Paulo).
Mas não é só isso. A produção e distribuição de alimentos demanda recursos, como água (o setor é responsável por 70% das retiradas), energia e terra, que também acabam jogados fora.
"Já existe um impacto por si só, uma vez que perturbamos a organização natural de um ecossistema ao promover a mudança do uso da terra, a perda do habitat natural de diferentes espécies de animais e a liberação de carbono armazenado no solo, porém com o propósito de produzir alimentos pra humanidade", diz Nadine Marques, pesquisadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública da USP. "Quando ocorre desperdício, esse propósito se perde."
"Há ainda a questão do transporte - majoritariamente rodoviário, no Brasil - do campo para a indústria e, de lá, para os supermercados e residências e a maneira como os alimentos são comercializados, que desestimula o consumo de frutas 'amassadinhas' e folhas imperfeitas", completa Priscila Coltri, coordenadora do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas a Agricultura (CEPAGRI) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Some a esses dados um agravante de peso: um terço da população mundial vive em situação de insegurança alimentar e 783 milhões de pessoas literalmente passam fome. Por todos esses motivos, o ODS (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) 12 da ONU, que trata de padrões de consumo e produção sustentáveis, estabelece a meta de reduzir pela metade do desperdício global de alimentos per capita nos níveis de varejo e consumidor até 2030.
Raio-x do desperdício
Segundo o Food Waste Index Report 2024, relatório do PNUMA sobre o tema, a maior parte do desperdício vem das residências - 60% do total de 631 milhões de toneladas, em 2022 -, seguido dos setores de serviços de alimentação e varejo. O documento também mostra que:
Em 2022, 1,05 bilhão de toneladas de alimentos foram desperdiçadas. Isso equivale a quase 20% dos alimentos disponíveis para consumo nas residências, nos supermercados e nos serviços de alimentação.
Na cadeia de abastecimento, da pós-colheita até chegar ao comércio, as perdas são de 13%.
Famílias jogam fora pelo menos um bilhão de refeições por dia - ou 1,3 refeições diárias que poderiam ser destinadas a todos os afetados pela fome no mundo. Por pessoa, o número anual do desperdício é de 79 kg de alimentos.
Quem desperdiça?
A resposta assusta: todo mundo. Segundo a ONU, desperdício não é só coisa de país rico. A variação entre nações de alta, média e baixa renda é de apenas 7 quilos por pessoa por ano.
Outro dado importante é que países mais quentes desperiçam consideravelmente, por conta da dificuldade em armazenar, processar, transportar e vender alimentos com segurança.
"Uma pesquisa da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP) em Piracicaba, por exemplo, mostra um nível de perda significativa em estabelecimentos comerciais por falta de estrutura de refrigeração adequada, que reduz a duração dos produtos", conta Carlos Eduardo de Freitas Vian, professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da instituição.
Dá para resolver o problema?
De acordo com os especialistas consultados por Ecoa, entre as ações sistêmicas necessárias para lidar com o desperdício de alimentos estão:
Melhorar o sistema de produção, tornando-o mais sustentável, emitindo menos gases de efeito estufa e, inclusive, sequestrando grande parte desses gases.
Desenvolver novas formas de uso dos resíduos orgânicos, como conversão em energia ou na forma de combustível. Se bem utilizado, esse lixo orgânico pode até mesmo mitigar as emissões de gases de efeito estufa.
Investir em ciência e tecnologia para aumentar a vida útil dos alimentos em geral.
Incentivar a educação e a conscientização da população sobre o que e quanto comprar, como comprar e armazenar.
Mas o problema também deve ser abordado em nível individual: "Atitudes individuais sempre contaram", reforça Ambrizzi, da USP. "É o clássico exemplo das formigas que, no período de seca, trabalham em conjunto para armazenar sua alimentação."
Faça um planejamento de refeições consistente, de acordo com o tamanho da sua família ou do número de pessoas que moram na mesma casa. Leve em conta também se você pretende pedir delivery durante a semana para não perder alimentos já adquiridos e evite itens descartáveis que costumam acompanhar essas refeições, como talheres, copos e guardanapos.
"O lixo produzido pela indústria da alimentação não pode ser negligenciado", diz Luciana Quintão, fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos, idealizadora do documentário "A Cultura do Desperdício" e autora do livro "Inteligência Social - A perspectiva de um mundo sem fome(s)". "E isso inclui os sacos plásticos de supermercado, que vão parar nos oceanos."
Na hora das compras, vale dar preferência a produtos da estação e produzidos em localidades próximas (mercados de agricultores costumam ser boas opções) e não deixar de lado aqueles que não estão tão bonitos visualmente.
Na nossa cultura, é comum ouvir que é melhor sobrar do que faltar, mas isso não é mais verdade. O melhor seria ter o suficiente bem distribuído para todo mundo, e não sobrar e virar desperdício, com todos esses efeitos. Nadine Marques, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP
Em casa, armazene com eficiência, especialmente alimentos frescos e in natura, que devem ser refrigerados (aliás, já checou se sua geladeira está bem vedada?). Não deixe os secos vencerem na despensa. Aproveite cascas, talos e sementes e aposte em compostagem domiciliar.
Fonte: Carlos Eduardo de Freitas Vian, professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP); Luciana Quintão, fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos, idealizadora do documentário "A Cultura do Desperdício" e autora do livro "Inteligência Social - A perspectiva de um mundo sem fome(s)"; Nadine Marques, pesquisadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública da USP; Priscila Coltri, coordenadora do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas a Agricultura (CEPAGRI) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); Tercio Ambrizzi, diretor do IEE (Instituto de Energia e Ambiente) e coordenador do INCLINE (Interdisciplinary Climate Investigation Center), núcleo de apoio a pesquisa em mudanças climáticas, ambos da USP (Universidade de São Paulo); PNUMA [https://www.unep.org/pt-br]; e Food and Agriculture Organization of the United Nations [https://www.fao.org/].