As ondas de calor estão transformando nossos verões, antes agradáveis, em pesadelos com risco de vida, especialmente para idosos e crianças. Desde meados do século 20, os verões no hemisfério Norte vêm evoluindo em intensidade e duração (de 78 dias para mais de 95 em 2022). No Brasil, uma tendência similar e igualmente preocupante vem ocorrendo: a duração das estações secas no centro do país, desde 1990, vem se prolongando em cerca de seis dias a cada década. A luz do sol é absolutamente vital para a vida na Terra, mas, com o aumento da concentração de GEE (Gases de Efeito Estufa), a radiação de baixa frequência refletida pelo planeta já não retorna ao espaço com a mesma facilidade. Moléculas de gás carbônico (CO2) e metano (CH4) em concentrações crescentes nos últimos 250 anos retêm mais calor, especialmente nos últimos 60 anos. De fato, o planeta Terra é um gigantesco sistema termodinâmico (uma região do espaço ou uma porção de matéria que pode ter suas grandezas termodinâmicas medidas, como temperatura, volume e pressão) cuja temperatura depende de um equilíbrio de energia que vem sendo afetado em virtude do aumento das emissões de GEE, causando o que se convencionou chamar de "aquecimento global". Como consequência, temos testemunhado, além da aceleração do derretimento de geleiras, a elevação do nível dos oceanos e eventos climáticos extremos como estiagens, ciclones tropicais e extratropicais, bloqueios atmosféricos, tempestades ocorrendo de forma mais intensa e frequente, e a severidade das ondas de calor, também mais fortes, com maior frequência e resultados progressivamente mais catastróficos. Na Europa, o intenso calor em julho e agosto fez com que o verão de 2003 fosse, à época, o mais quente desde o ano de 1500 e resultasse na morte estimada de 70 mil pessoas. Um estudo recente sugere que, neste século, as ondas de calor extremo são dez vezes mais prováveis de ocorrer na Europa devido ao aquecimento global, e, de acordo com o "Met Office" do Reino Unido, podem vir a ocorrer a cada dois anos até meados do século 21. Em 2003, a quase totalidade das residências da Europa tinham somente sistemas de aquecimento para enfrentar o frio do inverno e não tinham ar condicionados para altas temperaturas. Muitas das 70 mil mortes do intenso verão europeu daquele ano, se não a maioria, ocorreram em cidades nas quais os idosos e mais vulneráveis foram incapazes de escapar do calor, e onde as temperaturas mínimas não foram menores que 24⁰C. Também na Europa, no verão de 2022, houve quase 62 mil mortes provocadas por ondas de calor. No dia 29 de maio de 2024, em Nova Déli, na Índia, os termômetros registraram 52,3⁰C com grande impacto do calor extremo na saúde, com inúmeras internações. E, em junho de 2024, em Meca, na Arábia Saudita, durante o evento religioso Hajj, os termômetros atingiram 51,8⁰C, onde o número de mortes chegou a 1.301, principalmente de idosos e idosas. No Brasil, eventos de temperaturas extremas aumentaram quase 4 vezes desde 1970. Entre 2000 e 2018, houve cerca de 48 mil óbitos por ondas de calor, a maioria entre mulheres e pessoas idosas. Durante 2023, ocorreram 9 ondas de calor, com 65 dias de calor extremo, quase 1/5 dos dias do ano (18%). Além do calor excessivo, outra variável que agrava a situação é a umidade elevada. Ondas de calor úmidas, que dificultam a evaporação do suor, são mais letais. A falta de abrigos adequados e o uso limitado de ar-condicionado aumentam os riscos, especialmente para populações vulneráveis. Os aparelhos de ar-condicionado, além de reduzirem a temperatura dos ambientes, também diminuem a umidade. E, na ocorrência de ondas de calor úmidas, podem ser uma alternativa de sobrevivência para crianças, idosos e outras pessoas vulneráveis. Os corpos humanos também podem ser considerados pequenos sistemas termodinâmicos. Além de outras funções fisiológicas no organismo, uma das funções do sangue é resfriar a epiderme quando a pele está excessivamente quente, num processo que ocorre com a circulação do sangue nas regiões mais periféricas. Entretanto, uma refeição pesada pode interferir neste processo. A carne vermelha, por exemplo, tem digestão bem mais lenta que a dos vegetais e frutas. E demanda mais sangue na região abdominal. Assim, é de se esperar que vegetarianos sejam mais resilientes às ondas de calor que os carnívoros. No Brasil, onde há mais bovinos que humanos, mais de 70% das emissões de GEE são gerados pela pecuária e agricultura. Em parte pelo arroto de CH4 do gado e, principalmente, devido ao desmatamento e às queimadas de áreas com florestas para abrir mais áreas de pasto, muitas vezes abandonado alguns anos depois como terra degradada. Em solos tropicais, pastos são berçários de voçorocas (grandes buracos ou crateras que se formam no solo devido à erosão em solos empobrecidos). Portanto, a redução do consumo de carne bovina, além de poder nos tornar mais resilientes às ondas de calor, também pode desacelerar a geração de GEE. A Terra e nós, humanos, temos em comum o fato de sermos muito sensíveis a pequenos aumentos de temperatura. Acréscimos a partir de 0,5⁰C em nossos corpos já nos levam ao limiar de febre. A partir da Revolução Industrial, a temperatura média do nosso planeta aumentou quase 1,5⁰C, o que em humanos seria equivalente a uma febre alta, de 38⁰C. Acréscimos de alguns graus centígrados no nosso corpo, além dos 38⁰C, já provocaria óbito, e, na Terra, um caos climático. Assim, transformações na forma de como nos alimentamos, bem como geramos energia, são urgentes. Estresse térmico é assunto muito sério, pode levar à morte. Colaborou Flaminio Levy Neto, engenheiro Mecânico e Mestre em Engenharia pelo ITA, Ph.D. em Engenharia. Lecionou no ITA e na UnB, e já publicou três livros. Foi consultor ad hoc da CAPES e do CNPq. Atualmente atua como ad hoc na FACEPE. |