A base vem forte?

O que as categorias de base dos clubes da série A do Brasileirão aprendem sobre violência contra a mulher?

Camilla Freitas e Giovana Christ de Ecoa e colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

Cuca não tolerará ofensas contra seu caráter e integridade, é o que diz uma nota do treinador publicada na terça-feira, 25. Desde que foi contratado pelo Corinthians, o técnico se deparou com protestos e críticas. O motivo: uma condenação por estupro. A pressão foi tanta que, mesmo após a vitória contra o Remo que garantiu a classificação do time na Copa do Brasil, o técnico deixou o clube.

"Fiquei muito abalada com uma contratação dele porque isso invalida várias lutas das torcedoras do Corinthians ao longo da história do clube. No Corinthians, não tem espaço para um cara desse", comentou Thayna Almeida integrante de uma das maiores torcidas organizadas do clube a caminho do último jogo de Cuca como técnico do time.

A história de Cuca não é uma exceção no futebol. Casos como os de Robinho e do goleiro Bruno, também condenados, e do investigado por estupro Daniel Alves fazem parte do imaginário de quem acompanha e de quem não acompanha futebol.

Mas o que leva cada vez mais jogadores de futebol para as páginas policiais quando o assunto é violência contra a mulher?

"Eles precisam saber que não é não", diz Ricardo Barros quando se refere aos atletas com os quais trabalha. Assistente social das categorias de base do Palmeiras, há cerca de um ano, ele lida com garotos de 16 a 18 anos.

O Palmeiras possui cerca de 300 jogadores de futebol em sua categoria de base masculina. Ali, para além do futebol, o clube desenvolve um trabalho que envolve trazer discussões sociais, como violência de gênero, para o dia a dia desses atletas.

Em conversa com especialistas, a reportagem buscou entender a importância que ações como essa têm para evitar que mais casos de violência contra a mulher envolvendo jogadores de futebol aconteçam.

Ecoa entrou em contato com os 20 clubes que neste ano disputam a série A do Campeonato Brasileiro para entender como eles abordam o tema em suas categorias de base.

Arte UOL

Como os clubes abordam o assunto

  • Atlético-MG

    Não detalhou. Em nota, o clube afirma que é contra qualquer tipo de discriminação e "esses assuntos são tratados, dentro do futebol de base e profissional, de forma interna e diz respeito às normas de conduta do Atlético."

  • Bahia

    No profissional e na base, aborda os temas, que aparecem em palestras, workshops, campanhas de conscientização e elaboração de materiais educativos. Também incentiva denúncias.

  • Botafogo

    Na base e no futebol feminino aborda o tema em palestras mensais

  • Cruzeiro

    Trabalha a temática com os atletas dentro de uma série chamada "Temas tabus no futebol"

  • Fluminense

    As discussões sobre o tema acontecem através de palestras, rodas de conversas, entrevistas individuais e conversas no dia a dia com os atletas

  • Fortaleza

    Faz encontros semanais por meio de palestras com os atletas para debater os temas

  • Goiás

    Aborda o tema na base do clube por meio de palestras da assistente social

  • Grêmio

    Assuntos de violência contra a mulher e machismo são abordados no dia a dia quando o clube entende que é necessário

  • Internacional

    Os temas são abordados por meio de atividades coletivas e individuais "dentro do planejamento semanal de cada categoria"

  • Palmeiras

    Trabalha os temas na base por meio de palestras em parceria com uma rede particular de ensino

  • Santos

    Fala sobre machismo e violência contra a mulher através de programações específicas com palestras e outras dinâmicas pontuais

  • São Paulo

    Os assuntos são abordados por meio de conversas em grupo, individualmente, palestras, dinâmicas e vivências mensais.

  • não responderam

    América-MG; Athletico-PR; Bragantino; Corinthians; Coritiba; Cuiabá; Flamengo; Vasco

Para mitigar, especificamente, os casos de assédio dentro das instituições, alguns clubes entrevistados pela reportagem contaram como vão além das palestras e investimento em educação.

O Botafogo criou o projeto "#AHoraDelas", que deu origem a um canal de ouvidoria exclusivo para as mulheres do clube, além de criar uma delegacia da mulher dentro de seu estádio.

O Grêmio tem o "Clube de Todos", programa que desenvolve ações contra todas as formas de preconceito, conscientizando seus torcedores e colaboradores e punindo aqueles que tiverem atitudes preconceituosas.

Já o Goiás, em uma parceria com o Sesi Jardim Planalto, oferece, além de toda a grade curricular, palestras e debates sobre diversos temas como homofobia, racismo, violência doméstica, violência sexual e saúde mental, entre outros.

No caso dos times profissionais, as denúncias são assumidas pelas esferas criminais, causando, idealmente, o afastamento dos jogadores do time até o julgamento. Nas categorias de base, por serem menores de idade, os atletas são tratados na esfera psicossocial.

Jogador não nasce pronto

Risadinhas se espalham pela sala. Uma brincadeirinha aqui, outra ali, e a turma cai no riso. Quando o assunto é sexo, infecção sexualmente transmissível ou assédio sexual, tudo parece ter graça para os alunos atletas.

Eliane Paim passou a ver cenas como essa quando se tornou, em 2019, pedagoga das seleções de categoria de base da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

O projeto com o qual estava envolvida deu espaço para que temas transversais, ou seja, que iam além das matérias formais de uma escola, fossem discutidos com os atletas do sub-15 ao sub-17.

"Eu puxava questões sobre o que eles viviam e sempre falava: vocês não precisam concordar com tudo o que a gente vai ver aqui, também podem questionar e discordar", lembra Paim.

Não era grande o tempo que passava com os jogadores, mas era o suficiente para discutir, também, temas como racismo, uso das redes sociais e violência contra a mulher.

Apesar das brincadeiras, ela lembra que a maioria entendia a importância desses assuntos, mas poucos se posicionavam. Tirando as gracinhas de teor sexual, a sala mergulhava em silêncio.

Quando as meninas entraram no projeto, então, ficou nítida a diferença. Elas não participavam das discussões com os garotos, mas, em suas próprias aulas, a participação era de cerca de 90% da turma, segundo a pedagoga.

"Isso vai marcar o resto da minha vida como professora, me dá muito orgulho ver meninas tão novas com 15, 16, 17 anos se posicionando de uma forma tão crítica e bacana sobre essa questão da mulher", diz Paim.

O trabalho de Paim foi descontinuado pela CBF, mas, enquanto estava em vigor, era feito em conjunto com os clubes.

'Tem muita Maria Chuteira por aí'

Aline Medeiros, professora e integrante do Grupa, coletivo de torcedoras do Atlético-MG, viveu um dos momentos mais especiais de sua vida quando seu time venceu o Brasileirão depois de 50 anos.

A vitória, porém, é lembrada com um gostinho amargo. O técnico que comandava o time em 2021 era o mesmo Cuca que hoje está no Corinthians.

"Torcer para um técnico que desperta gatilhos do maior medo de todas as mulheres, que é o de violência sexual, é muito complicado", relata Aline.

O sentimento se repete, hoje, nas torcedoras corintianas, que desde o anúncio do novo treinador se posicionaram contra e protestaram tanto nas redes sociais quanto na frente do CT Dr. Joaquim Grava.

Os atletas das categorias de base, por sua vez, são criados nesse contexto em que seus ídolos são frequentemente acusados de crimes contra as mulheres. E, nos centros de treinamentos, ficam confinados em um universo majoritariamente composto por homens.

Breiller Pires, jornalista e autor de matérias investigativas sobre os casos de abuso sexual em categorias de base, comenta que "nesse universo, a gente percebe que é muito enraizada a prática de colocar mulher como uma inimiga do jogador de futebol por influência de empresários, agentes e técnicos".

O atleta pensa: 'Olha, cuidado que tem muita Maria Chuteira por aí, elas querem tomar seu dinheiro.' E vai galgando degraus na carreira, vai ganhando nome, e passa a ser incentivado a ser um comedor, alguém que vai sair com todas as meninas. Breiller Pires, jornalista

Segundo ele, ainda é impossível medir o tamanho do prejuízo criado para os atletas que vivem na bolha formada pelos seus clubes.

"Também há casos de todos que passaram por esse ambiente e não se tornaram jogadores. A gente nunca teve notícia do que fizeram fora do campo, das violências que cometeram ou dos abusos que sofreram nesse universo", diz Breiller.

Menino joga de azul, menina de rosa

Na CBF, as seleções de base feminina e masculina também pouco se encontram. Mesmo quando as convocações coincidem, as atividades são sempre feitas separadas, como conta Eliane Paim.

Para a professora, juntar meninos e meninas nas atividades educacionais poderia ser uma forma de abrir a cabeça dos garotos para as questões das mulheres.

E não é só Paim que pensa assim. "Há estudos mostrando que até certa faixa etária não há problema em fazer um futebol misto", diz Breiller Pires. Essa experiência já aconteceu no Fluminense, por exemplo.

De acordo com o clube do Rio, o futebol feminino divide as instalações de treinamento com os meninos. "Os atletas trabalham e sonham em jogar futebol lado a lado".

Para Pires, esse tipo de contato facilita a criação de um ambiente menos masculinizado. "Os clubes precisam ter mais mulheres em posição de comando. É uma mensagem muito potente para um atleta ter uma treinadora. Porque ali ele já percebe que está tudo bem receber ordens de uma mulher, por exemplo", diz.

Essas ações, contudo, poderiam ser a realidade não de um clube específico, mas de todos, caso a CBF coordenasse essas iniciativas, afirma o jornalista.

Outra solução proposta para a base dos clubes é promover a discussão sobre educação sexual no dia a dia e sem tabu. "Trazer esse assunto poderia evitar casos como o do goleiro Bruno", comenta Breiller, referindo-se a uma frase dita pelo ex-goleiro quatro meses antes de ser preso sob a acusação de ter participado do assassinato de Eliza Samudio: "Quem nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher? Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, xará".

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