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Notícias e análises sobre a Conferência do Clima da ONU


Ver copo meio cheio é essencial, diz negociador brasileiro na COP29

Fachada de prédio em Baku, capital do Azerbaijão, com o logotipo da COP29 Imagem: Tofik Babayev/AFP

Lúcia Müzell;

em Paris

10/11/2024 14h49

A 29ª Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas começa nesta segunda-feira (11) em Baku, no Azerbaijão, sob a sombra do retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Mas, para o Brasil, país anfitrião da conferência de 2025, em Belém, o momento é de não deixar o desânimo tomar conta dos 196 países participantes.

"O setor privado americano está sempre atento a áreas nas quais ele pode ter vantagens, inclusive no combate à mudança do clima. Esse lado econômico, eu acho, nos reserva provavelmente boas surpresas", disse o secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, André Corrêa do Lago, em entrevista à RFI. "E não podemos esquecer que o Donald Trump é apoiado pelo Elon Musk, o grande empresário americano de carros elétricos."

Em meio a negociações diplomáticas bloqueadas sobre o financiamento climático que deve ser implementado a partir de 2026, a COP29 deve finalmente entregar a regulamentação, sob a supervisão da ONU, de um mercado internacional de créditos de carbono. O mecanismo permitirá que empresas e países que não atingiram as suas metas de redução de emissões adquiram créditos de CO2 daqueles que promovam cortes superiores aos seus objetivos - graças a iniciativas como o fechamento de uma usina a carvão, a promoção da agricultura sustentável ou políticas de recuperação florestal.

Se o combate à mudança do clima não melhorar a vida das pessoas, nós vamos ter muita dificuldade de convencer as populações e os governos de que essa agenda é importantíssima. E é nesse ponto de vista que o mercado de carbono satisfaz, de uma certa forma, um setor que não é particularmente favorável ao combate à mudança do clima, que são aqueles que acreditam que somente se tiverem algum tipo de lucro é que eles poderão contribuir. André Corrêa do Lago, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil

O mercado de carbono é criticado por muitos ambientalistas, que o veem como uma artimanha para os países e setores econômicos mais poluidores, como o petroleiro, comprarem o direito de continuar a emitir CO2. Até hoje, também faltavam garantias quanto à transparência e a eficiência dos projetos negociados, além da possibilidade de dupla contagem das emissões - ou seja, evitar que um mesmo projeto de reflorestamento, por exemplo, seja contabilizado no balanço de carbono tanto pelo país emissor, quanto pelo comprador dos créditos.

O texto negociado na COP29 prevê uma série de precauções para evitar fraudes. Um acordo sobre o mercado de carbono tende a ser o principal resultado desta conferência, que se encerra no dia 22 de novembro.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Corrêa do Lago, um dos mais experientes diplomatas do país na área ambiental e cotado para ser o presidente da COP30, em Belém.

Pergunta: O quanto os quatro anos de presidência Trump, um negacionista climático assumido, abalarão o processo das negociações climáticas, uma vez que os Estados Unidos são os maiores emissores históricos de gases de efeito estufa do planeta, ou seja, são os principais responsáveis pelo problema que é debatido nas COPs?

André Corrêa do Lago: A gente tem que lembrar que você pode definir os Estados Unidos de várias maneiras na questão da mudança do clima. Os Estados Unidos são, ao mesmo tempo, emissores não só atualmente importantíssimos, como historicamente importantes. Mas os Estados Unidos também são uma fonte de ciência muito grande, uma fonte de experiências muito importantes, universidades incríveis. A gente tem que lembrar que uma presidência Trump poderá afetar algumas dessas dimensões da importância dos Estados Unidos, mas poderá não afetar outros.

O senhor prefere ver o copo mais cheio? A negociação vai seguir o seu rumo?

Sempre. Se eu não olhar pelo lado do copo cheio, não dá para negociar clima.

Donald Trump vai assumir o poder em 2025, justamente o ano em que o Brasil vai presidir a COP30. E é o ano em que os países deveriam formalizar seus novos compromissos para limitar às suas emissões - um ano-chave, portanto, nessas Conferências do Clima. O quanto a provável paralisação da ambição climática americana ou os esperados retrocessos no governo de Trump poderão influenciar todo esse processo, de os países apresentarem os seus novos objetivos climáticos?

Há várias áreas nas quais os Estados Unidos podem ter uma vantagem econômica no combate à mudança do clima. Eu sei que é um caso que já foi meio esquecido, mas nos anos 1980 e 1990, se falava muitíssimo do buraco da camada de ozônio. Ele foi resolvido basicamente porque empresas americanas encontraram substitutos e fez-se um acordo internacional para que o mundo inteiro passasse a usar esses substitutos que, na sua maioria, tinham sido desenvolvidos por empresas americanas.

O combate ao buraco da camada de ozônio já foi considerado por vários autores como mais bem sucedido acordo das Nações Unidas de todos os tempos, porque conseguiu se reduzir 95% dos gases responsáveis no mundo inteiro, e graças a uma solução econômica, que essencialmente só existiu graças ao setor privado.

O setor privado americano está sempre atento a áreas nas quais ele pode ter vantagens. E isso se viu que no período do presidente Biden: o IRA [Inflation Reduction Act] - o tão discutido programa de mudança do clima, mas que teve um título relacionado à inflação para poder passar - acabou sendo aprovado por deputados e senadores dos dois partidos, Republicano e Democrata. Hoje, ao que se pode ler, a maioria dos deputados republicanos e senadores acham que o IRA tem vários lados positivos para a economia americana.

Esse lado econômico, eu acho, nos reserva provavelmente boas surpresas. E não podemos esquecer que o Donald Trump é apoiado pelo Elon Musk, o grande empresário americano de carros elétricos. Foi ele quem convenceu, no fundo, os americanos a querer carros elétricos e por isso eu vejo que se não pode interpretar a questão americana de forma simplista.

Esse novo contexto vai, de certa forma, redirecionar a maneira como a COP 30 vai ser conduzida?

Sim, eu acredito que sim. E por isso eu acho que essa questão do mercado de carbono tem tanta importância, também nesse contexto.

O foco dessa conferência no Azerbaijão é a discussão de financiamento, que nos últimos meses ou anos, se mostra paralisada. Os países devem definir o novo valor que vai ser concedido para as nações em desenvolvimento e o que exatamente vai entrar neste cálculo complexo. Os valores que estão sobre a mesa são coerentes com as necessidades, estimadas na casa dos trilhões de dólares por ano, e não mais bilhões?

Não, eles não são nada coerentes com as necessidades. A questão do financiamento é um problema que se arrasta desde o início dessas negociações, para assinatura da própria Convenção do Clima, em 1992, no Rio de Janeiro. Tem uma enorme dificuldade de avançar, então não é uma novidade. Mas o que é novidade é que nós hoje temos muito mais informação científica: nós sabemos que a mudança do clima é mais grave e ela está mais próxima, que nós temos poucos anos para fazer o que é necessário. Infelizmente, na dimensão financeira, esse elemento simplesmente essencial não está entrando.

Não há uma tradução, na parte financeira, do entendimento de que estamos com uma situação de urgência. Há várias dimensões na discussão e em várias delas, todo mundo tem razão. Por exemplo, tem o argumento de vários países desenvolvidos que os recursos financeiros que eles gostariam de colocar têm que passar pelos seus Parlamentos. É difícil explicar para suas populações que tanto dinheiro está indo para outros países, em vez de ser usado no país de origem, onde existem crises - afinal, nós temos uma crise mundial, inclusive nos grandes países desenvolvidos.

Por outro lado, também tem toda a razão os países em desenvolvimento quando dizem que precisam de recursos, afinal os recursos deles têm que ser concentrados na educação, na saúde e no combate à pobreza. Então, o que seria muito importante é uma conscientização do custo da inação, o custo de protelar.

Um dos principais pontos de tensões dessas negociações sobre esse aspecto do financiamento é que os países emergentes e principalmente a China, mas também o Brasil, chegam a Baku irredutíveis quanto à possibilidade de serem incluídos na base de doadores, ou seja, entre os países que também vão pagar pela conta para os países em desenvolvimento em situação mais vulnerável. Por quanto tempo ainda vai ser possível continuar mantendo de fora da conta aquele que hoje é, de longe, o maior emissor de gases de efeito estufa, a China?

Isso é uma discussão que, eu acredito, está muito mal apresentada nos países desenvolvidos. A China é reconhecida por todos os países desenvolvidos como o país que mais investiu no combate à mudança do clima. O que é mais importante: que a China continue investindo maciçamente no seu próprio país, onde tem 1,4 bilhão de pessoas e onde eles têm que mudar, por exemplo, as fontes de energia que originalmente era avassaladoramente a carvão?

Os esforços da China são reconhecidos por todos e ela tem desenvolvido tecnologias incríveis, mas a China tem sobretudo reduzido de maneira extraordinária o custo das novas tecnologias, por causa da sua escala. Quando a China produz painéis solares a baixíssimo custo, isso significa que a África pode ter painéis solares. Então há uma contabilidade muito primária e razoavelmente de má fé, por parte dos países desenvolvidos, sobre o papel da China nessa questão de financiamento para os países em desenvolvimento.

O que os países em desenvolvimento, como Brasil, China, Indonésia e Índia sustentam é que, pelas regras da Convenção [da ONU sobre as Mudanças do Clima] e pelas regras do Acordo de Paris, esses recursos devem vir obrigatoriamente dos países desenvolvidos. Não há discussão que os países em desenvolvimento estão ajudando também. Mas eles não têm obrigação, nem pela convenção, nem pelo Acordo de Paris, de dar recursos de forma obrigatória. Há uma tentativa dos países envolvidos de reduzir a sua responsabilidade.

Isso eu acho que é uma coisa bastante intolerável, porque os países desenvolvidos não cumprem aquilo com que eles próprios se comprometeram - eles tinham se comprometido com US$ 100 bilhões durante cinco anos. Então, quem não pagou não pode querer dividir a conta.

Se os dois lados continuam inflexíveis, as chances de bloqueio sobre o financiamento permanecem altas nessa COP?

Neste caso, só tem um lado que está errado, porque pelas regras da convenção e do Acordo de Paris, quem está errado são os países desenvolvidos. Agora, se eles tivessem como argumento "nós vamos fazer a nossa parte, mas nós achamos que esses países médios devem fazer mais", isso é uma conversa perfeitamente razoável e racional. Porém "nós só vamos fazer a nossa parte, que é obrigatória, se os outros fizerem também" não é base de discussão.

Por outro lado, a diplomacia brasileira se mostra otimista quanto às chances de decisões a respeito do artigo 6 do Acordo de Paris, sobre o mercado internacional de créditos de carbono. Qual é a sua avaliação sobre o mecanismo que está se desenhando nessa COP de Baku, depois de tantos anos de negociações travadas sobre este tópico?

Essa discussão é muito importante e, de fato, nós estamos otimistas. O que acontece é que o mercado de carbono não vai resolver tudo, mas é muito importante, porque é um dos elementos que lembra ao mundo que a negociação do clima é essencialmente uma negociação econômica. Para nós combatemos a mudança do clima, todos os países do mundo vão ter que mudar a sua forma de crescer e de se desenvolver. Para alguns países, é um desafio gigantesco, e para outros é uma oportunidade. Então, nós temos que tratar isso de maneira muito racional do ponto de vista do impacto econômico, sobre os empregos e sobre a qualidade de vida das populações.

Se o combate à mudança do clima não melhorar a vida das pessoas, nós vamos ter muita dificuldade de convencer as populações e os governos, sobretudo nas democracias, de que essa agenda é uma agenda importantíssima. E é nesse ponto de vista que o mercado de carbono satisfaz, de uma certa forma, um setor que não é particularmente favorável ao combate à mudança do clima, que são aqueles que acreditam que somente se tiverem algum tipo de lucro é que eles poderão contribuir. Ao mesmo tempo, é muito legítimo que uma empresa que se dá conta de que vai ter custos adicionais possa ter um recurso para reduzir os custos para fazer a coisa certa. Então, é um passo muito importante, mas que infelizmente não resolve tudo.

As novas NDC, os compromissos de cada país para reduzir as suas emissões, já começaram a ser anunciadas e o Brasil, no papel de anfitrião da próxima COP, acaba de apresentar a sua, nas vésperas da conferência em Baku. O país está mostrando que é capaz de fazer o seu dever de casa na questão do desmatamento, como temos visto nos números, sucessivamente, ao longo do ano. Mas vai ser possível liderar pelo exemplo se o Brasil continuar com os seus planos de abrir novas frentes de exploração de petróleo?

Em todos os países do mundo, tem várias dimensões da sua economia que parecem incompatíveis. Isso acontece na Alemanha, que está usando agora mais carvão do do que usou nas últimas décadas. Isso acontece em vários outros países desenvolvidos e em desenvolvimento. Uma das condições para nós combatermos a mudança do clima é que sejam levados em conta as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a ambiental, a social e a econômica.

Os caminhos para você chegar às boas soluções podem ser diferentes, dependendo de cada país. Então, eu acredito que sim, que as NDC brasileiras serão uma referência de ambição. Eu acredito que, sim, elas devem ser publicadas muito proximamente e eu acredito que elas são, de certa forma, um guia para o país que nós pretendemos ter em 2035.

Temos que lembrar também que há uma grande coerência neste governo brasileiro, tanto na área de energia como, sobretudo, na área do Ministério da Fazenda e das Finanças. O quanto nós estamos coordenando uma política de crescimento que está incorporando a dimensão do clima. No G20, o Brasil acentuou muito isso e eu acredito que é um dos maiores legados do G20 brasileiro: o quanto nós precisamos encontrar uma forma de incorporar nos investimentos e de um modo geral, na economia mundial, a dimensão do clima.

Nós não podemos continuar tratando o clima com fundos específicos para o clima, porque todas as atividades em todos os países do mundo impactam o clima. Nós temos que optar pelas que impactam menos. E eu acredito que isso deva passar por uma nova maneira de se olhar para o clima na área financeira, na área de investimentos e, de um modo geral, na própria teoria econômica.

Nota: esta entrevista foi realizada um dia antes de o Palácio do Planalto apresentar a nova NDC do Brasil, na noite de sexta-feira (8).

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