Uma nova chance

Pessoas de diferentes nacionalidades contam a Ecoa como foi recomeçar a vida como refugiadas no Brasil

Aline Takashima Colaboração para Ecoa, de Florianópolis (SC) Avener Prado/Folhapress

Se nos séculos 19 e 20 os italianos, alemães e japoneses vieram ao Brasil para fugir de guerras e da fome, na condição de imigrantes, hoje são majoritariamente os venezuelanos, sírios e congoleses que deixaram os seus lares e encontraram no país uma chance para recomeçar com status de refugiados.

Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), há mais de 57 mil pessoas com status de refugiado no Brasil. A Lei brasileira concede refúgio para quem é perseguido por conta da sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e para quem sofre graves violações de direitos humanos no seu país de origem.

A ativista Bruna Kadletz defende que é preciso apoiar essas pessoas respeitando sua história e individualidade. "Nomenclaturas oficiais e números estrondosos podem nos levar a esquecer ou deletar a humanidade e individualidade de cada um", afirma.

Bruna abandonou a profissão de dentista em 2008 para se dedicar ao voluntariado em países como África do Sul, Líbano e Jordânia. Em 2017, fundou a Círculos de Hospitalidades, uma organização que desenvolve projetos educacionais, socioeconômicos e culturais para imigrantes no Brasil. Com sede em Florianópolis (SC), a instituição atendeu 4 mil pessoas e doou 40 toneladas de alimentos no ano passado.

Leia, a seguir, histórias de pessoas que vieram da Venezuela, Síria e República Democrática do Congo. Elas participam da Círculos de Hospitalidade e contam por que vieram para o Brasil e o que tiveram que deixar para trás.

Avener Prado/Folhapress
Arquivo pessoal
Oriana Quiroz (dir.) com o filho e a mãe

"As mães precisam ir para cima, ir com tudo"

Oriana Quiroz, 29, de San Antonio de los Altos (Venezuela) para Florianópolis (SC)

Segundo a Organização das Nações Unidas, quase cinco milhões de pessoas abandonaram a Venezuela devido à crise econômica e social. Só no Brasil vivem mais de 260 mil venezuelanos, 46 mil com status de refugiado. Oriana Quiroz é uma delas:

"Eu me formei em design de moda na Venezuela, mas sabia que não conseguiria emprego. Naquela época, em 2012, a gente esperava em filas imensas no supermercado para comprar arroz para a família.

Fui morar na Argentina, em 2013, aos 21 anos. Cheguei ao Brasil em agosto de 2017. Vendia passeios de barco nas praias de Florianópolis.

Neste meio tempo, engravidei. Eu não tinha salário fixo nem documentação no país. Estava sozinha. Me separei do meu namorado antes de meu bebê nascer. Por isso, em dezembro de 2017, a minha mãe veio para me ajudar.

Ela chegou pela fronteira em Pacaraima, no norte de Roraima, e o visto saiu rápido. Meu pai e minha irmã ainda estão na Venezuela. O país que eu deixei em 2012 não existe mais. Agora está muito pior do que antes.

A minha irmã está desempregada. Os meus pais são aposentados pelo Banco Central da Venezuela, mas minha mãe deixa o dinheiro dela para o meu pai. Se for converter a pensão em bolívar venezuelano para o real dá uns 50 reais.

Em agosto de 2020, comecei a trabalhar na Círculos de Hospitalidades em um programa que ensina como montar o seu negócio. Lá, aprendi que a gente tem que começar com o que tem. Como a minha mãe ganhou uma máquina de costura, decidi fazer bolsas.

Mesmo as mulheres com filhos pequenos precisam trabalhar, ir para cima, ir com tudo."

As crianças são uma fortaleza para seguirmos adiante. Eu sei que não é fácil. Apesar dos momentos difíceis, tenho muita fé de que tudo vai ficar bem

Oriana Quiroz

Arquivo pessoal

"A primeira vez que pertenço a um lugar"

Ahmed Hamed, 34, de Damasco (Síria) para Araçatuba (SP)

A guerra na Síria impulsionou um dos maiores êxodos populacionais desde a Segunda Guerra Mundial. Segundo o ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, cerca de 6,7 milhões de pessoas fugiram do conflito. No Brasil, os sírios representam a segunda nacionalidade com maior número de refugiados: são quase 3.600.

"Eu nasci refugiado e sempre fui chamado de refugiado. A família dos meus pais fugiu da Palestina em 1948. Meu pai saiu do seu país com 2 anos. A minha mãe nasceu e cresceu no campo de refugiados Nahr El Bared, no Líbano. É um local construído em 1949 para os palestinos que foram obrigados a abandonar a sua terra.

O meu país do coração é a Palestina. Mas eu não o conheço. A minha família foi tirada de lá à força.

Eu nasci na Síria. O governo sírio, ao contrário de outros países árabes, deu aos palestinos o direito de viverem lá. Mesmo assim, em todos os meus documentos da escola e da faculdade estava escrito: refugiado e palestino.

Ninguém gosta de sair do seu país. Mas quando acontece uma guerra as pessoas tentam sair para sobreviver. Em 2012 eu fugi da Síria. A minha família está separada: alguns irmãos continuam lá, e tenho um irmão na Noruega e uma irmã na Alemanha. Meus pais e outros três irmãos estão em Nahr El Bared, no Líbano. Eu morei lá até 2013."

Nós, refugiados, não somos um problema. Podemos fazer a diferença no Brasil

Ahmed Hamed

"Sou formado em língua inglesa. Na Síria, dava aulas de inglês em uma escola pública. No Líbano, fui contratado por organizações como a UNICEF para ensinar inglês. Mas lá os palestinos não podem trabalhar. Quando o governo descobriu que eu estava trabalhando, eles quiseram me deportar. Por isso fui para o Brasil.

Aqui eu trabalhei como cozinheiro em um restaurante e como vendedor em uma loja até revalidar o diploma da faculdade. Há 3 anos sou coordenador pedagógico em uma escola particular.

A educação é um valor muito importante na minha família. Se você não tiver estudos, você não consegue um bom trabalho. O meu pai é professor de árabe, duas irmãs são professoras de matemática e um irmão é professor de geografia.

Hoje eu não estou mais sozinho no Brasil. Em maio, o meu sobrinho Amer, de 18 anos, veio de Nahr El Bared para o Brasil. Primeiro ele tem que aprender português para se comunicar e se adaptar no país. E depois pensar em um curso e um trabalho.

Aqui, eu tenho nacionalidade brasileira. Não está escrito refugiado em nenhum dos meus documentos. É um detalhe importante. Eu me emociono quando escuto o hino nacional brasileiro na escola. É a primeira vez que pertenço a um lugar."

Nacho Doce/Reuters Nacho Doce/Reuters
Arquivo pessoal

"Cada um da família teve que ir para um canto"

Josué Rocky, 24, de Kinshasa (República Democrática do Congo) para Florianópolis (SC)

Quase um milhão de congoleses está refugiado em países estrangeiros, de acordo com a Agência da ONU para Refugiados. No Brasil, são mais de mil. Rocky é um deles e veio para fugir de perseguição política. Ele estava desempregado desde março do ano passado. No dia seguinte à entrevista, conseguiu um emprego de serviços gerais em uma padaria com a ajuda da Círculos de Hospitalidade.

"Em 2016, o meu pai lutava pelo Congo. Ele conscientizava as pessoas para protestar contra o presidente Joseph Kabila, no poder há quase 18 anos. O povo estava morrendo de fome.

Vários amigos do meu pai foram presos e ninguém sabe onde estão - ou se estão mortos ou não. Cada dia a gente dormia em uma casa diferente com medo da polícia buscar o meu pai.

Uma vez, uns policiais bateram na porta de um amigo dele à 1h da madrugada. Eles tinham recebido informação de que pessoas perigosas estavam na casa. Eu estava lá com meu pai e a gente pulou o muro para não nos encontrarem.

Meu pai ficou com medo de algo pior acontecer comigo e me mandou ir para o Equador. Para chegar até lá, precisava passar pelo Brasil. Mas não consegui fazer a conexão do Brasil para o Equador.

Para entrar no país, o meu passaporte deveria ter validade de 6 meses. E o meu documento era válido por 5 meses e 3 semanas. Dormi no aeroporto de Guarulhos por 5 dias. Nesse meio tempo, a situação do Congo piorou. Não tinham mais voos. Então fui até a Polícia Federal e pedi refúgio para ficar no Brasil.

O meu pai ficou no Congo, perdi o contato com ele. Minha mãe se refugiou em Angola e o meu irmão na Turquia.

O Congo é o meu país. Não tem nenhum país em que vou me sentir tão à vontade quanto na minha própria terra. Mas cada um da minha família teve que ir para um canto para fugir e se proteger.

Morei em São Paulo quando cheguei ao Brasil, em fevereiro de 2016. Ali, trabalhei como ajudante geral e fiz um curso de atendimento ao cliente e vendas. Fui vendedor e caixa em lojas de departamento.

Com a pandemia, perdi o emprego. Cheguei a vender água e refrigerante na rua até que tomei a decisão de vir para Florianópolis. Aqui, estou morando em um centro de acolhimento da prefeitura. Tenho uma filha de 3 anos para sustentar. Ela mora com a mãe angolana em São Paulo.

Eu acho que quem vem da Europa não é tratado no Brasil do mesmo jeito que uma pessoa que foge da guerra ou de um país pobre. Algumas pessoas nos veem como um objeto ou como se a gente não valesse nada. Eu não quero que a minha filha sofra com isso."

As pessoas têm que tratar o africano da mesma forma que tratam o estrangeiro de um país branco.

Josué Rocky

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