Traficando Informação

Rap, literatura e fé na juventude: MV Bill lança livro e pensa o Brasil 'muito longe da vitória coletiva'

Eduardo Carvalho Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro (RJ) Ricardo Borges/Folhapress

Talvez só a pandemia e, por sua vez, o tempo de reclusão obrigatório pudessem parar um gigante. Afinal de contas, bloquear o flow frenético de MV Bill, 48, não é coisas para os fracos.

Com a impossibilidade de cantar ou dizer suas rimas para o grande público, o rapper, ator, escritor e ativista aproveitou o tempo disponível para fazer um movimento contrário: se ouvir. Tendo espaço merecido para traficar informações sobre sua trajetória, numa perspectiva que mais imitava um jogo de espelhos, Bill as abriu para que Alex Pereira Barbosa, seu nome de batismo e pessoa física, pudesse relembrar algumas das passagens que o fizeram chegar onde está, sendo um dos artistas mais longevos da cena hip-hop.

Desse reencontro, nasceu "A Vida Me Ensinou a Caminhar", autobiografia lançada pela Editora AGE, em que narra seu início na comunidade da Cidade de Deus, a CDD onde cresceu, passando pelo primeiro grupo no rap, o Geração Futuro, até o sucesso e os encontros com personalidades como Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr., e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Comecei a pensar em dividir histórias que nunca tinha contado antes, e talvez nem tivesse coragem de dividi-las, mas o momento pandêmico, a idade, minha posição dentro do cenário do hip-hop e da própria cena, me fizeram contar", pontua.

Com os olhos de quem viu não só a favela mudar, mas, também, o país, o ativista que se aproxima dos 50 anos acredita que a troca com a juventude é um dos eixos de esperança para o Brasil.

"A juventude traz uma esperança, o ar de coisa nova", diz na entrevista a Ecoa. Estabelecendo ligações com o presente, Bill visita o passado e nos convida a pensar um futuro possível pra geral.

Divulgação Divulgação

Soldado do morro

Qual foi o caminho mais marcante que a vida te fez passar?

MV Bill - Dos vários caminhos que passei na vida, talvez o caminho que me levou a conhecer a fome, a necessidade e a pobreza extrema de perto, talvez seja um dos caminhos mais tortuosos que percorri. Ao mesmo tempo, talvez seja o momento da minha caminhada onde eu mais aprendi.

Sua autobiografia, lançada este ano, dialoga com o começo da sua carreira, ainda na Cidade de Deus, e com o seu começo no rap. Como foi o movimento de mergulho em sua própria trajetória?

A princípio era um livro que teria outros contos, né? Porque eu ensaio pra fazer esse livro desde 2015, mas não tinha tempo pra parar. Em 2020, dentro da pandemia, consegui para escrever esse livro. Porém, dentro da pandemia, eu tive vontade de visitar outras histórias, diferentes da que eu tinha pensado inicialmente. Comecei a pensar em dividir histórias que nunca tinha contado antes, e talvez nem tivesse coragem de dividi-las, mas o momento pandêmico, a idade, minha posição dentro do cenário do hip-hop e da própria cena, me fizeram contar.

Durante o acumulado dos anos, para um homem que viu diversas transformações dentro e fora da quebrada, o que não mudou?

Ao longo dos anos eu vi a favela sofrer várias transformações, pro bom e pro ruim, pro bem e pro mal. É inegável o avanço de várias pessoas que conseguiram alcançar universidades, puderam ser empreendedoras, artistas com sucesso. Mas ainda estamos muito longe da vitória coletiva. [Há] algumas vitórias individuais, mas daquele vitória do coletivo, [ainda] estamos muito distante, ainda temos que trabalhar bastante pra essa caminhada, que já demos bons passos.

Ricardo Borges/Folhapress Ricardo Borges/Folhapress

Nada Mudou

Se há 30 anos, no começo da sua carreira, alguém te contasse como estaria o Brasil hoje, o que você pensaria?

Seria uma situação inimaginável achar que a gente retrocederia tanto, depois de avançar tanto.

O Brasil já sabe como é que se faz, como é que tira a maioria da miséria absoluta, a gente já conseguiu chegar nesse ponto, nesse patamar. Estamos num momento de regressão, que pra mim seria inimaginável se alguém me falasse há 30 anos.

E se eu tivesse que falar alguma coisa pro Bill de 30 anos atrás, eu diria: "Obrigado. Obrigado por preservar, insistir, não desistir e acreditar que era possível fazer algo diferente, mesmo sem saber que daria no que deu hoje".

E para o MV Bill hoje, o que é urgente?

Hoje eu sou mais tranquilo, quando era mais jovem, era muito ansioso, as coisas pra mim eram mais urgentes, era adepto do imediatismo. Tento ver a vida de forma mais mansa, quando diz respeito a minha arte, ao meu trabalho.

Mas pro Brasil, pro cidadão, existe uma urgência em discutir mais política: lado a, lado b, esquerda e direita, discutir os papéis da política, a falta de políticas públicas, a falta de projetos políticos para o engradecimento da população no coletivo.

O quão importante é termos o envolvimento das pessoas comuns na política? É importante a gente ter esse tipo de envolvimento. A gente descobriu na pandemia que o valor do alimento mais caro tem a ver com política, a polícia agindo de forma violenta tem a ver com política, o crime chegando em lugares onde não estava antes... A política é o que rege nossas vidas.

Você conhece a Cufa?

A Cufa é a Central Única das Favelas, uma ONG fundada em 1999 por jovens como MV Bill e Celso Athayde. Hoje ela está presente em todos os estados brasileiros e outros 17 países. Em 2017, Bill e Athayde deixaram a direção da ONG.

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A vida me ensinou a caminhar

Recentemente você participou de um evento no qual a conversa girava em torno do ODS (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) número 16, que visa promover a paz, o acesso à justiça para todos e a construção de instituições responsáveis e inclusivas. Esse seria o símbolo da sua vida?

A minha vida poderia ter vários símbolos, né? O lance das ODS, eu tenho uma identificação porque eu já era uma ODS antes mesmo de existir esse termo: pela minha preocupação por quem está ao meu redor, pelas coisas que fiz quando participava da CUFA (Central Única das Favelas), pela quantidade de pessoas que a gente ajudou a mudar de vida, pela quantidade de ajuda que a gente promoveu, então isso faz de nós pessoas altamente comprometidas nessas causas.

Manter uma meta é importante, mas acho que independente da meta, já tem gente trabalhando nisso há muito tempo, e a meta não precisa ser alcançada dentro dessa data. A gente pode encurtar o prazo, basta ter vontade política.

Você participa de muitos encontros com as gerações mais jovens - sobretudo as da favela. Isso te desperta esperança de uma cidade, um estado e até um país melhor?

Sou muito grato de ter essa oportunidade de, nessa altura do campeonato, ter minhas músicas ainda com relevância, não só as antigas, mas as pessoas tem atenção para as músicas novas que lanço.

Tenho muitos encontros com os mais jovens, talvez eu seja um das antigas [gerações do hip-hop] que mais tem esse encontro com a juventude. É um encontro que eu classifico como via de mão dupla, onde trago conhecimento, mas também aprendo muito com os jovens. É um encontro que possibilita bastante coisa positiva.

A juventude traz uma esperança, de coisa nova, de mudança ou continuidade do que já existe — continuidade do que já faço ou fizeram dentro do rap, e continuidade política.

É bom lembrar que nas próximas eleições, vamos ter cerca de dois milhões de jovens entre 16 e 17 anos, aptos a votar, se decidiram tirar seus títulos. Acho que isso faz toda a diferença, independente de quem vai votar, ter esse respiro dos jovens é importante. Pra política, pra cultura, pras artes, pra sociedade no geral.

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