Os cientistas concordam sobre as mudanças climáticas?
Bárbara Therrie
Colaboração para Ecoa, de São Paulo
22/12/2024 05h30
Na metade do século 19, mais especificamente em 1856, os experimentos da cientista amadora e ativista dos direitos das mulheres Eunice Foote apontaram evidências de que o gás carbônico (CO2) tinha uma capacidade significativa de aquecer quando exposto à luz solar.
Após colocar termômetros de mercúrio em dois cilindros de vidro (em um havia ar comum, no outro, dióxido de carbono) e os expor aos raios solares e à sombra, a norte-americana constatou que a temperatura estava mais alta no cilindro contendo CO2. Com a descoberta, Foote se tornou a primeira cientista a propor uma relação entre o aumento de CO2 na atmosfera e o aquecimento global.
"A partir de experimentos simples, ela conseguiu obter evidências relevantes, que a levaram a correlacionar de forma pioneira a concentração de certos gases com o aquecimento da atmosfera", diz Fábio da Silva, pesquisador do Laboratório Cenergia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Seus resultados, porém, foram apresentados na reunião de 1856 da American Association for the Advancement of Science por Joseph Henry, secretário do Smithsonian, que não reconheceu plenamente sua relevância", completa.
Passados 168 anos, a correlação de Foote sobre o aquecimento global, hoje o principal responsável pela crise climática, é consenso na comunidade científica.
"Atualmente existem alguns importantes observatórios no mundo que acompanham a evolução da temperatura média do planeta e do aumento da concentração de CO2 na atmosfera, cujas evidências vêm confirmando as tendências previstas pela ciência séria há muito tempo. Não à toa, o sexto e mais recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) traz em seu primeiro parágrafo que é inequívoca a influência humana sobre o aquecimento global, fruto da mais sofisticada e moderna revisão de trabalhos da ciência climática que há no mundo", afirma Fábio da Silva.
Em que pontos há consenso sobre as alterações no clima?
O aquecimento global tem origem antropogênica, ou seja, é causado pelo ser humano. Atualmente, quase todas as atividades humanas emitem GEE (gases de efeito estufa). Globalmente, a maior parte das emissões vêm da queima de combustíveis fósseis, que são substâncias formadas essencialmente por carbono mineral. Ao queimar essas substâncias, seu carbono é convertido majoritariamente a CO2, um gás extremamente estável, capaz de se acumular por milênios na atmosfera.
O dióxido de carbono é responsável por cerca de 75% do aquecimento global, sendo o principal gás de efeito estufa. As moléculas dos gases de efeito estufa, em especial do CO2, absorvem radiação na faixa de frequência que a luz solar é refletida pela superfície da Terra, fazendo-as vibrar e, com isso, aumentando a temperatura. É mais ou menos o mesmo princípio que um micro-ondas usa para aquecer alimentos. O efeito estufa é um fenômeno natural e necessário para a manutenção da vida na Terra, mas sua exacerbação acima dos patamares de equilíbrio natural leva a um aquecimento anormal que repercute sobre todo o clima do planeta.
O planeta está cada vez mais quente. O ano de 2023 foi o mais quente já registrado na história e 2024 deve bater esse recorde. O observatório Copernicus, da União Europeia, prevê que este ano será o mais quente da história e o primeiro a apresentar temperatura média global de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, ultrapassando o limite estabelecido no Acordo de Paris.
O aumento da temperatura nos continentes e oceanos tende a elevar o nível do mar, devido ao maior aporte de água doce pelo derretimento de geleiras terrestres e por um efeito de expansão térmica das águas dos oceanos.
A maior quantidade de energia disponível interfere nos movimentos de massas de ar e nos ciclos hidrológicos, levando a uma maior probabilidade da ocorrência de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, chuvas torrenciais, furacões.
"O aumento das temperaturas tem impacto direto sobre o ciclo hidrológico, esse efeito pode ser verificado nas severas secas que atingem diversas bacias hidrográficas do Brasil. Vários estudos têm demonstrado que as estiagens prolongadas são agravadas por duas tendências críticas: a diminuição das chuvas e o aumento da perda do volume estocado por evaporação, afirma Nicolás Strikis, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP).
Os cientistas já mapearam um amplo conjunto de riscos de que as alterações climáticas atinjam pontos de não retorno, isto é, efeitos que poderão ter consequências irreversíveis e que agravarão o problema das mudanças climáticas como ciclos viciosos.
"Isso inclui, por exemplo, a perda permanente de todos os recifes de corais e o derretimento de uma camada de gelo permanente, conhecido como permafrost, sob a qual está retida uma grande quantidade de gás metano. No caso do Brasil, o maior risco é a chamada savanização da floresta amazônica. Isso significa que, no caso de a Amazônia perder algo entre 20% e 25% de sua cobertura vegetal original, a floresta poderá perder a capacidade de suportar os processos naturais que a mantém. Com isso, o bioma amazônico entraria em colapso e teria características mais próximas de uma savana", explica Fábio.
Os cientistas concordam que as mudanças climáticas são reais?
Sim, as mudanças climáticas representam um dos maiores consensos da ciência moderna. Há ampla concordância sobre sua ocorrência, o papel dos seres humanos na sua origem e seu potencial devastador. No entanto, o tema apresenta desafios únicos de comunicação e governança que o diferenciam de outros problemas ambientais enfrentados pela humanidade.
Fábio da Silva, da UFRJ, cita como exemplo o surgimento da Revolução Industrial na Inglaterra, quando as fábricas e residências queimavam carvão indiscriminadamente. "Era possível ver a fumaça sendo gerada e se acumulando na atmosfera londrina. Assim, quando ocorreu o Grande Nevoeiro de Londres de 1952, que causou transtornos e mortes, foi relativamente simples atribuir as relações de causa e efeito. As mudanças climáticas inauguram um novo nível de complexidade nesse sentido, pois carregam consigo um elemento transgeracional e transfronteiriço".
De acordo com Nicolás, a pauta sobre as alterações climáticas está perto de uma unanimidade, mas ainda existem alguns céticos em relação ao assunto. "Na academia vi pesquisadores mais velhos, aposentados ou perto da idade de se aposentar, ligados a áreas de exploração mineral, com ceticismo quanto aos temas das mudanças climáticas, mas isso é exceção", afirma.
Os cientistas concordam sobre os efeitos da agropecuária no clima?
Sim, há consenso na ciência de que o modelo tradicional de produção agrícola e pecuária contribui para o aumento do aquecimento do planeta, principalmente no que se refere às emissões pelo uso da terra.
Ao desmatar uma floresta para implantar uma lavoura ou pastagem, o reservatório de carbono original do ecossistema (que são as plantas e o solo) é substituído por outro menor, sendo que a diferença vai parar na atmosfera, sobretudo na forma de CO2. Além disso, as queimadas são responsáveis por uma parte significativa das emissões.
Segundo Fábio, diversas possibilidades são discutidas na comunidade científica quanto aos caminhos para reduzir as emissões de GEE na agropecuária.
"Há estudos que avaliam práticas de manejo sustentável e integração entre lavoura, pecuária e florestas capazes de promover sinergias e ganhos de eficiência para o uso da terra, mas que em último caso resultam em menores emissões para os sistemas alimentares", diz o pesquisador.
"Também há quem estude formas de diminuir o desperdício nas cadeias de produção dos alimentos, reduzindo as pressões da segurança alimentar sobre a necessidade de expandir a fronteira agrícola. Por fim, existem estudos que avaliam o efeito de mudanças comportamentais sobre as cadeias agropecuárias e seus impactos sobre o clima, particularmente da redução do consumo de carne nas dietas", completa Fábio.
Há consenso sobre como mitigar os efeitos das mudanças climáticas?
Há certo consenso sobre questões básicas, como as consequências graves e negativas das alterações climáticas, a necessidade de reduzir drasticamente a queima de combustíveis fósseis o mais rápido possível e a adoção de práticas e tecnologias capazes de remover carbono da atmosfera.
No entanto, há divergências entre os caminhos que diferentes grupos de estudos ao redor do mundo apontam como o ideal para esse processo. Um exemplo é a descarbonização dos transportes.
"Tipicamente, estudos vindos de países europeus apresentam uma visão mais otimista em relação ao uso de hidrogênio, enquanto os estudos oriundos do Brasil tendem a ser mais favoráveis a biocombustíveis", diz Fábio.
"Não há quem aponte uma bala de prata para o problema, mas um conjunto de diferentes soluções que coletivamente contribuem para sua resolução. Nesse sentido, a divergência de visões auxilia na construção de alternativas de caminhos para a descarbonização", conclui.
De acordo com o professor Nicolás, da USP, para avaliar quais medidas são eficazes é necessário ter em mente o que pode ser executado.
"Cientistas não são políticos, necessariamente. As transformações precisam de políticas de estado aliadas à uma sociedade com consciência ambiental. Particularmente, ao ver a força dos movimentos antivacina durante a pandemia fiquei mais cético quanto à capacidade da sociedade de se engajar para as mudanças necessárias", diz.
Fonte: Fábio Teixeira Ferreira da Silva, doutor e pesquisador de pós-doutorado do Laboratório Cenergia do Programa de Planejamento Energético do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPE/COPPE/UFRJ), mestre em planejamento energético pela mesma instituição; Nicolás Strikis, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP) e pesquisador do programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense)