A grande família

Como a ciência confirmou as origens de centenas de quilombolas em 13 comunidades do Vale do Ribeira

Nadine Nascimento Colaboração para Ecoa, de São Paulo Deborah Faleiros/UOL

Se os anos escondem detalhes de histórias familiares ou adicionam interpretações a elas, a ciência tem ajudado a confirmar ou ajustar informações transmitidas de gerações a geração. Foi assim que a população das 13 comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, entre o sul de São Paulo e o leste do Paraná, descobriu que seus habitantes formavam, na verdade, uma "grande família".

Uma pesquisa pioneira feita pelo Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo) analisou 700 amostras de DNA para levantar dados genéticos da população.

Mesclando esse material às lembranças contadas pelos quilombolas da região, que possui a maior concentração de remanescentes de quilombos de São Paulo, as cientistas conseguiram elaborar a árvore genealógica dos moradores, entender sua dinâmica populacional e identificar predisposições a doenças, de obesidade e hipertensão a anemia falciforme. Todos os dados foram publicados na revista "American Journal of Human Biology".

Ao traçar as origens dos ancestrais dessas pessoas na África, a pesquisa ajudou a remontar a formação temporal das comunidades da região. A união entre história e genética salta aos olhos quando muitas dessas famílias, apesar de terem suas raízes apagadas, ainda carregam consigo um indicador aproximado de sua origem: o nome.

A família negra no Brasil começou nos quilombos. Nas senzalas não existia família. Quando uma criança escravizada nascia, ela não tinha pai nem mãe. Tinha um dono.

Benedito Alves da Silva, o Ditão, Líder do quilombo Ivaporunduva

Resistência que forma famílias

As pesquisadoras responsáveis pelo estudo, Regina Célia Mingroni-Netto, Lilian Kimura e Kelly Nunes, tinham um desafio: para estudar as origens das comunidades, precisavam identificar os movimentos migratórios e compreender como essas comunidades evoluíram ao longo do tempo. Esse processo envolvia entender a interação com outros agrupamentos quilombolas e grupos de não-remanescentes de escravizados.

A solução foi encontrar os padrões de endocruzamento, ou seja, quanto os indivíduos da região são descendentes de casamentos consanguíneos (que acontecem entre parentes próximos).

O estudo identificou que, em média, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira apresentam um coeficiente de endocruzamento três vezes superior ao observado em populações urbanas, como a da cidade de São Paulo - 0,0025 e 0,00067, respectivamente.

Este tipo de matrimônio era muito comum devido ao processo de formação dos primeiros quilombos no Brasil. Para resistir à escravidão durante o período colonial, essas comunidades precisavam se estabelecer em localidades de difícil acesso e a uma distância considerável dos centros urbanos ou das grandes fazendas. "Esse costume acarretou isolamento e limitação do tamanho populacional, o que frequentemente resultou na prática de casamentos consanguíneos", diz trecho da pesquisa.

A partir daí, a pesquisa mapeou a ancestralidade genética dos participantes e constatou que as comunidades quilombolas têm basicamente os mesmos fundadores. Algo que, sem provas ou evidências, as histórias locais já sugeriam.

Toda a comunidade é uma grande família, todo mundo é meio que casado com algum parente.

Elvira Morato, Líder quilombola da comunidade São Pedro

Deborah Faleiros/UOL Deborah Faleiros/UOL

Sobrenome: Quilombo

"A gente sabe que Bernardo Furquim de Campos foi o primeiro escravo que veio aqui para esse lugar [São Pedro], formou família e fundou o quilombo", diz Elvira Morato, 74. Antônio Morato, seu marido, é descendente direto de Bernardo Furquim.

A avó dele, Maria Nistarda da Conceição, é filha do fundador do quilombo com Maria Rodrigues. Ex-escravizado, Furquim criou a comunidade por volta de 1830, mas não se fixou em um só quilombo. Benedito Alves da Silva, 66, conhecido como Ditão, do Quilombo Ivaporunduva, conta que circulam histórias sobre Furquim ter vivido em comunidades diferentes onde se relacionou com outras mulheres.

"Tem muita gente, não só nos quilombos, mas no Vale do Ribeira, com o sobrenome Furquim por conta dele. Tem no São Pedro, aqui em Ivaporunduva, em Nhungara, em Pedro Cubas. Em qualquer lugar que você vai por aqui encontra um Furquim", conta.

Entre as décadas de 1850 e 1870, o relatório do Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo) identificou, ao menos, 24 filhos de Furquim.

"Interessante observar que muito das análises que a gente fez, tanto em grau de parentesco como da ancestralidade dessa família, de certo modo, é muito coerente com os relatos deles sobre suas próprias origens, indivíduos importantes que fundaram cada uma das comunidades e até a maneira com que relatam que descendem desses indivíduos."
Regina Célia Mingroni-Netto, presidente da Comissão de Pós-Graduação do Instituto de Biociências da USP

Alguns quilombolas guardam no nome traços do passado. Ditão, por exemplo, é casado com Zilda Furquim da Silva, com quem tem quatro filhos. Com outros, a reconstituição da árvore genealógica a partir do RG é mais difícil.

Moradora da comunidade São Pedro, que fica entre os municípios paulistas de Eldorado e Iporanga, Elvira Morato é mãe de seis filhos e criou outros seis adotivos após sua cunhada falecer. Ela é casada com seu primo de segundo grau, Antônio Morato. "Minha avó Joana Dias Morato era irmã de Ponticiano Dias Morato, pai do meu marido e meu tio-avô", conta.

Elvira e Antônio mantiveram os sobrenomes, mas muitos quilombolas alteraram seus nomes para se casarem. Isso é fruto da forte influência comunidades da Igreja Católica, que via com maus olhos a união entre primos.

A geneticista Lilian Kimura explica que este é um dos motivos de não ser possível, por exemplo, medir e estabelecer o grau de parentesco das comunidades apenas pela herança de seus sobrenomes.

"Muitas pessoas aparentadas entre si têm sobrenomes diferentes (...) existe uma forma de medir o grau de parentesco pela herança do sobrenome, só que ali não é possível fazer por conta dessas mudanças, pela falta de padrão na transmissão dos sobrenomes"

Os Costa da Mina

Há casos, porém, em que o nome não só mostra a ascendência, mas também a ancestralidade carregada pela pessoa. É o caso de Leonila Priscila da Costa Pontes, 62. Nascida na comunidade de Abobral Margem Esquerda, ela descobriu pelo estudo genético da USP que é descendente de africanos escravizados advindos da região chamada de Costa da Mina na época colonial e que hoje compreende a faixa litorânea de Gana, Togo, Benim e Nigéria.

Após analisar todas as 700 amostras, as pesquisadoras detectaram que algumas variantes no cromossomo Y eram bastante características e apenas encontradas na comunidade em que vive Leolila, explica a geneticista Kelly Nunes. Por lá, é comum que moradores tenham o sobrenome Costa da Mina ou variações dele.

"Quando começamos a comparar essas variantes com bancos de informações sobre o continente africano, vimos que ela são muito comuns na região da Nigéria", diz Nunes.

"Eu vivia muito agoniada por não saber de onde nós viemos. Agora eu posso morrer feliz porque eu sei de onde vieram meus antepassados"
Leonila Priscila da Costa Pontes, líder da comunidade de Abobral Margem Esquerda

A árvore genealógica de Leonila também carrega os laços parentais característicos das formações familiares na região. Sua avó materna, Maria Pedroso da Costa, por exemplo, era irmã de Eulália Maria da Costa, sua bisavó paterna. Ambas eram filhas de Higino Procópio da Costa.

Filha de Pedro Alexandre Castelo da Costa e Damásia Morais Costa, a quilombola teve, desde muito cedo, que lidar com perdas difíceis. Quando ela tinha apenas um ano e 10 meses, sua mãe morreu no parto do irmão. As três gravidezes de Leonila não vingaram. Há 30 anos morreu o marido em razão de um câncer no estômago. "Na minha última gravidez, disseram, depois dos exames, que o sangue do meu marido e o meu não combinavam", conta.

Consanguinidade

A análise genética dos quilombolas do Vale do Ribeira detectou frequências aumentadas para doenças como a obesidade e a hipertensão, além da anemia falciforme. Predominante em descendentes de africanos, essa doença hereditária causa uma alteração nos glóbulos vermelhos que dificulta a passagem do sangue pelos vasos de pequeno calibre e a oxigenação dos tecidos.

"No caso dos quilombolas do Vale do Ribeira era importante a gente saber quem é portador do traço falciforme. Justamente por se tratar de uma grande família com grande chance de parentes casarem entre si e ambos terem essa variante genética, a possibilidade de eles gerarem filhos com a doença é muito grande", explica Nunes.

A anemia falciforme acomete entre 25 mil e 30 mil pessoas no Brasil, sendo a doença hereditária monogênica mais prevalente do país. Durante o estudo, as geneticistas encontraram uma elevada taxa de pessoas com traço falcêmico, ou seja, que não apresentam a doença anemia falciforme, mas podem transmiti-la aos descendentes. "As pessoas detectadas como carregando o traço falciforme ou a anemia falciforme receberam orientações médicas e genéticas da equipe", explica Mingroni-Netto.

Poetisa, Leonila transformou em versos o impacto da doença em sua comunidade:

"A mulher negra sofre, no trabalho com a saúde e a desnutrição,
que atinge a elas e os filhos ainda criança.
E a anemia falciforme que vem com poder de destruição.
Só resta em Deus, Nele firmar a confiança,
que lhes dê forças, coragem, amor e proteção.
Muitas vezes, só lhes restam lembranças.
O tratamento é cansativo e quase não tem solução.
Muitas vezes a esperança
Já fugiu de suas mãos".

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Território

Dos 13 quilombos da região que participaram da pesquisa, apenas três (Ivaporunduva, São Pedro e Abobral Margem Esquerda) são reconhecidos pelo Estado. Apenas o primeiro teve a titularidade da terra conferida pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), graças à luta travada por Ditão, Elvira e Leonila. Mais velhos de suas comunidades e fortemente ligados à sua ancestralidade, os quilombolas veem no território a única forma possível de manter viva sua cultura.

"O que eu ouvia dos meus avós era que nós tínhamos que viver na terra e lutar pela terra. Ter a terra é a possibilidade de ter onde trabalhar e plantar tudo o que a gente tem direito e, assim, ter do que se alimentar", conta Elvira Morato.

Para Ditão, conseguir ter o território de Ivaporunduva é "o maior legado que a gente deixa". "É segurança para o povo daqui. Outra questão é a história que a gente vem reproduzindo na comunidade, falando para os mais jovens continuarem se autoafirmando, para que nossa história nunca morra", diz.

As pesquisadoras da USP encaram no trabalho junto aos quilombolas uma missão, que simboliza uma retribuição da universidade à sociedade.

"O rastreamento da ancestralidade teve o papel de validar e confirmar o que eles já sabem, para poderem reforçar frente ao Estado sua condição de quilombola, tendo direito àquela terra e respaldando seu lugar ético-cultural na história deste país."
Lilian Kimura, geneticista do Instituto de Biociências da USP

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