Comida, um refúgio

Para quem escapou do país natal em busca de uma vida melhor, alimentação oferece afeto, laços e lembranças

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Los Angeles (EUA)

Quando convidaram Jair Abril Rojas para participar de um livro de receitas no final de 2020, o chef colombiano passava por um momento difícil com seu pai internado no hospital, a 7 mil km de distância. Rapidamente, escolheu o prato para a publicação, mas não porque estava com pressa. "Sobrebarriga a la criolla", uma fraldinha cozida com batata, mandioca e milho verde.

"Quando veio o convite, logo me veio a lembrança dessa receita. Meu pai a fazia nos finais de semana, quando a família toda se reunia. Quis homenageá-lo", lembrou Rojas, que há nove anos mora em São Paulo, enquanto seu pai vive em Paipa, cidade a três horas de Bogotá, no interior na Colômbia.

Rojas chegou ao Brasil fugindo da violência na Colômbia. Como muitos refugiados que buscam ajuda no país, fez da culinária um bote salva-vidas. Em São Paulo, conseguiu empregos em restaurantes e, mais tarde, abriu seu próprio estabelecimento com pratos colombianos.

Foi uma jornada parecida com a do venezulelano Juan Andrés Rodríguez González, dono de restaurante em Manaus (AM), e da família da síria Joanna Ibrahim, cuja avó e tia passaram um ano vendendo esfihas, kibes e falafel nas igrejas de Juiz de Fora (MG) para poder pagar as contas.

Mas, além de ajudar na sobrevivência financeira, a culinária é principalmente uma âncora emocional repleta de memórias afetivas. "A sobrebarriga me leva automaticamente à casa de meus pais. Lembro dos aromas, de poder ajudar meu pai com a limpeza dos tubérculos, de mexer na panela; me traz muita felicidade", lembra Rojas.

A comida é um laço que o imigrante nunca quer cortar. É o que nos deixa mais perto dos sabores da pátria, da casa materna. Idioma, música, religião nos aproximam, mas o principal mesmo é a comida. Como imigrante, estamos sempre à procura de um cantinho para nos sentirmos em casa.

Jair Abril Rojas, colombiano há nove anos no Brasil

Volta ao mundo (sem sair da cozinha)

A "sobrebarriga a la criolla" de Rojas entrou no livro gratuito "Prato do Mundo", organizado pela Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Lançado no final do ano passado, já foi baixado mais de 25 mil vezes.

O e-book traz pratos de sete chefs colombianos, venezuelanos e sírios que moram no Brasil com status de refugiados. Da Venezuela, tem um bolo de chocolate com frutas e uma bebida com rum. Da Síria, tem abobrinha recheada e charutinho de folha de uva. E, antes de cada receita, o leitor conhece a história do trajeto de cada participante.

"O principal ingrediente do livro é a empatia", disse Natasha Alexander, chefe da unidade de parcerias com o setor privado da Acnur no Brasil. "O livro é uma maneira de disseminar a cultura e as histórias das pessoas refugiadas. Isso é muito importante porque a xenofobia é muito forte no Brasil."

Ao mesmo tempo em que o braço brasileiro da Acnur preparava o livro de receitas, o mesmo acontecia no braço da agência no Canadá, que lançou "Tastes from Home", também um e-book gratuito com pessoas refugiadas que se estabeleceram em cidades canadenses. Há receitas de churrasco vietnamita, frango de Hong Kong, guacamole salvadorenha e pasta da Somália.

"Foi uma coincidência o livro do Canadá. Para você ver como a gastronomia é uma ferramenta poderosa", disse Alexander, que fez as abobrinhas recheadas do livro para uma reunião de família. "Minha família é de refugiados judeus da Segunda Guerra Mundial. Ficaram muito tocados de ver como a história do refúgio se repete e como agora temos a oportunidade de acolher melhor."

Projetos pelo mundo

Além do livro "Tastes from Home", da Acnur no Canadá, outros projetos pelo mundo reúnem refugiados por meio da culinária. Conheça alguns:

  • Eat Offbeat

    Em NY, um grupo de chefs refugiados e imigrantes prepara boxes com receitas de vários países. Tem carne preparada ao estilo mexicano ou iraniano, arroz iraquiano ou senegalês, bolinhos de espinafre e queijo do Nepal ou curry do Sri Lanka. Eles também criaram um livro, "The Kitchen Without Borders", com receitas tradicionais de 14 países.

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  • Flavors from Afar

    Também em Los Angeles, o restaurante troca de chef a cada mês, dando oportunidade para refugiados trabalharem e mostrarem a culinária de seus países. Em março, foi a vez de Malia Hamza, com pratos da Somália, e em abril, de Mohammed Alsayes, do Egito. O local é uma extensão da ONG Tiyya Foundation, criada em 2010 para educação de refugiados.

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  • New Arrivals Supper Club

    Em Los Angeles, surgiu a ideia de um jantar comunitário para levantar fundos para a ONG Miry's List, dedicada aos refugiados na região. Desde 2017, foram 110 jantares, muitos preparados pelos próprios recém-chegados ao país, em eventos que arrecadaram US$ 263 mil. "É uma ótima maneira de trazer dignidade e compartilhar sem precisar ter muito em comum", disse Christy Anderson, diretora do projeto.

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  • Refugee Food Festival

    O festival começou em Paris em 2016 e já aconteceu em diversas cidades da Europa, sempre ao redor de 20/6, Dia Internacional do Refugiado. Em 2018, o La Résidence abriu como parte do projeto para ajudar chefs refugiados a testar seus pratos e trabalhar no setor. Na pandemia, o espaço foi usado para produzir 42 mil refeições para a população mais vulnerável da cidade.

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Comida como cultura

A culinária é também porta de entrada para o recém-chegado conhecer a cultura do novo país. Rojas, 41, começou se aventurando no misto-quente das lanchonetes paulistanas e ficou abismado com a diferença da empanada brasileira. Depois vieram a pizza portuguesa com ovo, da qual gostou, e a empada, da qual não gostou.

"Minha grande entrada na cultura brasileira foi trabalhar num restaurante baiano", disse o colombiano, hoje casado com uma advogada brasileira. "Conheci muitos tipos de pimentas e aprendi muitas gírias do nordeste que uso até hoje."

Rojas é dono do Macondo Raízes Colombianas, nome escolhido em homenagem à aldeia do livro "Cem Anos de Solidão", do conterrâneo Gabriel García Márquez. O restaurante no bairro de Pinheiros conseguiu passar 2020 com oito funcionários fixos, porém, em março, teve que demitir metade da equipe. Ele tem dois food trucks, encostados há um ano.

Em Manaus, a pandemia também atrapalhou os planos do venezuelano Juan Andrés Rodríguez González, 22, que chegou ao país em 2018 com sua mãe e sua avó. Seu primeiro emprego foi num restaurante argentino, onde conseguiu afiar o português com a clientela, e depois numa loja de roupas de criança, onde aprendeu sobre negócios e burocracia. Em 2020, conseguiu abrir o Jeito Marabino, comida venezuelana com alguns pratos adaptados ao gosto brasileiro.

"Os venezuelanos queriam um prato nostalgia, e os brasileiros queriam um sabor novo, embora seja difícil para o brasileiro experimentar coisas novas", disse González. Ele fechou o espaço em fevereiro devido à pandemia, embora espere não ser definitivo.

Atrás da arepa perfeita

González sempre soube desde pequeno que não ficaria para sempre na Venezuela. Tinha ambições de morar fora e desvendar o mundo. Embora sua saída do país não tenha sido nada como imaginava, após pegar dois aviões e passar dois dias num ônibus, ele criou novas raízes e se adaptou às novidades.

Com uma exceção: só come arepa, seu prato favorito, se for com a farinha venezuelana Pan.

"É a parte de mim que, não importa o que aconteça, onde esteja, não dá para mudar. Se estiver na China e tiver arepa com formiga, vou comer, mas tem que ser com farinha Pan", diz, rindo, sobre a marca de farinha de milho branco processada, difícil de achar em Manaus.

Na Venezuela, González conta que costumava pagar o equivalente a R$ 4 pelo quilo e chegou a desembolar R$ 28 no Brasil, comprando de conterrâneos que traziam na bagagem, três anos atrás. "Agora tem mais venezuelanos por aqui, pagamos entre R$ 10 e R$ 15", contou.

Em seu país, ele teve que largar os estudos de engenharia por não conseguir mais pagar a faculdade, enquanto sua mãe, Suhail, teve que fechar o restaurante que, antes da crise, sustentava quatro famílias em Maracaibo, noroeste da Venezuela.

No Brasil, mãe e filho descobriram a feijoada e incorporaram a calabresa à sua cozinha. Outra novidade foi a tapioca. "Ela trocou a arepa por tapioca e até prefere. Gosta mais do que eu."

Seu prato favorito é uma arepa doce preparada pela mãe: uma massa frita com manteiga, açúcar e queijo coalho, com recheio doce ou salgado. "Ela faz quando estou chateado ou quando a gente discute. É complicado de fritar, tem que ficar de olho", disse. "A última vez foi agora em março, no aniversário da morte de meu pai."

Cozinhando por necessidade

Foi de olho nessa comunidade de pessoas refugiados e imigrantes que tentam decolar na nova vida com seus dotes culinários que a síria Joanna Ibrahim, 33, desenvolveu a plataforma OpenTaste, com treinamento e eventos de comidas típicas.

"Muita gente chega com diploma que não é reconhecido ou ainda não tem um português suficiente para trabalhar numa empresa brasileira. Uma solução temporária para sustentar a família pode ser a comida", disse Ibrahim, que deixou a Síria em 2014, fugindo da guerra que assola o país desde 2011.

"Minha avó e minha tia não tinham nenhuma experiência e venderam comida por um ano por necessidade mesmo", lembra.

A ideia inicial do OpenTaste era abrir um restaurante em São Paulo com rodízio de chefs de países diferentes, mas a pandemia reduziu o plano para um sistema de delivery. Está disponível no iFood e no site próprio.

Entre os pratos, há receitas de chefs da Venezuela e Colômbia, como arepas, patacones e bolo "tres leches", e também da Armênia e Líbano, como esfihas, shawarma e burguer vegetariano de falafel. A plataforma também promove aulas online, como uma para aprender a fazer um prato do Congo com couve e pasta de amendoim chamado mwamba.

Ibrahim, que não é chef, oferece um bate-papo sobre cultura síria, como uma viagem virtual à capital Damasco.

Ela se diverte com a comida síria abrasileirada e, às vezes, entra em choque, como quando experimentou Habib's. Sua esperança é achar uma kafta que a faça voltar à Síria do pré-guerra. "Até agora não comi a kafta que eu comia lá, mas chegou bem perto."

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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