"Votamos com o garfo"

Best-seller a favor da "comida que sua avó reconheceria", Michael Pollan acredita no poder de nossas escolhas

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Jahi Chikwendiu/The Washington Post via Getty Images

Pensar sobre a alimentação e a relação entre como comemos e como cultivamos os alimentos fez de Michael Pollan uma das principais vozes no mundo a falar sobre alimentação saudável e sustentável — sem espaço para o "nutricionismo" e as dietas da moda.

Tudo começou no jardim. Esse raro espaço de interação do "homo urbanus" com a natureza foi o assunto dos primeiros livros do norte-americano e provocou seu interesse pela agricultura. Foi assim que passou a pensar sobre a comida, sobre aquilo que as pessoas comem e o que deveriam comer, tema que o tem acompanhado durante décadas de trabalho. Suas pesquisas deram origem a quatro livros aclamados, um deles transformado na série documental "Cooked", de 2016, produzida pela Netflix e apresentada por ele próprio.

De sua casa na Califórnia, Pollan falou a Ecoa sobre suas descobertas no campo da alimentação e a aplicação delas em sua vida prática, sobre as ligações entre políticas agrícolas, mudanças climáticas e nossas dietas e sobre como informação é poder para decidirmos o que pôr no prato.

Ecoa - Durante a quarentena, muitas pessoas descobriram ou redescobriram o prazer de cozinhar. Você acredita que o resgate desse hábito ficará conosco?

Michael Pollan - Essa é uma das tendências mais encorajadoras que vimos durante a covid. Algumas pessoas vão deixá-la de lado assim que puderem, estão cansadas de cozinhar e morrendo de vontade de ir a restaurantes de novo. Mas outras, ao perceberem que conseguem cozinhar, o farão pelo menos com mais frequência.

Vai fazer a balança pender para uma direção positiva, mesmo que não a equilibre totalmente. É um desenvolvimento muito encorajador, especialmente à luz de que doenças crônicas ligadas a uma dieta inadequada predispõem as pessoas à covid.

Qual o principal conselho sobre alimentação você tirou das suas pesquisas? Segue fazendo sentido hoje?

Depois de estudar o que as pessoas deveriam comer por muitos anos, resumo minha conclusão em sete palavras: coma comida, não em excesso, principalmente vegetais. Eu não mudaria nada aí.

O mantra de Michael Pollan

  • Coma comida

    "Quando digo comida, quero dizer comida de verdade, alimentos inteiros, não ultraprocessados. Comida que sua bisavó reconheceria, que não tem cem ingredientes, que não foi inventada nos últimos 5 ou 50 anos [risos]. Acho que isso ainda é muito importante."

  • Não em excesso

    "Todos nós lutamos contra comer demais, em parte porque a indústria de alimentos cria seus produtos para isso. A indústria ganha mais dinheiro quanto mais comida ela vende, por isso desenvolve seus produtos para serem irresistíveis. Temos que aprender a resistir a isso e comer uma quantidade razoável, até estarmos satisfeitos, e não cheios."

  • Principalmente vegetais

    "Foi a parte mais controversa do meu pequeno mantra, porque desapontou a todos. Os vegetarianos e veganos diziam 'por que principalmente, por que não só vegetais?' Não há nada de errado com um pouco de carne. Mas comemos carne demais no meu país, e acho que no seu também, certo? Não ter limites para a carne é um desastre tanto para a saúde quanto para o meio ambiente. Temos que tratá-la mais como um sabor do que como a peça central de nossas refeições."

Keith Beaty/Toronto Star via Getty Images

Como é sua alimentação hoje em dia?

Eu sigo meu próprio conselho, acredite se quiser. [risos] Estou comendo menos carne do que jamais comi, como apenas peixe e só uma vez por semana. Tenho comido principalmente vegetais e acho isso muito satisfatório, mas é fato que exige mais trabalho.

É muito fácil comer carne se você pode pagar, é só pegar um pedaço de bife ou frango e colocá-lo na grelha, e fica delicioso sem precisar de muito trabalho. Já numa refeição vegetariana, é preciso picar muitas verduras e isso consome tempo. Então eu entendo o apelo, mas tenho tentado reduzir minha pegada de carbono comendo o mínimo de carne possível.

Nas nossas sociedades capitalistas, tratamos frequentemente a comida como uma extravagância. O que é a comida?

Muitas coisas. No nível mais básico, é o que precisamos para permanecer vivos. Mas, para os humanos, que fazem refeições -- uma instituição muito interessante que criamos, as refeições com outras pessoas --, trata-se também de comunhão. Essa é uma parte muito importante. Na mesa acontecem coisas que não acontecem em nenhum outro espaço de nossas vidas, em termos de conexão com as pessoas e de aprendizado. Nossos filhos aprendem muitas coisas na mesa de jantar, coisas que não aprenderiam se todos comessem seus alimentos processados na frente da televisão ou do computador.

Também é uma comunhão com a natureza. A maioria de nós está tão longe dos fazendeiros que acho que esquecemos que comer nos conecta ao mundo natural. Comemos outras espécies, elas nos sustentam e dependemos delas. Deveríamos ser lembrados disso toda vez que sentamos para comer. É por isso que as pessoas costumavam dar graças no início das refeições. É um ato muito profundo, quase espiritual, quando encarado com reflexão e atenção plena.

E é ainda cultura. Comemos certos tipos de comida aqui, vocês comem certos tipos de coisas no Brasil. Tem coisas com que nos identificamos e que, quando as comemos, nos fazem sentir mais americanos ou mais brasileiros. E, claro, a comida é um negócio, é o maior negócio do mundo. Portanto, comida é muita coisa, e por isso foi fascinante para mim escrever sobre isso por tantos anos. É um assunto verdadeiramente interdisciplinar, é preciso usar várias lentes diferentes para realmente enxergá-lo.

Jens Kalaene/picture alliance via Getty Images Jens Kalaene/picture alliance via Getty Images

Por que temos menos acesso (em termos econômicos e também logísticos) à alimentação saudável do que gerações passadas?

Em parte porque os alimentos ultraprocessados, produtos prontos para o consumo, tornaram-se muito baratos e foram fabricados para serem muito atraentes. É curioso que um bolinho ou um saco de batata chips, considerando a quantidade de processamento que ocorre, possa ser mais barato do que comprar batatas ou alimentos in natura de vários tipos.

Eles não estragam, não são perecíveis, vivem para sempre. É possível mantê-los em uma prateleira por anos, o que os torna mais baratos. Há muito desperdício na venda de produtos frescos.

Mas há também o fato de que as matérias-primas de alimentos altamente processados, milho e soja, são muito baratas neste país. Se você subsidia os ingredientes de alimentos processados e não subsidia a produção de brócolis, berinjela e tomate, o que vai ser mais barato? Comida processada.

Essa é uma das razões pelas quais essas políticas agrícolas devem ser remodeladas não estritamente como assistência aos agricultores, mas como políticas de saúde pública.

Também deveríamos subsidiar uma dieta "climate friendly", em vez de uma dieta destrutiva para o clima, porque muito do milho e da soja que estamos pagando aos fazendeiros para cultivar está alimentando gado, porcos e galinhas confinados que produzem enormes quantidades de gases de efeito estufa.

Precisamos repensar nossas políticas agrícolas para que apoiem tanto nossos objetivos de saúde pública quanto nossos objetivos ambientais. No momento, elas estão trabalhando contra esses objetivos.

Francis Collin/Divulgação

Como fazer com que as pessoas se importem mais com o impacto ambiental do que comemos?

Hoje o que comemos está na ponta de uma cadeia nada transparente. Muita gente pensa que a carne vem do supermercado e perdeu completamente a noção do fato de que ela vem de um animal que viveu de uma maneira ou de outra.

Podemos votar com nossos garfos, mas esse voto não será muito eficaz se não for acompanhado de conhecimento. É por isso que trabalhei em filmes como "Food, Inc." e outros documentários sobre alimentação e escrevi sobre a indústria de gado e de suínos. Acho que o jornalismo — e há muito mais desse jornalismo agora do que há 20 anos — está mudando o comportamento das pessoas. Está fazendo-as perceber que apoiar uma pequena fazenda, ou ir à feira e dar seu dinheiro diretamente a um produtor são ações realmente importantes.

Temos mais poder sobre nossas escolhas alimentares do que em muitas outras áreas de nossas vidas, mas as pessoas precisam do conhecimento para exercer esse poder da maneira mais eficaz possível.

Michael Pollan

Bruno Poletti/Folhapress Bruno Poletti/Folhapress

Como você vê o futuro da alimentação e da indústria alimentícia? Estamos caminhando na direção que deveríamos?

Acho que há mais conhecimento do que nunca sobre a comida e sua importância. Estou realmente impressionado com o fato de que a compreensão do papel da agricultura nas mudanças climáticas agora está aí, as pessoas entendem.

Por outro lado, os incentivos ainda estão completamente errados. Seguem encorajando agricultores a cultivar milho e soja, que as pessoas não comem, e acabam indo para a produção de carne, etanol ou alimentos processados. Temos que mudar os incentivos na agricultura e estamos muito longe de fazer isso.

O sistema está funcionando muito bem para algumas pessoas, só não para quem come.

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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