Quais os desafios da reciclagem no Brasil?
Bárbara Therrie
Colaboração para Ecoa, em São Paulo
09/11/2024 05h30
Em 2022, o Brasil recolheu cerca de 63,8 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos. Desse total, reciclou, a partir da coletiva seletiva municipal, apenas 1,87 milhão de toneladas, o que equivale a menos de 3%, segundo dados publicados no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades.
Atualmente as latas de alumínio e garrafas PET são os itens mais reciclados no país. Mas a taxa geral de reciclagem permanece baixa, o que aponta para alguns desafios, como a pouca demanda do mercado e a falta de infraestrutura, entre outros.
De acordo com a legislação brasileira, a hierarquia de resíduos possui a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
"A reciclagem sozinha não irá solucionar a crise que o Brasil enfrenta em relação aos resíduos, e nem deveria ser considerada a maior prioridade. Quando a responsabilidade é transferida para os municípios resolverem a gestão de resíduos através da reciclagem, a conta não fecha", avalia Rafael Eudes, engenheiro químico e membro do comitê gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil.
Conheça as principais dificuldades da reciclagem em nosso país:
Pouco conhecimento da população
Muitas vezes, não é possível determinar se um item é reciclável. Cada material tem um potencial diferente de reciclagem e aqui não estamos falando apenas de vidro, metal, papel e plástico, mas também nos diferentes tipos de metais (alumínio, metais ferrosos) e diferentes tipos de plásticos (polietileno, polipropileno, policloreto de vinila, poliestireno, PET) — para citar os mais importantes.
Diante dessa complexidade, grande parte dos consumidores desiste de tentar entender a reciclagem e de que forma poderia contribuir.
"Não vejo como maior problema a falta de informação, mas a falta de confiança no setor público que cuida do assunto", diz Bettina Susanne Hoffmann, professora das disciplinas Avaliação de Ciclo de Vida e Gestão da Inovação em Polímeros, na Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"O consumidor não precisa necessariamente saber se um item é reciclável ou não. Mas, para que um indivíduo se dê ao trabalho de separar e limpar o que enxerga como potencialmente reciclável, ele tem que confiar que esse esforço valerá a pena, ou seja, que uma pessoa qualificada receberá o resíduo, julgará se há viabilidade técnica e econômica para reciclagem e encaminhará de acordo para comerciantes de materiais recicláveis ou para um aterro sanitário", completa Hoffmann.
Para a docente, investir em informação e educação é importante para aumentar as taxas reciclagem até certo ponto, mas, para chegar a níveis mais altos da prática, são necessárias mudanças mais profundas de gestão, tecnologias e materiais utilizados.
De acordo com o engenheiro químico Rafael Eudes, mesmo que a população tenha conhecimento sobre reciclagem, a ausência de coleta seletiva e de pontos de coleta voluntária e o formato das embalagens são outros pontos que dificultam o processo.
"Muitos produtos já saem da fábrica com design que não incentiva o aproveitamento do material reciclado, e as empresas não são responsabilizadas por isso através de uma legislação robusta", diz ele.
O Brasil tem infraestrutura adequada para reciclar?
O Brasil é um país com dimensões continentais e diferenças regionais significativas, o que dificulta fazer essa afirmação para o país como um todo.
As grandes regiões metropolitanas do Sudeste, mais ricas e com maior densidade populacional, possuem infraestrutura aceitável para reciclagem. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, tem infraestrutura para reciclar vidro, alumínio, garrafa PET e outros plásticos.
Já as áreas mais remotas do Norte e Nordeste não possuem nenhuma infraestrutura neste sentido, fazendo com que a população não tenha como destinar seus resíduos da forma adequada.
Custo da logística reversa
A logística reversa viabiliza a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou destinação final ambientalmente adequada.
Porém, a reciclagem só tem viabilidade econômica quando realizada em grande escala e reciclar materiais em áreas remotas não é viável para a indústria por falta de praticabilidade da logística reversa.
"Não se paga para trazer garrafas PET do interior de Minas Gerais para um grande centro urbano/industrial onde as indústrias de reciclagem operam. Enquanto não houver subsídios para viabilizar essa logística, regiões de baixa densidade populacional ficarão de fora das cadeias de reciclagem", afirma a professora Hoffmann, da UFRJ.
Para entender os desafios atuais, é necessário compreender o histórico de logística do Brasil e do mundo. Desde a década de 50, a economia era baseada em embalagens retornáveis. Isso significava que as empresas eram responsáveis por fazer a logística reversa de suas próprias embalagens, elas eram separadas, coletadas, higienizadas para, em seguida, serem reutilizadas.
Com a diversificação dos produtos e após o aumento da produção de embalagens de plástico de uso único, a responsabilidade e os custos da logística foram transferidas das empresas para os municípios, que ficaram sobrecarregados.
"Relatórios apontam que empresas como a Coca-Cola sabiam desde a década de 70 que a embalagem mais ambientalmente adequada é a de vidro retornável. No entanto, a indústria do plástico moveu sua economia para embalagens de plástico descartáveis para reduzir os seus próprios custos de logística, criando um enorme desafio para os municípios", comenta Rafael Eudes, membro do comitê gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil.
Recuperação de materiais de forma pura
A recuperação de materiais de forma pura é um problema que acontece especialmente com os plásticos devido à diversidade de tipos, cores, pelo fato de perderem a qualidade quando são reciclados e receberem a adição de substâncias químicas, às vezes tóxicas.
Geralmente os plásticos são utilizados em misturas, como as embalagens multicamadas feitas de diferentes tipos de plástico em combinação com alumínio. É o caso das embalagens de biscoito ou salgadinhos.
"A recuperação dos materiais de forma pura é tecnicamente possível, porém, economicamente inviável. Na reciclagem desses produtos é produzido um compósito que mistura os diferentes materiais e ele não pode mais ser aplicado na mesma função. Ou seja, esse plástico não poderá ser reaproveitado como plástico em embalagens, mas como mistura plástico/alumínio", explica a professora Hoffmann.
Para esses casos, há empresas que produzem telhas a partir de embalagens usadas. Esse processo pode ser chamado de "downcycling" (em vez de "recycling"), uma vez que o produto tem qualidade e preço inferiores que o material original, e, ao fim não sua vida, não tem potencial de reciclagem.
De acordo Rafael Eudes, a solução para os plásticos está no começo da cadeia através do banimento dos materiais não essenciais, a implementação de novos negócios de reuso e, por último, a reciclagem dos materiais restantes. Uma pesquisa da Fundação Ellen MacArthur sinaliza para a geração de negócios da ordem de 10 bilhões de dólares envolvendo a substituição de 20% das embalagens plásticas de uso único para reutilizáveis.
O descarte incorreto dos materiais é prejudicial?
Sim, o vazamento de resíduos no meio ambiente pode causar diversos impactos como poluição, perda de biodiversidade e mudança do clima. Um estudo recente da Sea Shepherd, organização sediada nos EUA que luta pela preservação da vida marinha, identificou que todas as praias brasileiras estão poluídas por plástico, que correspondem a 91% dos resíduos encontrados nelas.
Descartar produtos recicláveis junto com resíduos orgânicos em lixeiras também pode levar à contaminação de materiais através de gorduras e líquidos que atrapalhar o trabalho de quem realiza a triagem e muitas vezes inviabiliza o seu reaproveitamento. A contaminação de papelão com óleo pode impedir a reciclagem do papelão, por exemplo.
O lixo reciclável deve estar relativamente limpo e seco (retirar restos de alimentos e esvaziar líquidos) para evitar a atração de vetores como ratos e baratas no local de armazenamento e triagem. Para fazer a coleta seletiva, basta separar o lixo em duas frações: reciclável e não reciclável.
Os resíduos recicláveis são encaminhados para cooperativas onde pessoas treinadas fazem a separação em grande número de frações: plásticos, vidros, metais, papel e papelão, conforme seus respectivos subgrupos. Após a triagem, o material é armazenado para acumular uma quantidade suficiente para comercialização.
Quais os impactos da reciclagem na economia?
Atualmente temos uma economia extremamente dependente da extração de matéria-prima virgem, gerando uma falta de incentivo na reinserção de materiais na cadeia de produção. Quanto mais reciclamos, menos precisamos de material virgem, porém, se pegarmos como exemplo o papel, papelão e plástico, o preço da matéria-prima virgem é mais barato que o material reciclável.
"Enquanto sociedade, podemos afirmar que a falta de reciclagem implica em perdas econômicas. Quando colocamos um raio mais restrito, existem grandes empresas que são ligadas ao setor petroquímico e de produção de plásticos. Uma substituição significativa de plásticos virgem por plásticos reciclados significaria uma perda econômica para essas companhias. A resistência por parte do setor petroquímico para reduzir a produção e aumentar a reciclabilidade de plásticos é perceptível e problemática, considerando a crise e a poluição desses materiais", diz a professora Hoffmann.
Existem legislação e políticas públicas relacionadas à reciclagem no país?
Sim, no Brasil as inciativas legislativas mais importantes são o decreto nº 11.413, de 13 de fevereiro de 2023; e o decreto nº 11.414, de 13 de fevereiro de 2023, que instituem o Certificado de Crédito de Reciclagem de Logística Reversa, o Certificado de Estruturação e Reciclagem de Embalagens em Geral e o Certificado de Crédito de Massa Futura, tal como o Programa Diogo de Sant'Ana Pró-Catadoras e Pró-Catadores para a Reciclagem Popular e o Comitê Interministerial para Inclusão Socioeconômica de Catadoras e Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis.
O que falta no Brasil e que já acontece em outros lugares, como na União Europeia, é a obrigatoriedade em utilizar material reciclável (recycled content, em inglês). Atualmente está em pauta na ONU um tratado mundial sobre a poluição por plásticos. A próxima rodada de negociação ocorrerá em novembro, na Coréia do Sul.