Arca de Noé

Bancos de sementes guardam o futuro das histórias e da alimentação de famílias agricultoras no semiárido

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo

Maria José, 44, dá logo a dica: um bom lugar para guardar as sementes é dentro de garrafa PET. Fica certinho lá dentro, tudo bem preservado. Mas só pode abrir o recipiente quando for plantar, antes disso não dá. Agricultora há trinta anos em Mogeiro (PB), ela guarda sua coleção em um quartinho dentro de casa, mas desde 2015 também tem reservado variedades de milho e feijão em um banco comunitário de sementes.

"A gente deposita nossas sementes lá, aí quando é período de plantação, voltamos ao banco para pegar as sementes. Mas não tem só material pra gente comer não, guardamos também as que vão servir para alimentar o gado, as ovelhas", conta Maria.

Imagine uma instituição financeira onde você deposita seu dinheiro. Um banco de sementes funciona praticamente da mesma maneira. Só que em vez de levar moedas e cédulas de papel, os agricultores levam garrafas com sementes — materiais tão valiosos já que o ciclo da alimentação saudável começa quando homens e mulheres do campo jogam esses caroços na terra.

São valiosas também porque não são qualquer semente. Conhecidas como sementes crioulas, ou seja, sementes tradicionais, elas são heranças passadas de mães e pais para filhos e filhas. Estão em famílias de agricultores há décadas, e são ameaçadas por diversos motivos, como contaminação por agrotóxicos ou transgênicos e perda de material devido a mudanças no clima. Por isso, os bancos de sementes guardam, hoje, o futuro. São responsáveis por armazenar o que muitas famílias e animais vão comer nos próximos meses e anos.

Sementes que são heranças

A importância de um banco de sementes para guardar material crioulo fica nítida quando Maria José explica de onde vêm as sementes que planta até hoje. "Quando a gente fez o banco, eu levei 5kg de feijão e 3kg de milho. Essas duas variedades tão na minha família há muito tempo. O meu pai herdou o milho dos pais dele, sabe? É tudo herança dos meus avós."

Há carinho na voz de quem fala sobre essa herança deixada pelos antepassados. Preservar esse patrimônio, além de garantir o alimento no prato, é também uma forma de manter viva a história de famílias do campo.

O respeito e gratidão por esses materiais é tão grande que, na Paraíba, não se fala em "sementes crioulas" ou "sementes tradicionais". Agricultores paraibanos chamam pelo apelido carinhoso de "sementes da paixão", nome dado por um colega que, em um encontro realizado em 1998, afirmou que tinha paixão por aquelas sementes que estavam em sua família há anos, e que não abriria mão delas por nenhuma outra variedade distribuída por programas públicos de sementes.

Pensando em contribuir com a prática de guardar sementes, já comum entre agricultores e agricultoras, a ASA (Articulação Semiárido Brasileiro) iniciou o projeto Sementes do Semiárido em 2015, um projeto de maior envergadura "dirigido a fortalecer a conservação, a manutenção e armazenamento de recursos genéticos das comunidades. Ao longo do projeto, 970 casas e bancos de sementes foram estruturados em todo o semiárido brasileiro", como conta Luciano Marçal, engenheiro agrônomo e representante da ASA.

Por que guardar sementes?

Além de manter um vínculo familiar com as sementes, agricultores e agricultoras do semiárido precisam delas para enfrentar um problema que se agrava anualmente: a perda de agrobiodiversidade causada por inúmeros fatores como as secas, o uso de agrotóxico ou a transgenia (que faz com que espécies passem por modificações genéticas em laboratório).

"A soberania e a segurança alimentar das famílias do semiárido dependem, sobretudo, dessas sementes de variedades locais adaptadas. Atualmente, nós vivemos um quadro de mudanças no clima, com muitas secas, e essas variedades que estão com as famílias detém propriedades para se adaptar a essas transformações", diz Luciano Marçal.

Além disso, segundo o engenheiro agrônomo, um dos maiores riscos para a alimentação no campo continua sendo a contaminação do alimento por transgenia, já que as sementes geneticamente modificadas geralmente são patenteadas, de posse de alguma empresa. Um dado coletado pela ASA justifica a preocupação. Em um teste realizado pelo grupo, foi constatado que dentre 900 testes realizados com milho, 300 apresentaram contaminação.

O que ocorre é que o cultivo de milho transgênico vem se disseminando, e o pólen dele contamina as variedades crioulas. Esse cruzamento compromete o material tradicional das famílias. Ou seja, o alimento que contava parte da história de uma família agricultora, passa a ter na sua composição genética o código que geralmente é de uma empresa

Luciano Marçal, engenheiro agrônomo

O maior banco de sementes do Brasil

Pensando em armazenar esse tipo de material tradicional brasileiro, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) começou a viajar à procura de sementes crioulas na década de 1970. Muitos territórios indígenas, quilombolas, assentamentos, entre outros, foram visitados por técnicos à procura de sementes tradicionais.

"Áreas de agricultores tradicionais são de grande interesse para a conservação, seja pelo risco que correm de desaparecer, seja pelas características que foram selecionadas pelos agricultores ao longo de anos," diz Juliano Gomes Pádua, supervisor do Banco Genético da Embrapa. Muita gente não sabe, mas a maioria das sementes que se transformam nos alimentos que comemos hoje em dia são exóticas, ou seja, são originais de outros países.

A pesquisadora da Embrapa Terezinha Dias, em um artigo, cita exemplos internacionais que alertaram para a importância de conservação, como a crise na Irlanda no século 19 que literalmente matou de fome cerca de um milhão de pessoas, e o episódio conhecido como Fome de 1943, em que quase três milhões de pessoas morreram sem ter o que comer na Índia.

Para evitar que o mesmo ocorresse em outros países, a ONU (Organização das Nações Unidas) incentivou que cada país criasse uma forma de armazenar comida. Foi assim que surgiu, em 1973, a unidade de pesquisa da Embrapa dedicada a recursos genéticos, a Cernagen, em Brasília (DF).

Atualmente, a Embrapa guarda em sua câmara fria chamada Colbase (sigla para coleção de base) cerca de 142 mil amostras de 1.082 espécies distintas de sementes crioulas, sendo assim o quinto maior banco de sementes do mundo. Por isso, esse banco de germoplasma, nome oficial da câmara, também é conhecido como "geladeira do futuro" ou "arca de Noé". Para preservar o material, todas as sementes ficam guardadas na Colbase em um ambiente com temperatura de -20°C. Isso faz com que hoje haja sementes com mais de 40 anos que ainda apresentam 100% de germinação.

10 maiores coleções de sementes do banco da Embrapa

  • 1

    Arroz (Oryza)

    23.730 sementes

  • 2

    Cevada (Hordeum)

    13.341 sementes

  • 3

    Soja (Glycine)

    13.165 sementes

  • 4

    Feijão (Phaseolus)

    12.850 sementes

  • 5

    Trigo (Triticum)

    5.604 sementes

  • 6

    Feijão-caupi (Vigna):

    Também conhecido como feijão-de-corda: 5.545 sementes

  • 7

    Sorgo (Sorghum)

    4.639 sementes

  • 8

    Algodão (Gossypium)

    4.036 sementes

  • 9

    Milho (Zea)

    3.923 sementes

  • 10

    Amaranto (Amaranthus)

    2.483 sementes

As condições de conservação permitem o armazenamento por centenas de anos. Apesar disso, as sementes passam pelo processo de envelhecimento natural, que é reduzido nestas condições de baixas umidade e temperatura. Para controle de qualidade, a cada 10 anos uma subamostra das sementes é submetida a um novo teste de germinação

Juliano Gomes Pádua, supervisor do Banco Genético da Embrapa

Resposta à crise climática

As sementes conservadas só saem de lá caso seja preciso recuperar alguma variedade dos Bancos Ativos de Germoplasmas ou quando são solicitadas por instituições de ensino e de pesquisa brasileiras ou internacionais. A única vez que esse material foi retirado para retornar a algum território tradicional foi em 1995, quando indígenas krahô procuraram a Embrapa para recuperar sementes de um milho sagrado que tinha sumido de seu território.

Mas, como afirma Luciano Marçal, a ideia é que isso mude com o tempo. Desde 2019, a Embrapa e a ASA Brasil têm trabalhado juntas no projeto Agrobiodiversidade do Semiárido, que prevê o desenvolvimento de protocolos de abertura e reintrodução de sementes crioulas em territórios do semiárido.

"Junto às famílias da região queremos levantar quais variedades de alimentos foram perdidas pela seca ou por contaminação em anos anteriores. Queremos saber quais sementes elas acham necessárias hoje", conta Luciano.

O projeto é visto como uma continuação do Sementes do Semiárido e acontece em sete territórios de Bahia, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Sergipe. Ele nasce como o objetivo de testar cada vez mais variedades de sementes crioulas e comparar a qualidade delas com as de caroços distribuídos por programas públicos de sementes e comercializados por empresas.

A própria Embrapa começou a promover testes em 2009, quando agricultores contaram a história das sementes da paixão em uma reunião na Paraíba e apresentaram demandas, como a necessidade de rever quais sementes estavam sendo distribuídas naquela região por programas públicos.

"É importante lembrar que estamos falando de uma região semiárida, ou seja, que possui alta insolação, alta luminosidade, pouca chuva e solo salino. As variedades que se adaptam e se desenvolvem na mão desses agricultores já têm um diferencial muito grande nesse cenário de crise climática que vivemos. Elas já se adaptam a situações extremas de clima. Realmente são um patrimônio importantíssimo", finaliza Paola Cortez, coordenadora do projeto Agrobiodiversidade do Semiárido.

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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