Por que Bob Marley é um ícone dos direitos humanos
Ao se apresentar em junho de 1980 na cidade alemã de Colônia, Bob Marley já estava abatido pela doença. Ainda assim, seu carisma fascinou os 8.000 espectadores. Sobretudo quando entoou sua Redemption Song: totalmente só, sob o foco dos refletores, envolto pela nuvem de fumaça das centenas de baseados de maconha distribuídos entre o público.
Menos de um ano mais tarde, em 11 de maio de 1981, o cantor e compositor morria de câncer, aos 36 anos. Contudo suas ideias políticas e espirituais perduram até hoje e continuarão vivendo em sua música, pelo futuro adentro.
Marley levou o reggae e suas mensagens para o mundo de forma tão duradoura que esse gênero musical jamaicano hoje é tocado por toda parte, e a Unesco o declarou Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Em 2024, o filme biográfico Bob Marley: One love, dirigido por Reinaldo Marcus Green e estrelado por Kingsley Ben-Adir —com lançamento no Brasil e Alemanha marcado para esta quinta-feira (15)—, constitui mais um memorial ao músico.
Rastafári: escravidão, religião, esperança, dreadlocks, reggae
Aos 22 anos, Marley descobriu para si a religião rastafári. Ela é relativamente jovem: 2 de novembro de 1930, quando Haile Selassie 1º foi coroado imperador da Etiópia, é considerado o marco de sua fundação. O nome original de Selassie era Ras Tafari Makkonen: no idioma amárico, ras significa "príncipe".
Seus seguidores viam nele a reencarnação de Jesus Cristo, como Deus vivo na Terra. Alguns anos antes, o ativista jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) previra a coroação de um poderoso rei na África, que promoveria a libertação dos negros. Grande parte da crença dos rastafaris remonta à Bíblia, especialmente ao Velho Testamento.
Eles creem num retorno —também espiritual— à África, à terra prometida Etiópia. Os jamaicanos negros são descendentes de africanos escravizados, sequestrados e traficados para a América e o Caribe. Com auxílio de sua fé, os rastafáris buscam superar a ruptura cultural provocada pelo sequestro e escravização de seus ancestrais.
A meta é uma vida o mais natural possível, seguindo os princípios de amor e paz, e guiada pela justiça, unidade e igualdade, numa luta contra a Babilônia —como sinônimo do mundo ocidental, que tanta infelicidade trouxe ao povo africano. Mas para eles Babilônia também representa a Jamaica, onde os antepassados acabaram confinados como escravizados.
Estima-se que hoje o movimento mundial dos rastafáris reúna entre 700 mil e 1 milhão de adeptos, de todas as cores de pele, que rechaçam qualquer forma de subjugação humana, seja política, cultural ou religiosa.
Seus característicos dreadlocks —penteados em longas mechas de fios ásperos— têm como fim distingui-los das camadas superiores da sociedade. O tão enfatizado consumo de marijuana serve antes à expansão da consciência do que para inebriar, e não é parte integrante do rastafarianismo.
Com a ascensão de Bob Marley ao estrelato, também a música dos rastafáris ganhou palco mundial. O reggae nasceu na Jamaica da década de 1960, época em que distúrbios sociais dominavam e gângsteres geravam insegurança nas ruas. Reunidos nos assim chamados sound systems, DJs organizavam discotecas ambulantes, combinado estilos existentes como mento, ska, soul e jazz.
Marley contribuiu decisivamente para a evolução do reggae como gênero musical independente: o ritmo relaxado, porém propulsivo, se prestava idealmente para divulgar a mensagem de paz e amor. Apesar de conter bastante retórica religiosa, suas letras também têm os pés no chão, ao narrar os problemas de uma minoria discriminada, de guetos, escravidão e injustiça. Mas a fé rastafári atravessa as canções como um fio de Ariadne.
Bob Marley e seu canto de libertação
Hoje hino inoficial da Anistia Internacional, Get Up Stand Up se originou na viagem de Marley ao Haiti, onde o chocou a miséria da população sob a ditadura de François Duvalier, o "Papa Doc", que durou de 1957 a 1986. O texto exorta a confiar no próprio discernimento, a lutar pelos próprios direitos e não desistir.
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Quero receberExodus aborda a crença rastafári do retorno à África, em que o nome de Deus é Jah:
Are you satisfied / With the life you're living // We know where we're going / We know where we're from // We're leaving Babylon / We're going to our father land // Exodus, movement of Jah people
(Vocês estão satisfeitos / Com a vida que estão vivendo? // A gente sabe pra onde está indo / Sabe de onde vem // Vamos embora de Babilônia / Vamos pra nossa pátria // Êxodo, movimento do povo de Jah)
Em Zimbabwe, o poeta incita os africanos a liberarem o Zimbábue, denominado Rodésia, sob a colonização britânica. Na festa da independência zimbabuana, Marley apresentou ao vivo esta canção, que se tornou o hino nacional inoficial do país.
No Woman, No Cry expressa a sensação de viver em Trenchtown, o gueto da capital jamaicana, Kingston, onde Bob Marley cresceu, cercado de pobreza e laços familiares fortes, de apoio mútuo. Embora conste que ele é responsável ao menos pela melodia, a autoria é oficialmente atribuída a seu amigo Vincent Ford. Gilberto Gil dedicou uma versão brasileira a No Woman, No Cry, intitulada Não Chore Mais.
Mas Redemption Song é talvez o maior legado musical do jamaicano. Nela ele cita o profeta rasta Marcus Garvey, que em 1937 disse, num discurso, aludindo ao cativeiro dos ancestrais africanos: "Emancipem-se da escravidão mental, ninguém pode libertar as nossas mentes senão nós mesmos."
Essa ideia e a noção de que morreria em breve inspiraram Bob Marley a escrever a canção que até hoje traz esperança a muitos, por todo o mundo. Embora Redemption Song exista em diversas gravações, a preferida de muitos fãs costuma ser a em que ele é acompanhado apenas por uma guitarra: a instrumentação rarefeita reforça a intensidade da canção.
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