Cadeia da carne ainda tem gargalos ambientais no Brasil
Tensões diplomáticas recentes à parte, a indústria brasileira de carne está ganhando espaço no exterior. As exportações entre janeiro e novembro de 2024 chegaram a 2,3 milhões de toneladas, um aumento de 40% em relação ao mesmo período do ano passado. Para produzir esta quantidade de carne, foram abatidos cerca de 10 milhões de bois, o equivalente ao rebanho do estado de São Paulo.
China, Estados Unidos e Emirados Árabes Unidos são os principais destinos, apontam as estatísticas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. A França, de onde partiram as críticas do Carrefour no fim de novembro, ainda é um mercado pequeno para os brasileiros. Até novembro deste ano, o país comprou 66 toneladas e figura na 89° posição na lista de compradores internacionais.
Embora a França tenha um peso pequeno nesta balança, o país integra a União Europeia, parceiro comercial tradicional e estratégico do Brasil. E a partir de 2025, a nova regulamentação do bloco que veta a importação de qualquer produto com rastro de desmatamento pode inibir as exportações brasileiras.
De onde vem o boi?
É difícil garantir que a indústria da carne não tenha ligação com derrubada recente de floresta pois a maior parte do rebanho bovino do país está na Amazônia Legal. Das mais de 238 milhões de cabeças de gado espalhadas pelo Brasil, 97 milhões estão na região amazônica, apontam dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
Fonte importante de recursos para o país, a pecuária é apontada como o principal vetor do desmatamento. Mais de 90% da destruição da Amazônia nos últimos 40 anos foi impulsionada por essa atividade, mostram registros de imagens satélites analisadas pelo Mapbiomas.
"E tem muita ilegalidade, e de vários tipos. Desmatamento não autorizado, ocupação de terras públicas, que é a grilagem. E quase tudo vira pasto", explica Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Não se sabe exatamente o fim deste boi deixado para pastar num espaço originalmente ocupado pela floresta. Uma investigação do Greenpeace em 2020, por exemplo, mostrou que fazendas localizadas ilegalmente dentro de unidades de conservação em Mato Grosso eram fornecedoras indiretas de grandes frigoríficos, como Marfrig, Minerva e JBS. No mesmo ano, a Anistia Internacional encontrou indícios de que bovinos criados ilegalmente em áreas protegidas de Rondônia viraram bifes embalados com o selo da JBS.
Barreto afirma que a fazenda que vende o boi diretamente para os frigoríficos pode estar dentro da lei, mas ela muitas vezes compra o bezerro de um outro lugar, onde pode ter ocorrido desmatamento.
"O setor tem resistência em divulgar dados para possibilitar o rastreamento da origem do animal. A transparência permitiria ver onde está a ilegalidade, mas, como não tem, a suspeita está sempre pairando sobre a atividade. O fato de o setor agir tanto contra a transparência indica que tem problema", analisa Barreto.
Luz amarela
No Brasil, a maior parte dos frigoríficos autorizados a vender para a União Europeia está no Mato Grosso - estado que também concentra o maior número de cabeças de gado. Em todo o país, 1.221 estabelecimentos estão habilitados a exportar para o bloco, segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária.
O levantamento mais recente do Radar Verde, indicador independente de transparência e controle da cadeia de carne bovina no Brasil, mostrou que pouco mais da metade (63%) tem uma política de rastreamento dos seus fornecedores diretos. Porém, nenhum dos frigoríficos sabe quem são ou onde estão os fornecedores indiretos.
A conclusão do relatório é que nenhum dos frigoríficos da Amazônia Legal está em conformidade com as novas políticas de exportação da União Europeia. "Melhorar o rastreamento de origem do gado e implementar políticas de desmatamento zero são passos fundamentais. A parceria entre a União Europeia e o Brasil tem o potencial de impulsionar práticas mais sustentáveis, e assim aumentar o potencial de segurança alimentar para as populações de ambas as regiões", recomenda a análise.
As tentativas de ajuste de conduta
Esse problema está há décadas na mira do MPF (Ministério Público Federal) do Pará, que tem o segundo maior rebanho bovino do país (25 milhões). Em 2009, o órgão firmou com os frigoríficos um Termo de Ajustamento de Conduta, que ficou conhecido como TAC da Carne. O acordo busca forçar a cadeia da pecuária na Amazônia a cumprir as leis socioambientais e fundiárias e, dessa maneira, garantir que só produtos de origem legal cheguem aos consumidores.
Atualmente, seis estados aderiram ao TAC da Carne com 110 signatários. Embora a adesão seja voluntária, o descumprimento das normas previstas no acordo começa a render as primeiras ações na Justiça. Em agosto, o MPF entrou na Justiça contra quatro frigoríficos para obrigá-los a cumprir as auditorias previstas sob pena de multa que chega a até 7 milhões.
"Em cinco ciclos de auditorias na pecuária no Pará, o percentual de animais comercializados com alguma inconformidade caiu de 10,4% do total de transações auditadas para 4,8%", afirma o MPF no estado que inaugurou a iniciativa.
Pasto pelo Brasil
O território que abriga a maior floresta tropical do mundo também é campeão em área de pasto no Brasil. De 2022 para 2023, a área saiu de 577 mil quilômetros quadrados para 590 mil quilômetros quadrados, indicam novos dados publicadas nesta sexta-feira (6) pelo MapBiomas, rede de pesquisadores ligados a universidades, ONGs e empresas de tecnologia que monitoram as transformações do uso do solo em território nacional.
Os biomas com maior área proporcional de pastagem são Caatinga (27%), Cerrado (26%) e Mata Atlântica (26%), que tem os pastos mais antigos do país, abertos há mais de trinta anos. No caso do Cerrado, 72% das áreas de pastagem atuais foram abertas há mais de 20 anos.
Na Amazônia, as grandes extensões de pasto são marcadas por baixa produtividade. Com um histórico de ocupação e incentivo ao desmatamento, iniciado no governo militar, a baixa eficácia e o mau uso da terra se refletem em baixos indicadores socioeconômicos. O rendimento médio dos trabalhadores do setor é 34% menor do que o ganho médio dos trabalhadores da região, mostrou um estudo da iniciativa Amazônia 2030. O índice de informalidade também é grande, em torno de 77%.