Arroz, feijão e farinha

Apesar da origem em disputa, esta combinação nutritiva se transformou no prato tradicional do Brasil

Camilla Freitas De Ecoa, em São Paulo

"Dize-me o que comes e te direi quem és". A frase, que está no livro "A fisiologia do gosto", do cozinheiro e advogado francês Brillat-Savarin, nos convida a pensar na comida como identidade. Nós, brasileiros, podemos nos debruçar diante de centenas de frutas, legumes, cereais e verduras para tentar descobrir, de fato, o que é que nos define.

"É desafiador conceituar a cozinha brasileira. Cada um de nós seria capaz de citar um prato, um preparo, uma bebida que represente essa cozinha", explica Fabiana Paixão Viana, antropóloga e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Esse desafio se dá porque o Brasil é um país de tamanho continental e que teve um processo de colonização diferente em cada região. Antes mesmo de ser ocupado pelos portugueses, uma infinidade de grupos indígenas vivia aqui e tinha seus próprios hábitos alimentares. Além deles, os africanos (também de diversas etnias) contribuíram, e muito, para o que chamamos de nossa comida.

Essa mistura culinária foi um diálogo entre os três grupos, como gosta de pontuar o antropólogo e professor da Universidade Federal da BahiaVilson Caetano. Um diálogo não deixa de fora a ideia de conflito, mas dá igual importância a todas as contribuições.

E é desse choque de temperos, modos de preparo e utensílios que nasce aquele que é considerado um dos nossos pratos tradicionais, o arroz com feijão. Ou feijão com arroz. Como já foi dito, as variedades são muitas. E com farinha ao lado, é claro.

Um dois, feijão com arroz

No ano de 1989, a escola de samba Estácio de Sá desfilou na Marquês de Sapucaí cantando os versos "É feijão com arroz. Viva o povo brasileiro". O desfile, que rendeu o oitavo lugar na classificação geral entre as escolas do Rio de Janeiro, contou a história dessa dupla e como ela chegou à mesa do brasileiro.

Lá nos primeiros registros da humanidade estava o feijão. Mesmo que algumas espécies já fossem conhecidas por grupos indígenas, em nossas terras, o grão foi introduzido em massa e com variedade pelos portugueses. Não dá para dizer, contudo, que o hábito de se consumir feijão no Brasil tenha sido popularizado pelos lusitanos, como explica o antropólogo Vilson Caetano.

"O hábito de comer feijão no Brasil vai se popularizar no final do século 18 e início do século 19, sobretudo na região sudeste. E isso aconteceu através das mãos dos africanos", explica. No texto "O carioca, o preto, o branco e a mulata: as viagens do feijão na cozinha afro-brasileira", ele comenta que há registros da leguminosa em variedades de cores, tamanhos e preparados já em África.

Eram as pessoas escravizadas que faziam os trabalhos de cozinha. Eram elas, também, que comercializavam os grãos, além de consumi-los, como escreveu o comerciante inglês John Mawe em 1812. Caetano completa essa ideia sinalizando que a dieta do senhor de engenho era muito parecida com a dieta de seu escravo. Fazendo uma ressalva, também, de que nem todos os africanos estavam escravizados. "Durante o século 19, africanos subiam e desciam importando alimentos", conta o antropólogo.

Mesmo que o brasileiro se identifique com o arroz, o feijão e a farinha, em alguns lugares esses elementos vão ser mais preponderantes do que em outros

Sidiana Macêdo, historiadora

Já os primeiros registros de cultivo do arroz estão bem longe da nossa terra, eles remontam à Ásia, sem haver certeza se é originário da Índia ou da China. No Brasil, teria chegado junto com os portugueses e se tornado, como alguns pesquisadores apontam, o primeiro cereal a ser cultivado no continente americano. Antes dos lusitanos pensarem em pisar em terras brasileiras, porém, os tupis já cultivavam o milho d'água (abati-uaupé), conhecido como arroz selvagem.

Mas foi por volta de 1808, como escreveu o antropólogo Câmara Cascudo, autor do livro "História da alimentação no Brasil", que o rei D. João 6º, fã do arroz, incluiu o cereal na alimentação dos soldados brasileiros. Mas não há como afirmar que foi a partir desse momento que ele se estabeleceu na nossa alimentação, já que os próprios africanos, por exemplo, preparavam no Brasil receitas com o cereal como o arroz de hauçá.

Olhando para o nosso prato de feijão com arroz, podemos pensar que ele sofreu, de maneira semelhante, a influência de portugueses, indígenas e africanos. Mas essa ideia pode reforçar o mito da democracia racial se não levar em consideração as relações de poder entre os três grupos durante o processo de colonização. "No entanto, mesmo que não tenha acontecido de forma uniforme e igualitária, são inquestionáveis as contribuições destes três povos nos hábitos alimentares brasileiros", explica a antropóloga Fabiana Paixão.

Farinha de guerra: a mãe do Brasil

Antes de o arroz fazer parte da comida do exército brasileiro a mando de D. João 6º, era a farinha de mandioca que fazia companhia ao feijão na dieta dos soldados. A professora de história da Universidade Federal do Pará Sidiana Macêdo conta que, inclusive, ela foi fundamental para a colonização da Amazônia.

E a história dessa farinha começa aqui mesmo, em terras brasileiras, com os povos indígenas. Vale, contudo, relativizar seu uso, uma vez que nem todas as etnias a consumiam. Por outro lado, é inegável a importância que a farinha teve muito antes do processo de colonização.

"Ela é um produto de consumo ancestral e que tem em seu processo de fabricação, principalmente no Norte do país, com técnicas de grupos indígenas que se mantêm até os dias de hoje", explica Macêdo. Assim, por fazer parte desses saberes ancestrais, por ter acompanhado a formação do povo e do território brasileiro e por ter sido alimento fundamental de soldados e escravizados que a farinha foi chamada por Câmara Cascudo de mãe do Brasil.

Se não dá para saber como o hábito de se comer farinha se espalhou pelo país, o que se sabe, ao menos, é que ele é bastante nutritivo. "Tem-se a percepção de que a farinha de mandioca é menos saudável que outras farinhas como a de aveia, mas a farinha de mandioca é uma fonte importantíssima de fibra", comenta a nutricionista Camila da Silva. Ela acrescenta que, acompanhada de arroz e feijão, a farinha forma um "casamento perfeito".

Uma disputa chamada feijoada

Arroz, feijão e farinha de mandioca são, também, feijoada, outra comida tradicional brasileira. Tem quem coma a light e tem que prefira a completa e é justamente nas carnes que incrementam o feijão que está a disputa desse prato.

Talvez você já tenha ouvido dizer que a feijoada veio das senzalas, que foi criada por pessoas negras escravizadas que uniam ao feijão pedaços de carne que eram descartadas pela Casa Grande como orelha, pé, rabo e língua de porco. "Historicamente não há elementos que provem que os portugueses desprezavam essas partes", explica Vilson Caetano. Também não é possível afirmar que a criação tenha sido dos africanos ou ainda de portugueses e franceses, que já misturavam carnes ao cozido de feijão.

Mas não há como negar a contribuição africana para a constituição do prato, já que são deles muitas das técnicas que empregamos hoje na cozinha, e seu protagonismo para a criação de diversas receitas. Um exemplo é o acarajé baiano que tem como base também o feijão. Hoje, todo o ofício, que remonta à África Ocidental, é considerado patrimônio imaterial pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Fato semelhante não acontece com a feijoada porque não há como identificar os grupos produtores desse saber. Além disso, a receita em si não é passível de reconhecimento como patrimônio pelo órgão, como explica Tassos Lycurgo, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan.

Patrimônio cultural imaterial do Brasil

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  • Piauí

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  • Minas Gerais

    Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas

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Acrescenta algo aqui, tira algo de lá

Não só por portugueses, indígenas e africanos a culinária nacional foi influenciada. Junto ao arroz, feijão e farinha de mandioca foram acrescentados ingredientes, utensílios e técnicas de outros grupos étnicos. "Além destas influências externas, que são contínuas, sobretudo no mundo globalizado, a sociedade brasileira encontra-se em constante mudança", comenta a antropóloga Fabiana Paixão.

Se antes era mais comum encontrar famílias que comiam reunidas em volta da mesa, hoje, com as novas dinâmicas dos centros urbanos incluindo escolas e trabalhos mais distantes, trânsitos e até a influência da tecnologia por meio da televisão, esse hábito se tornou mais escasso.

"O atual crescimento de serviços como delivery e fast food, principalmente durante a pandemia, também pode impactar em novos hábitos que serão mais visíveis nos próximos anos", explica Paixão. Essa mudança, por outro lado, pode não afetar o que conhecemos como pratos típicos. A historiadora Sidiana Macêdo pontua que muitos desses pratos não são consumidos diariamente. A cesta básica do brasileiro ainda é o arroz com feijão. "São duas discussões diferentes: o que de fato é a comida diária e o que é a comida típica", finaliza.

Outro fator que influencia os hábitos alimentares é o preço de alguns alimentos. Em algumas cidades do Brasil, um pacote de arroz de cinco quilos, normalmente vendido a cerca de R$ 15, chegou a custar R$ 40. "Comer arroz, feijão e farinha deveria ser sempre enaltecido do ponto de vista nutricional e do acesso a esses alimentos. Apesar de a gente ter uma alta nos preços do feijão e do arroz, são eles que matam a fome da população", comenta Camila da Silva, nutricionista.

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