O ambientalista solitário

Homem doa terras na capital paulista, planta mais de meio milhão de árvores e auxilia libertação de pássaros

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo (SP) Keiny Andrade/UOL

Jayme Vita Roso, 88, viajou ao Zaire nos anos 1970 e se sentiu um homem diferente quando voltou para o Brasil. Até ali, era um advogado bem-sucedido. Trabalhava para grandes empresas e viajava pelo mundo. Conheceu a Europa, a Ásia, os Estados Unidos. O nome e o telefone de seu escritório estavam nos jornais, sempre envolvido em grandes burocracias jurídicas. Com o dinheiro, Jayme comprou um terreno em Parelheiros cujo tamanho equivalia a 43 campos de futebol. Seu objetivo era a construção de imóveis em uma das regiões mais verdes e desabitadas de São Paulo.

A propriedade, porém, não tinha vegetação. As árvores foram cortadas pelo dono anterior e a paisagem lembrava um campo de golfe com declives e sem obstáculos. Até então, os únicos protetores da mata no distrito eram os indígenas da aldeia Krukutu. O advogado não parecia se importar muito com a questão até ali, mas a viagem ao país africano, hoje República Democrática do Congo, havia alterado algo em Jayme. Os planos mudaram. Dali em diante, ele decidiu usar o sítio para plantar o máximo de árvores até reviver a floresta que existia no passado.

Arquivo pessoal
Jayme Vita Roso em 1988 no sítio Curucutu

A compra, claro, não garantia o sucesso. Faltava eletricidade. As ruas eram de terra. Caçadores de animais invadiam território indígena e lenheiros derrubavam a mata para venda de madeira. A distância também era um problema. Parelheiros tem 353 km², ou 23% do território da capital paulista, mas apenas 140 mil habitantes. Como comparação vale lembrar que Belo Horizonte, a capital mineira, é um pouco menor e possui uma população de 2,5 milhões de pessoas. Entre 1960 e 1970, menos de 30 mil pessoas viviam em Marsilac e Parelheiros. De lá até o centro são 50 km em um trajeto de uma hora e meia de carro.

O vazio e o isolamento criaram uma paisagem própria, que ainda lembra uma cidade do interior, mas com problemas da cidade grande. A partir dos anos 1960, a desigualdade e a criminalidade cresciam no território onde habitavam indígenas e, desde o século 19, alemães. "Eu puxava um poste de energia e, no dia seguinte, os fios eram roubados", lembra. Os colegas ainda não entendiam. Por que comprar uma área tão desvalorizada só para plantar árvores?

Parte da resposta foram os cinco anos de trabalho no Zaire. Jayme viu centenas de árvores cortadas para a venda de madeira. Florestas desapareciam em semanas. "Era um país lindo, mas arrasado pela ganância", diz. Lembrou também dos avós, que narravam como a natureza arrasada no sul da Itália diminuiu o trabalho no campo e estimulou a entrada de jovens nas máfias locais. O mesmo parecia acontecer no Brasil.

O pai de Jayme nadava no Tietê antes de a poluição condenar o rio. São Paulo crescia e deixava rios e árvores para trás.

As primeiras mudas plantadas por Jayme eram nativas e exóticas. No final dos anos 1970, ainda não se sabia da importância do plantio de espécies locais, o que gerou uma floresta diversificada.

Na propriedade, há exóticas, como as pinus e amoreiras, e as naturais da Mata Atlântica, como a quaresmeira e o manacá-da-serra. São mais de 60 tipos de plantas. Entre as frutíferas, há o limoeiro, a grumixameira, a bananeira e a exótica pitaya. Em breve, uma horta terá um sistema agroflorestal para produzir comida orgânica. Dentro de uma edícula, mudas crescem à espera de serem unidas às árvores ou doadas. O sítio gera cerca de 25 mil mudinhas anualmente.

Nos anos 1990, o advogado percebeu que o plantio era ineficiente. Naquela altura, mais de 20 anos haviam passado e o crescimento da cidade era uma ameaça cada vez maior. Por isso, tomou uma decisão ousada: transformar parte do sítio em uma reserva. Ou seja: criar uma área de proteção oficial do Estado dentro da própria propriedade chamada de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

O modelo não expulsa o dono e permite uso para fins ambientais só com autorização de órgãos ambientais, como o Ibama. Há um detalhe importante: o compromisso é para sempre e não pode ser revogado. Os donos de reservas particulares bancam os custos e são responsáveis por conservar, instalar placas, promover e divulgar eventos ecológicos. Em troca, a lei permite abater impostos de propriedades rurais, facilita obtenção de crédito e recebe policiamento ambiental.

"Me chamavam de louco!", relembra. "Eu não só dou as minhas terras, mas obrigo meus herdeiros a cuidarem", diz. Nos jornais, Jayme deixou de ser descrito apenas como advogado: passou a ser chamado de ambientalista "solitário".

O investimento deu certo. A cada década, o terreno com 855 mil metros quadrados, mais da metade do Parque do Ibirapuera, e cerca de 100 mil metros quadrados de reserva ganhava uma floresta maior. No total, são 600 mil árvores plantadas pelo advogado, ou mais de meio milhão — e tantas outras na conta da própria natureza. "Uma parte foi o meu pai, a outra parte foram os pássaros", diz Ana Roso, artista e ambientalista.

O plantio provocou o ressurgimento de nascentes e corpos d'água que Jayme e as filhas querem nomear em homenagem a famosos locais, como Carolina Maria de Jesus. A escritora viveu em Parelheiros e possui uma estátua no bairro inaugurada neste ano pela prefeitura paulistana. "Eu a conheci!", diz Jayme.

Há uma longa lista de personalidades e políticos conhecidos pelo ambientalista e advogado, embora nem todos tenham lhe dado ouvidos no passado. Segundo ele, os recursos do setor privado e público sempre foram escassos e, por muito tempo, as visitas costumavam atrair só grupos de escoteiros. Em 2001, porém, aconteceu uma reviravolta.

Naquele ano, a reserva se tornou a porta de entrada da Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos. Se nos anos 2000 o sítio de Jayme correspondia a 2,8% de todas as áreas protegidas, a criação da primeira APA da cidade acirrou a disputa — de forma positiva.

Hoje, além da reserva, nos entornos há áreas protegidas, territórios indígenas e parques estaduais que formam centenas de km² de Mata Atlântica conservada entre São Paulo, ABC Paulista e Baixada Santista pela Serra do Mar. São mais de 400 espécies vertebradas, sendo que algumas existem só ali. É o caso do muriqui, um dos maiores primatas do país, que abriga-se entre as incontáveis árvores e cachoeiras.

Os anos de dedicação e dinheiro do próprio bolso foram recompensados. Em 2002, Jayme tornou-se um dos gestores da primeira área de proteção ambiental oficialmente criada pela prefeitura.

Além de Ana, sua irmã Vera Roso, 63, se aposentou como professora para se dedicar exclusivamente ao sítio da família há onze anos. Após o auge da pandemia, elas reativaram a parceria com a polícia ambiental para a libertação de pássaros resgatados do tráfico de animais. Em 2021, 27 aves foram libertadas em um só dia na propriedade. Uma delas, inclusive, é a coruja-orelhuda. O som feito pela ave dá nome à reserva: Sítio Curucutu.

As irmãs pretendem estimular o turismo no local e levar cada vez mais estudantes, famílias e especialistas para conhecê-lo, além de conquistar recursos para projetos ambientais e abrir as portas para a visita de observadores de pássaros. A iniciativa é uma continuação dos planos do pai, orgulhoso em saber que as terras doadas vão permanecer verdes para sempre.

"Eu estive em muitos lugares e me antecipei. Vi o que era viver com a destruição da natureza", diz. "O que eu comecei foi uma questão de amor à vida".

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