Para a fome não voltar

Ex-ministra Tereza Campello fala sobre caminhos para vencer a insegurança alimentar no Brasil

Adriana Terra Colaboração para Ecoa, de São Paulo Marcelo Camargo/Folhapress

Algumas das imagens mais reproduzidas no Brasil durante a pandemia mostram geladeiras vazias e entregas de cestas básicas. Da saída do país do Mapa da Fome em 2013 aos dias atuais, em que mais da metade dos brasileiros conviveu com alguma insegurança alimentar no fim de 2020, a impressão é a de que se passaram décadas, tamanho o salto. Os dados alarmantes apontam para a urgência de se retomar políticas públicas que priorizem o sustento da população.

Para Tereza Campello, pesquisadora, professora e ex-ministra de Desenvolvimento Nacional e Combate à Fome, o fenômeno que vemos não é isolado, mas alavanca um cenário progressivo de desassistência e desmonte de políticas sociais.

Exemplo de como as decisões políticas são determinantes é a indústria de alimentos. "O país continua sendo um dos maiores produtores do mundo, mesmo na pandemia. Aliás, produzir muito entrou na contramão da própria segurança alimentar da população: a gente exportou nosso arroz aproveitando os preços internacionais (o que encareceu internamente o grão). A falta de alimento saudável para a população brasileira não é resultado da falta da produção, muito menos de condições naturais", pontua Campello, economista e doutora em Saúde Pública que hoje leciona na Escola Fiocruz de Governo e é professora visitante da Universidade de São Paulo, atuando no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens). A palavra-chave, então, é acesso.

Para Campello, que integrou a equipe que criou o Bolsa Família e coordenou o Plano Brasil Sem Miséria, a solidariedade e a filantropia que vemos agora são um movimento importante e bem-vindo, mas que deveria ser complementar. "Ninguém vai conseguir dar conta de milhões de famintos com doações e trabalho voluntário. O central deve ser a política pública, que pode dar escala", diz. Sua atuação na universidade hoje é justamente produzindo conhecimento sobre essas bases.

Ecoa - Como você avalia o impacto tanto da pandemia quanto da forma como as políticas de combate à fome vêm sendo administradas nesses dados?

Tereza Campello - Como a pesquisa com esse olhar começa em 2004, o que a gente sabe é que está muito pior, mas não sabe até onde voltou. É um salto gigantesco. Lá havia 34% da população em insegurança alimentar, passando para 55%. Existe uma tendência grande de olhar a covid, mas o contexto já era de piora - em 2018 já tinha piorado muito. O Brasil tinha conseguido um fato histórico que é, em um período muito curto, reduzir a insegurança alimentar: passamos de 65% para 77% em situação de segurança (de 2004 a 2013) e depois [esse percentual] começa a cair. A insegurança alimentar é parte da nossa história, o que não é parte dela é a segurança alimentar.

A fome, o medo de não saber o que vai comer são a marca da história brasileira, e isso era tratado como natural e atribuído inclusive a fenômenos naturais: "no Brasil sempre teve fome", "sempre teve pobreza". Dependendo do momento as explicações eram variadas: "ah, é por causa da seca", quando você tem os grandes êxodos na década de 1970. Como diria [o médico e geógrafo] Josué de Castro, sempre se busca uma explicação natural ou biológica para um fenômeno político e social. E agora a covid é a responsável. Então a pergunta que acho que vai na contramão dessa naturalização da fome é: como a gente tinha revertido esse quadro em menos de dez anos?

Ações eficazes contra a fome

  • Liderança política

    "Assumir que a fome e a insegurança alimentar são um problema é importante porque você se responsabiliza e traz junto outros atores políticos -- estados e municípios. E custa, mas eu acho que custa menos do que não fazer. É o oposto do que está ocorrendo hoje, em que o presidente diz que o Brasil não tem fome, ali ele dá um sinal de que isso não é um problema."

  • Acesso

    "Apesar de o Brasil ser um grande produtor de alimento, o povo passava fome porque não tinha acesso a ele. Aí não se trata apenas de transferência de renda: é o aumento do salário mínimo, empregos formais, aposentadoria, porque isso também é algo que vem sendo desvalorizado. Há um dado na pesquisa da Penssan [Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional] que não foi muito valorizado: a insegurança alimentar é seis vezes maior quando se está desempregado. E quatro vezes maior para quem está no mercado informal."

  • Merenda escolar

    "Uma política importante que está em risco. Não é só a covid, há um movimento de mudança dentro e fora do governo que questiona a merenda no modelo que ela vem sendo construída. A nova legislação de 2009 não só tem um conjunto de orientações, como exige que a merenda seja comprada de produtores locais, que tenha uma porção de frutas e verduras. Não é fácil [aplicá-la], mas é um caminho muito saudável e nutritivo, e essa política passou a ser referência no mundo."

  • Agricultura familiar

    "Talvez [seja] a política mais em risco hoje. O agricultor não só perde o canal das compras públicas na medida em que a merenda deixa de o priorizar, mas as cadeias se desorganizam. [Com a pandemia] parte dos agricultores abandonou o campo. Esse agricultor vai para a cidade e engrossa o mercado de trabalho precário, fica sem proteção, não volta. E a tendência é que essa terra vá parar na mão do grande produtor, com concentração e expansão da monocultura, porque ele não vai produzir de forma diversificada como o agricultor familiar. Isso vai ser um efeito colateral trágico da covid. E não é culpa do vírus, mas resultado da forma predatória como se produz comida."

Marcelo Camargo/Folhapress Marcelo Camargo/Folhapress

O que a extinção do Consea e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome representaram para quem trabalha com segurança alimentar?

O Consea era importante por ser um espaço de tensão, como representação da sociedade civil exigindo avanços. Ele era uma instância de pressão importante para que essas políticas públicas se mantivessem. É uma tragédia porque, ao extinguir o Consea, você extinguiu o próprio Sisan (Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional). Desde a Constituição de 1988 o Brasil vem montando todas as suas políticas em cima de uma ideia sistêmica, porque ele não é um país pequeno, e a gente criou um mecanismo: funcionava porque a gente sentava com estados e municípios, tinha uma articulação federativa que aprendeu a fazer com outros sistemas, como da Saúde e Educação. O Brasil era exemplo inclusive para países como Inglaterra e EUA que têm insegurança alimentar.

Tem coisa que você consegue medir e tem valores intangíveis, como fazer pesquisa junto. Transversalidade é super difícil de fazer, isso foi desmontado e demora para ser feito. O próprio Guia Alimentar [para a População Brasileira] é resultado dessa parceria, não foi feito isoladamente por especialistas no Ministério da Saúde, é fruto de 13 anos de tentar trabalhar junto, um longo processo que tem a ver com ter um ministério com a missão de olhar segurança alimentar.

Não se erradica problema social, você pode erradicar a varíola... mas problema social, se você não cuidar, ele volta.

Tereza Campello

Marcelo Camargo/Folhapress

Temos visto o esforço de ONGs e movimentos sociais em arrecadar fundos para alimentação. Muitas dessas ações feitas hoje pela sociedade civil estão previstas em políticas do programa Fome Zero, como Banco de Alimentos, Cozinhas Comunitárias e aquisição de alimentos de agricultura familiar. Essas políticas estão desarticuladas?

A minha visão do Sisan era que a gente deveria ter níveis de complexidade. As grandes estruturas de abastecimento - que garantem estoques de alimentos estratégicos para uma situação de tragédia, como enchente, seca ou agora a covid - não podem ser municipais, porque o município não consegue fazer isso. Quem é responsável por essa política é o governo federal. Eu achava que, com o tempo, a gente fosse criar algo parecido com a saúde, em que o governo financia e cofinancia as estruturas municipais, mas quem é responsável pela UPA (Unidade de Pronto Atendimento) é o município, que sabe o melhor lugar para colocar um posto. E a gente vinha caminhando para melhorar a compreensão da tarefa de cada um. Tem município que não precisa de restaurante popular e tem município que precisa, o mesmo vale para cozinha comunitária. O jeito de trabalhar em Melgaço, na Ilha de Marajó (PA), é diferente de Caxias do Sul (RS).

A gente também não pode impor uma mudança, diferente do momento covid. Algumas coisas como cesta básica ou distribuição de leite, políticas que não acho bom incentivar, nesse momento talvez sejam a forma correta de atuar, mas quando a gente voltar para a normalidade, ter alimentação escolar pode ser mais eficiente do que distribuir cesta.

A filantropia e a solidariedade têm que ser um elemento a mais, importante, bem-vindo, mas o central tem que ser a política pública. Ninguém vai conseguir dar conta de milhões de famintos com doações esporádicas e trabalho voluntário, as pessoas deveriam estar trancadas em casa. E, mesmo nesses casos, o setor público deveria ajudar a coordenar: distribuindo máscara de qualidade, essas pessoas na minha avaliação deveriam receber pra isso, ter vacina prioritária.

Sergio Lima/Folhapress Sergio Lima/Folhapress

O que houve com o Plano Brasil Sem Miséria e como ele poderia ajudar no momento?

Nós conseguimos concluir uma rede que tinha esse olhar para públicos diferenciados. Os trabalhadores da agricultura familiar mais fragilizados, por exemplo, passaram a ter acesso a insumos e políticas públicas, porque não adianta só levar comida, mas garantir que nesse processo da retomada [pós-covid] ele possa ser engajado. Tem um conjunto de coisas que hoje estariam permitindo que a gente tivesse outro nível de enfrentamento de problemas. Você poderia usar esse conhecimento dessas equipes para saber a necessidade das famílias para além do auxílio. A gente podia usar o Brasil Sem Miséria na saída, porque a gente vai sair de um país pós-guerra. E como você reconstrói? O modelo tinha que ser reconstruído em outras bases. Nós vamos reconstruir pior, vamos retomar em bases menos sustentáveis, com a destruição dos circuitos de agricultura familiar, tendo dinamitado as bases entre o social e o ambiental que tinham acontecido.

Qual o foco dos estudos em que vem trabalhando hoje como pesquisadora?

Eu passei dois anos como pesquisadora na Inglaterra, na Universidade de Nottingham, e meu foco lá era insegurança alimentar, olhando o urbano e o que a gente chama de desertos alimentares. Agora estou me dedicando a construir a cátedra Josué de Castro [na USP] usando a ideia de que o enfrentamento à insegurança alimentar tem de ser com políticas multidimensionais e ouvindo vários saberes. A gente está juntando o pessoal da nutrição com o de meio ambiente para discutir como os sistemas alimentares são insustentáveis tanto do ponto de vista ambiental quanto da saúde - os ultraprocessados, por exemplo. E nós queremos trabalhar também em cima desse saber que é o da população, o saber das guardiãs das sementes no Nordeste, por exemplo. A cátedra vai nos ajudar ainda a traduzir esse conhecimento para a sociedade, nos comunicar mais.

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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