'Não podemos seguir a vida normal', diz ecólogo que previu enchentes no RS
Depois de inundações devastarem o Rio Grande do Sul, vídeos com declarações de 2022 do ecólogo Marcelo Dutra da Silva viralizaram nas redes sociais. No vídeo de um discurso durante uma audiência pública na Câmara de Vereadores de Pelotas, ele previa as possíveis enchentes no estado.
No discurso, ele fala sobre a mudança no padrão de chuvas no estado, chances de inundações em mais cidades gaúchas e questionava quais providências seriam adotadas para prevenir possíveis desastres.
Professor da Furg (Universidade Federal do Rio Grande), Marcelo Dutra da Silva realizou um levantamento de indicadores de temperatura e precipitação ao longo de 50 anos (1971 a 2021), e constatou a elevação nesses padrões, que levaram a verões mais quentes e invernos menos intensos. Segundo ele, essa combinação somada ao avanço da área urbana contribuiu para as enchentes.
Em entrevista à DW, ele defende medidas de mitigação e adaptação para responder a novos eventos extremos em planos diretores de cidades. "Não dá para imaginar que podemos seguir a vida normal, que este evento não vai se reproduzir mais. Isso seria errar de novo", ressalta
DW: Há anos, o senhor faz alertas sobre mudanças no padrão de chuvas e enchentes. Haveria tempo hábil para implementar algum tipo de medida para mitigar os efeitos do desastre?
Marcelo Dutra da Silva: Tivemos um evento em 2022, outros em 2023 e, de lá para cá, nós fizemos muito pouco, praticamente nada, não nos preparamos para isso, pelo contrário. Os indicadores mostravam que havia uma possibilidade de acontecer eventos repetidos. Mesmo que este evento não tivesse sido tão grande, se tivesse sido parecido com o de 2023, já seria importante o suficiente para fazer algo para diminuir os riscos.
As cidades do Vale do Taquari ainda estavam se reconstruindo. Depois de serem atingidas em 2023 mais de uma vez, agora foram severamente devastadas. Isso quer dizer que não dá para cometer esse erro de continuar tentando não reconhecer que as mudanças climáticas estão no nosso cotidiano. Precisamos começar a fazer melhor e diferente.
O atual desastre tomou praticamente todo o estado no Rio Grande do Sul. Na fase de reconstrução, o estado pode se tornar um exemplo para outras cidades no Brasil?
Percebemos que os gastos em recuperação de estragos são muito maiores do que o investimento em contextos para evitar que isso se repita. Não se tem considerado a necessidade de prever novos eventos, então as cidades não estão sendo preparadas para esses novos eventos e simplesmente se reproduz os erros sucessivos.
Isso não pode mais acontecer. Todos os municípios precisam de planos diretores, porque ele é o plano de cidade. Todos os municípios vão ter que incluir ou revisitar os seus planos, seus planejamentos, seus instrumentos de planejamento e incluir um instrumento importante, que praticamente nenhum município possui, que é um plano de emergência climática.
Todo município precisa de um plano de emergência climática. Sem este plano fica muito difícil reconhecer regiões mais vulneráveis.
Já atingimos um ponto de não retorno?
Sempre tem o que fazer. O que não dá para imaginar é que podemos seguir a vida normal, que este evento não vai se reproduzir mais. Isso seria errar de novo. Eles vão continuar acontecendo. O que não tem retorno é essa mudança, ela vai continuar. Precisamos atenuar os efeitos. Do ponto de vista climático, a realidade está posta, e essa não tem volta. Mas o que pode ter volta é a nossa atitude em relação a essa resposta.
O senhor pode detalhar esse plano de emergência climática?
O plano de emergência climática precisa conversar intimamente com os demais instrumentos de planejamento, mas especialmente com o plano diretor. Há uma necessidade de vários instrumentos e todos eles devem de alguma forma se conversar.
Mas o plano de emergência climática é significativo na medida em que eu reconheço as zonas de maior vulnerabilidade no contexto daquele município. Quando se olha para os municípios do Vale do Taquari, se eles estiverem muito próximos ou inseridos no leito do corpo hídrico, não se pode mais ter esta situação, há uma vulnerabilidade muito grande.
Então, um plano de emergência climática significa que esses locais mais vulneráveis precisam ser devolvidos para a natureza, e aquela parcela urbana migrar para uma outra região mais segura dentro do mesmo contexto. Tem gente que me pergunta se essa mudança é pegar a cidade daqui e transferir de estado, mas não. O que estou dizendo sobre a cidade se reposicionar dentro do contexto é para se reposicionar numa parcela de terreno mais segura, uma cota mais segura, mais distante daquela zona de risco que frequentemente é atingida por chuvas volumosas.
Essa perspectiva de desastre emitida pela ciência tem sido ignorada?
Já era ignorada antes e está sendo ignorada agora. Não é hábito das administrações públicas escutarem o parecer de quem estuda, de quem de quem entende um pouco das questões ambientais, porque essa pessoa é vista normalmente como alguém que é anti-desenvolvimento, anticidade ou 'anti' alguma coisa.
Como a política respondeu a esses alertas?
Ao longo do tempo, leis e normas foram flexibilizadas, e ficou fácil avançar sobre o terreno, sobre áreas que não se recomendam. Havia impedimentos, havia entraves e aos poucos esses impedimentos e entraves encontrados na lei, sobretudo nos planos diretores, foram sendo suprimidos e retirados. Isso acontece dentro das casas legislativas. É lá nas câmaras de vereadores que essas votações ocorrem e que essas vulnerabilidades são ampliadas, porque quem mexe nisso, mexe sem entender e sem compreender que avançar sobre determinados terrenos é um verdadeiro perigo.
Isso ocorreu em vista de um projeto eleitoral?
Está ligado a muitas coisas, à negação, à falta de compreensão, à ignorância pura. Na prática o que interessa é que isso nos levou a ter situações como as que vivemos hoje, de pura apreensão, tentando apagar um incêndio, e pior, esse incêndio está nos pegando.