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O que são pontos de não retorno e quão perto estamos deles?

Cena do filme "O Dia Depois de Amanhã" (2004) Imagem: Reprodução

Bárbara Therrie

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

05/01/2025 05h30

Antevistos por estudiosos e roteiristas, os chamados pontos de não retorno, em que ecossistemas terrestres se tornam incapazes de retornar a seu estado natural, estão mais próximos de se tornar realidade.

Esse risco foi primeiro descrito pelo célebre cientista inglês James Lovelock, autor da famosa hipótese Gaia. Depois, virou tema de filmes, como "O Dia Depois de Amanhã" (2004), que mostra mudanças drásticas na vida e no equilíbrio do planeta devido ao colapso de uma corrente oceânica.

A ciência já identificou mais de vinte componentes do sistema terrestre que correm risco de atingir pontos de não retorno em decorrência das mudanças climáticas. Entre os principais estão o degelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental, o derretimento do solo do Ártico, conhecido como permafrost, a desaceleração da circulação no oceano Atlântico Norte (retratada em "O Dia Depois de Amanhã"), a morte dos recifes de corais de águas quentes e o colapso da Floresta Amazônica.

A seguir, especialistas explicam o que são pontos de não retorno, quão perto estamos de atingi-los e quais as consequências para as pessoas e para o planeta.

O que são pontos de não retorno?

Ponto de não retorno, também conhecido como ponto de inflexão, é uma adaptação do conceito em inglês de "tipping point", que significa a aceleração de uma mudança no sistema, passando de um estado de equilíbrio para outro. Quando isso ocorre, o sistema se reorganiza de uma nova forma, potencialmente desencadeando um efeito dominó, e dificilmente as coisas voltam a ser como antes.

"Os impactos ambientais causados pelo aquecimento global podem se agravar a um ponto em que componentes do sistema terrestre se tornam incapazes de manter seu estado natural", explica o meteorologista Wagner Soares, mestre em Meteorologia Agrícola e doutor em Meteorologia pelo Inpe (Instituto nacional de Pesquisas Espaciais). "Esses componentes sofrem mudanças abruptas que podem ser irreversíveis, isto é, atingir um ponto de não retorno".

O que determina um ponto de não retorno?

Os ecossistemas estão sempre expostos a condições estressantes que ajudam a moldar sua resiliência, como chuvas fortes, temperaturas extremas, falta de nutrientes no solo etc. Quando o estresse aumenta sobre um ecossistema, ele pode resistir e se adaptar até certo ponto, mantendo intactas suas funções e características. No entanto, existe um limite.

"Quando o estresse se torna excessivo, alguns ecossistemas possuem um ponto a partir do qual passam a se comportar de maneira não linear, isto é, mudam abruptamente para um outro estado", diz Bernardo Flores, doutor em ecologia e pesquisador colaborador da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. "Isso acontece porque algum feedback (mecanismo de retroalimentação ou círculos viciosos e virtuosos) entra em ação", completa.

Quais os perigos de atingir os pontos de não retorno?

Atingir pontos de não retorno pode danificar gravemente os sistemas de suporte à vida na Terra e ameaçar a estabilidade das sociedades globalmente. Além disso, um ponto de não retorno poderá desencadear outro, causando um efeito dominó de danos acelerados e incontroláveis.

Segundo o pesquisador Bernardo, isso impulsionará o aquecimento global para um outro patamar, podendo elevar a temperatura média global a até 10 graus acima da atual e tornando as condições climáticas insuportáveis para boa parte das formas de vida. "Isso aconteceu milhões de anos atrás e poderia acontecer novamente se considerarmos esses feedbacks do clima com os elementos da biosfera", comenta.

O meteorologista Wagner Soares alerta que é fundamental a sociedade agir agora para evitar um colapso climático irreversível. "A emergência climática não permite mais atrasos. Se quisermos ter alguma chance de manter nossas condições de vida no planeta, é necessária uma ação global urgente para reduzir drástica e rapidamente as emissões de gases de efeito estufa".

Como estimar os riscos de um ponto de não retorno?

Existem algumas formas usadas pelos cientistas para identificar problemas e estimar pontos de não retorno, mesmo em ecossistemas que aparentam estar bem:

- Monitoramento e identificação de tendências no comportamento dos ecossistemas ao longo do tempo ou em grandes áreas.

- Simulações sofisticadas realizadas em supercomputadores que permitem antecipar respostas dos ecossistemas ao aumento da temperatura média global.

- Conjunto de análises estatísticas, que permitem entender se um ecossistema que aparenta estar bem está perdendo resiliência de forma silenciosa (fenômeno chamado de desaceleração crítica).

Quão perto estamos dos pontos de não retorno?

A humanidade enfrenta hoje um risco nunca antes registrado de atingir pontos de inflexão que podem desencadear um efeito dominó de consequências ambientais planetárias.

Um estudo preparado por mais de 200 pesquisadores e apresentado durante a COP28 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) mostra que, se ultrapassarmos o limite de aumento de 1,5°C da temperatura média em relação ao período pré-industrial, oito importantes ecossistemas naturais poderão atingir o ponto de não retorno.

Com o aquecimento global atual, de aproximadamente 1,3°C, cinco deles já estão ameaçados de danos irreversíveis:

1 - Morte dos recifes de corais


O branqueamento de corais na Austrália é um exemplo de como a ameaça do aquecimento global é grave. Atualmente, a região está com alerta no nível 5 (máximo) pelo Coral Reef Watch, Agência de Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos da (NOAA). A instituição ressaltou que o mundo está prestes a ter o quarto evento de branqueamento em massa de corais.

"O branqueamento ocorre quando as temperaturas marinhas ficam 1°C acima da média em longo prazo. Diante desse estresse térmico, os corais expulsam as algas que vivem em seus tecidos, o que leva à perda de suas cores vibrantes. O ponto de não retorno, em que 90% dos corais podem ser perdidos, é 1,5 °C de aquecimento em longo prazo. O desaparecimento de todas as espécies de corais pode acontecer se a temperatura média global atingir 2°C acima das temperaturas do período pré-industrial", explica Wagner Soares.

A situação também é alarmante no Brasil. Pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas observaram uma mortalidade sem precedentes em recifes de corais no litoral de Alagoas. O recorde da temperatura do oceano Atlântico este ano, o fenômeno El Niño e as mudanças climáticas elevaram em cerca de 3°C a temperatura média da água, chegando a 34°C. O monitoramento indica que a mortalidade pode ultrapassar 90% dos corais estudados.

Na avaliação do pesquisador Bernardo, os recifes de corais são provavelmente o ecossistema mais frágil do planeta e que devem colapsar primeiro. "A perda dos recifes vai desequilibrar as redes de trocas de energia entre os seres vivos marinhos, levando à extinção de espécies-chave para a sustentação da vida. Além disso, vai impactar atividades socioeconômicas para nós humanos e, principalmente, para povos indígenas e comunidades locais que dependem desses recursos".

2 - O descongelamento do permafrost


O permafrost é um tipo de solo da região do Ártico que, com temperatura média anual abaixo de 1°C, permanece congelado por pelo menos dois anos consecutivos. Seu degelo é um ponto de não retorno perigoso, pois esse ecossistema funciona como um enorme reservatório de carbono. O aumento da temperatura média causa o derretimento do permafrost, que libera mais gases de efeito estufa para a atmosfera, formando assim um ciclo vicioso que acelera o aquecimento global.

"O risco de isso acontecer é preocupante porque o permafrost preserva material orgânico acumulado há milhares de anos em altas latitudes do hemisfério norte. Estima-se que os três metros superiores de solos de permafrost terrestre congelado armazenem cerca de 1.035 GtC (gigatoneladas de carbono), volume que supera em 50% o carbono presente na atmosfera", explica o meteorologista Wagner.

Modelos complexos do sistema terrestre indicam que o degelo do permafrost poderá adicionar até 0,7°C ao aquecimento global até 2100. Para cada grau de aquecimento global, espera-se uma perda de 25% no volume global de solo congelado ao longo de anos. Uma outra consequência do degelo do permafrost é a possível liberação de patógenos antigos desconhecidos, com riscos à saúde humana e à biodiversidade.

3 - Desaceleração do sistema de correntes oceânicas do Atlântico


Evidências científicas apontam que a circulação meridional do Atlântico (AMOC), um sistema de correntes oceânicas que transporta águas quentes e frias para diferentes regiões do planeta, está desacelerando. O possível colapso dessa corrente é uma enorme ameaça para o equilíbrio climático da Terra, com consequências drásticas para o transporte de calor e a distribuição de chuvas em grande parte do planeta.

"O colapso da corrente oceânica meridional do Atlântico mudaria o clima de todo o planeta, tornando mais secas algumas regiões tropicais, como o norte da Amazônia, e o norte da Europa muito mais gelado", diz o professor Bernardo.

4 e 5 - Colapsos dos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental


Os mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental cobrem grandes extensões. Eles desempenham um papel crucial no armazenamento de água doce em áreas continentais, regulando os padrões climáticos globais, mantendo o atual nível dos oceanos e influenciando o equilíbrio dos principais ecossistemas do planeta.

Evidências indicam que estamos nos aproximando perigosamente dos limites de temperatura para as camadas de gelo dessas duas regiões. Se os pontos de não retorno forem atingidos, as consequências serão um aporte gigantesco de água doce nos oceanos, a elevação do nível do mar em escala global (de até 10 metros a longo prazo) e a modificação das correntes oceânicas.

Em ambas as áreas, conforme o gelo se derrete, canais se formam por dentro das geleiras, com a chamada percolação da água, acelerando o derretimento de áreas enormes, que começam a se fraturar e romper. Outra questão é a redução do reflexo de luz solar pelo gelo e a absorção pela superfície terrestre, aumentando a temperatura do solo e acelerando o degelo.

E como está a Floresta Amazônica?

A possibilidade de a Amazônia atingir um ponto de não retorno no futuro próximo tem gerado preocupação em todo o mundo, por sua relevância ambiental, cultural e econômica. A floresta, que tem 60% de sua área no Brasil, abriga mais de 10% da biodiversidade terrestre do planeta e armazena uma quantidade de carbono equivalente a 15-20 anos de emissões globais de CO2. Sua cobertura tem um efeito de resfriamento líquido (pela evapotranspiração) que ajuda a estabilizar o clima no mundo.

O desmatamento e os incêndios florestais, somados a mudanças climáticas desencadeadas pelo enfraquecimento das correntes no Atlântico Norte, podem provocar um colapso do ecossistema amazônico. Estima-se uma perda de mais 250 bilhões de toneladas de CO2 até a floresta atingir o ponto de não retorno, o que pode levar de 30 a 50 anos. De acordo com o meteorologista Wagner, esse processo transformaria a floresta tropical em uma savana, com vegetação constituída de gramas, arbustos e árvores esparsas e uma transpiração bastante reduzida.

Segundo Bernardo, um dos autores do artigo "Transições críticas no sistema florestal amazônico?", publicado na prestigiosa revista Nature em fevereiro de 2024, os impactos na Amazônia envolveriam a perda irreversível de biodiversidade e de importantes valores culturais e socioeconômicos.

"A Amazônia abriga mais de 40 milhões de pessoas, incluindo 2,2 milhões de povos indígenas de mais de 300 etnias, bem como comunidades afrodescendentes e tradicionais locais. Os povos indígenas e comunidades locais seriam prejudicados pela perda florestal em termos de seus meios de subsistência, modos de vida e sistemas de conhecimento que inspiram sociedades globalmente", alertam ele e outros 24 estudiosos no artigo.

Fonte: Wagner Soares é meteorologista, mestre em meteorologia agrícola, doutor em Meteorologia pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e pós-doutor na área de mudanças climáticas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente, trabalha na Biotec Amazônia e é colaborador da editoria de Ecoa; Bernardo Flores, doutor em ecologia, pesquisador colaborador da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, atua como professor no programa de pós-graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina e é o primeiro autor do artigo "Transições críticas no sistema florestal amazônico", publicado na revista Nature em fevereiro de 2024

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