Quando a favela come bem

Iniciativas nas periferias democratizam o acesso a uma alimentação orgânica e saudável aos mais pobres

Guilherme Petro Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

Engana-se quem pensa que orgânicos são coisa de rico, frescura de quem não tem a fome como vizinha. "A gente acredita que é preciso pensar soluções de dentro pra fora e não apenas esperar soluções de fora pra dentro do nosso território",

A fala de Joyce Izauri apresenta a Quebrada Orgânica para o mundo. O projeto nasceu na região do Piraporinha, zona sul de São Paulo, e atua com práticas ambientais e de agricultura urbana. Não é um caso isolado nas quebradas do Brasil.

A Quebrada Orgânica começou a partir do olhar de Joyce e de seu sócio Robert José sobre a maneira como as periferias poderiam se relacionar tanto com a questão da compostagem de resíduos quanto com as pequenas produções em hortas urbanas. A partir dessa experiência, a dupla criou o Enjoy Alimentação Orgânica, uma plataforma que entrega alimentos orgânicos nas periferias da zona sul a partir de produtores locais de Parelheiros.

Em abril, o projeto realizou a segunda edição do Festival Quebrada Orgânica. O evento online, que misturou arte, cultura e alimentação orgânica, teve uma programação de três dias recheadas de apresentações musicais de artistas locais, visitas a agricultores da região e vídeos de receitas que utilizam os orgânicos -- como o "jacalhau" a Gomes de Sá, uma releitura à base de plantas do tradicional prato português.

Nunca senti que estava inovando vendendo comida orgânica porque eu cresci comendo isso com a minha mãe

Thiago Vinicius, Organicamente Rango.

Orgânicos, a comida que sua vó comia

A Quebrada Orgânica não é exatamente pioneira. Não era incomum nas favelas e periferias do Brasil, especialmente até os anos 1980, ver criações de galinhas e plantações de hortas nos quintais de casas de alvenaria, construídas sobre o chão de terra batida. As favelas surgem como oásis rurais em meio à selva de pedra, mas vão se precarizando com a acelerada urbanização.

O que era ancestral passa a ser visto como "coisa de pobre" e trocam-se a galinha morta no terreiro pelo pacote de bolachas recheadas e a alface adubada com esterco, sem agrotóxicos, pelas salsichas ultraprocessadas.

É por isso que Thiago Vinicius, criador do Organicamente Rango, diz que sente que não estava inovando ao vender comida orgânica nas periferias. "Isso é super importante porque a gente democratiza a opção das pessoas consumirem alimentos sem agrotóxicos", conta Thiago, que acredita que comida de verdade é aquela que é possível no momento.

Em São Paulo, na região do Campo Limpo, o Organicamente Rango é comandado pela chef Cleunice Maria de Paula, conhecida como Tia Nice, e pelo seu filho, o empreendedor social Thiago Vinicius. O primeiro armazém de comida orgânica das periferias de São Paulo vende produtos de agricultores da região desde 2017, ligando produtores e consumidores por meio de preços acessíveis e girando a economia local.

O Organicamente Rango é também um braço da Agência Popular Solano Trindade, uma rede de fomento à produção e ao empreendedorismo cultural periférico. "Comida de verdade é aquela que você prepara com o que você tem em casa e consegue comer, que você celebra e agradece por ter. É aquela a que você tem acesso. Então a gente luta para que as pessoas da quebrada possam ter acesso a frutas, legumes e verduras e, a partir daí, elas possam tirar suas próprias conclusões sobre o que é comida de verdade", completa Thiago.

Além do armazém, o projeto também tem o restaurante, aberto no final de 2019, onde a Tia Nice prepara pratos como a feijoada, nas versões tradicional e vegetariana, o bobó de shimeji e o picadinho de carne, todos orgânicos. Há ainda diversas opções que utilizam PANCs, as plantas alimentícias não colonizadas, como diz Thiago, já que elas sempre foram convencionais para quem cresceu nas quebradas.

Mariana e Thiago são os únicos brasileiros presentes na lista 50 Next, publicada em abril e organizada pela World's 50 Best, uma das mais importantes premiações internacionais da gastronomia, que lista os 50 jovens que estão moldando o futuro da gastronomia.

Eu vi o futuro ele é passado

Comida é cultura e tem raízes profundas nos territórios. Historicamente, cada favela e quebrada do Brasil abrigou pratos e segredos típicos que ganharam os asfaltos e restaurantes chiques. Basta lembrar que o berço do samba foi a casa da baiana Tia Ciata, no Rio de Janeiro, uma empreendedora e cozinheira de mão cheia que encantou os escritores Manuel Bandeira e Mário de Andrade, além de ter caído nas graças do presidente Venceslau Brás.

Tia Ciata, que também era mãe de santo, se sentiria em casa ao dar um rolê pela Maré de hoje. Lá, alguns projetos têm resgatado o casamento de empreendedorismo e tradição nas periferias. É o caso do projeto Maré de Sabores, criado em 2010, como parte da Redes da Maré, instituição social no Rio de Janeiro.

A ideia, que começou com a atual coordenadora Mariana Aleixo, era oferecer formações de qualificação profissional em gastronomia e resgatar a cultura alimentar da Maré, construindo novos caminhos para uma alimentação mais sustentável e orgânica.

Da formação, que também inclui mentoria para empreendedorismo, nasceu o buffet, que produz eventos de diferentes portes e também faz entregas para a região. Hoje, a Maré de Sabores oferece pratos preparados pelas mulheres que passam pela formação, com destaque para a galinha caipira com purê de milho branco e arroz de açafrão e o arroz de costela com pesto de agrião e aipim grelhado na manteiga de garrafa.

Crescimento orgânico

É no Nordeste, mais especificamente em Recife que está um dos principais projetos do país para democratizar o acesso à alimentação saudável. O Saladorama, empreendimento social pioneiro no ramo que nasceu em 2015 e atua, além da capital pernambucana, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Comandado por Hamilton Silva e Isabela Ribeiro, o empreendimento social oferece um serviço de comercialização de alimentos saudáveis a preços acessíveis para bairros das periferias dessas cidades.

"Muita gente quando pensa em alimentação saudável associa com algo sofisticado, fora do seu ecossistema", diz Hamilton, que busca com o Saladorama diminuir o distanciamento entre as pessoas e a comida de qualidade. Outro obstáculo está no acesso ao conhecimento: "Normalmente as pessoas só conhecem uma única forma de preparo de um ingrediente, o que acaba afastando. É diferente da grande indústria, que mostra diversas variações de um mesmo produto e atinge mais pessoas."

Por isso, esse estímulo também vem por meio da formação gratuita de pessoas desses locais para a nutrição e o empreendedorismo, para que elas possam multiplicar sua renda e criar seus próprios modelos de negócios de alimentação saudável. A ideia é fomentar o desenvolvimento econômico pautado na sustentabilidade ambiental e financeira de cada região e promover o acesso à alimentação de qualidade nas periferias do Brasil.

Para ele, também existe uma barreira de classe. "As pessoas foram criando clubes do 'meu agricultor preferido', o que vai criando um distanciamento. Assim, se criam ambientes que outras pessoas não têm acesso. E sim, quem tem mais dinheiro acaba valorizando esses espaços. Quando a gente entender que para alimentação não podemos ter grupos fechados, aí sim vamos avançar bastante na democratização da alimentação saudável", completa.

Alimentação saudável não é privilégio, tem que ser direito, e só assim que a gente consegue transformar o país

Hamilton Silva, Saladorama

A gente não quer só comida...

Se tem gente trabalhando com orgânicos nas periferias como o pessoal do Quebrada Orgânica e Organicamente Rango é porque tem gente interessada em comê-los.

"Essa revolução alimentar com feiras orgânicas e contato com pequenos produtores eu vejo só nas regiões mais centrais de Guarulhos. Aqui, faço compras em mercados e sacolões, e se tem orgânico, além de ser mais caro, sinto dificuldade de saber da real procedência dos produtos", diz a Ecoa Isabelle Santos, moradora do Parque Continental II, na periferia de Guarulhos

A preocupação de Isabelle tem um bom motivo. Ela está passando por um profundo processo de reeducação alimentar. Quando a analista júnior descobriu em fevereiro de 2020 que tinha resistência à insulina, uma condição que pode desencadear no desenvolvimento de diabetes, Isabelle percebeu que seus hábitos alimentares precisavam mudar.

"Já vinha me alimentando mal há alguns anos. Trabalhando e estudando em São Paulo, passava duas horas e meia me deslocando no transporte público e, com vale-refeição a R$14 por dia, muitas vezes comia uma coxinha ou um fast food. Era complicado manter uma alimentação mais balanceada, sempre ficava presa nesse 'looping' de correria, distância e pouca grana", conta.

Em um contexto de pandemia, a situação ficou ainda mais difícil: a jovem de 24 anos, que mora sozinha, teve que repensar toda a sua alimentação e se dedicar a fazer as próprias refeições, utilizando ingredientes frescos e que nunca tinham sido comuns na sua alimentação até então.

"Foi um processo louco, tive picos de compulsão alimentar e ganho de peso, que influenciaram no problema." A situação de Isabelle reflete um fenômeno nacional: as pessoas têm comido mais ultraprocessados. Dados do relatório "Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil", realizado entre novembro e dezembro de 2020 e publicado em abril de 2021, mostram que o consumo de doces cresceu 9% durante a pandemia. A publicação também mostra que 59,4% dos domicílios pesquisados estão com algum tipo de insegurança alimentar e, destes, houve uma redução de mais de 85% do consumo de alimentos saudáveis. Esta redução foi significativamente menor entre os domicílios em situação de segurança alimentar, variando de 7% a 15%. O consumo de carnes caiu 44% durante a pandemia e o de frutas 40,8%; queijos tiveram redução de 40,4% e hortaliças e legumes, 36,8%.

... a gente quer comida, diversão e arte

Thiago Vinicius e o Organicamente Rango não param. Além da proposta de resgatar sabores que alimentam um sistema alimentar mais saudável e sustentável dentro da quebrada, o Organicamente Rango também tem distribuído cestas básicas. A distribuição é feita principalmente do apoio de vaquinhas virtuais e já distribuiu mais de 20.000 cestas básicas com frutas, verduras e legumes orgânicos, além de um kit de limpeza e higiene pessoal.

Durante a pandemia, também foi criado o Livros na Cesta, que distribui livros de autores negros junto com os alimentos. O projeto é fruto de uma parceria da Agência Popular Solano Trindade com editoras e apoio da Allma Hub, que fez essa ponte e possibilitou que títulos como o "Sobrevivendo No Inferno", dos Racionais MC's, e livros de autores como Djamila Ribeiro, Emicida, Akins Kinte e Elizandra Souza, fossem distribuídos gratuitamente.

"A gente fez isso porque acreditamos que a leitura é básica, fundamental. E a periferia sempre foi uma população extremamente leitora. Num país onde os governantes querem aumentar o imposto do livro para que as pessoas não consigam acessar o livro, a gente coloca o livro na cesta básica", conta Thiago, citando também Solano Trindade (1908-1974), o poeta pernambucano e integrante do Movimento Negro, que dá nome ao seu hub cultural e diz em um de seus poemas: "Se tem gente com fome, dá de comer".

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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