A hora das plantas

Consumidores em busca de sustentabilidade e bem-estar animal aceleram revolução na indústria alimentícia

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo

No século passado, imaginar que carne à base de plantas ou feita em laboratório — com sabor e textura muito próximos à animal — faria parte da dieta de uma parte significativa da população era pura ficção científica. Hoje, essas inovações são uma realidade cada vez mais disseminada, e seu consumo vai além do público vegetariano e vegano.

As alternativas vegetais a carnes, leite e derivados vêm ganhando espaço no mercado nos últimos anos. Segundo a empresa de pesquisa de mercado Euromonitor International, a indústria global de carne vegetal foi avaliada em R$ 22,8 bilhões em 2020, 24% maior do que em 2019. Já a de leite vegetal foi estimada em R$ 91,6 bilhões no ano passado.

Na mira do mercado, estão as pessoas conhecidas como flexitarianas, gente que tem procurado, por diferentes razões, diminuir o consumo de produtos de origem animal em sua dieta, sem necessariamente almejar se tornar vegetarianas ou veganas.

E a demanda por esses produtos vem aumentando. Uma pesquisa realizada em 2020 no Brasil pela ONG The Good Food Institute (GFI), em parceria com o Ibope, indicou que metade dos participantes havia reduzido seu consumo de carne no ano anterior. Em 2018, eram 29%.

A corrida é grande para colocar no mercado uma variedade cada vez maior de produtos vegetais análogos a alimentos de origem animal e abocanhar uma fatia deste setor que segue em crescimento ao redor do mundo.

Por que reduzir o consumo?

Desde 2017, a empresária mineira Amanda Pinto vem cortando carne, ovos, leite e derivados de sua dieta. Hoje, consome peixe "socialmente", principalmente quando bate a vontade de comer sushi. Mas abandonou completamente o consumo de carne de vaca, porco e frango e evita outros produtos de origem animal, substituindo-os pelas alternativas vegetais disponíveis no mercado.

"Não sou vegana e acho que nunca serei porque, se vou na casa de alguém e me servem um bolo com ovo, eu vou comer", disse a Ecoa. "Mas, quando comecei a entender todos os impactos de uma dieta rica em proteína animal, não só para os animais mas em relação à sustentabilidade, saúde humana e fome, percebi a importância de fazer uma redução. Não tem por que comer se existem cada vez mais alternativas que nos permitem diminuir ou até parar o consumo."

Essa "virada de chave" vai ao encontro do que vem sendo defendido por ambientalistas e demonstrado em estudos: é preciso mudar nossa dieta como parte dos esforços para salvar o planeta. Os sistemas alimentares mundiais, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), são responsáveis por mais de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa - estes, responsáveis pelo temido aquecimento global.

Essa transformação passa necessariamente por repensar alimentos de origem animal, responsáveis por uma parte considerável do impacto gerado pela indústria não apenas em emissões, mas também em aspectos como o desmatamento e uso de recursos.

A decisão da empresária mineira de reduzir o consumo de produtos de origem animal teve também um componente profissional: ela se preparava para abrir a N.ovo, empresa que desenvolveu substituto em pó do ovo para receitas, além de maioneses veganas. Antes do empreendimento lançado em 2019, Pinto trabalhava na área de inovação do Grupo Mantiqueira, fundado por seu pai e maior produtor de ovos da América do Sul.

Esse setor hoje não está mais simplesmente pensando em como desenvolver comida para pessoas que são vegetarianas, mas em resolver os grandes desafios da cadeia de produção de alimentos

Gustavo Guadagnini , diretor executivo da The Good Food Institute Brasil

Food techs no mercado nacional

As empresas que puxaram a fila na decisão de apostar na fabricação de alimentos à base de plantas no Brasil e no mundo atendem pelo nome de food techs. São startups do setor de alimentação que afirmam querer transformar o atual sistema de produção usando inovação e tecnologia.

São cerca de 100 empresas trabalhando atualmente no Brasil com produtos à base de proteínas vegetais. Um desses empreendimentos é a Vida Veg, fundada em 2015 pelo administrador (e vegano) Anderson Rodrigues.

A fábrica localizada em Lavras, no sul de Minas Gerais, produz leites vegetais, iogurtes, queijos, requeijões, cream cheese, manteiga e hambúrgueres, todos à base de plantas.

Segundo Rodrigues, os produtos estão atualmente em três mil pontos de venda em todos os estados do país, mas ainda concentrados nas grandes cidades. A marca pretende ampliar dez vezes sua produção e faturamento até 2025, além de aumentar a distribuição pelo território nacional.

Outro nome importante do setor no país é a Fazenda Futuro, que no início de 2019 colocou seu Futuro Burger em supermercados e hamburguerias. Foi o primeiro hambúrguer à base de plantas que imita a carne de vaca do país. Atualmente, a food tech está presente em cerca de 10 mil pontos de venda no Brasil e exporta para a Europa e os Estados Unidos. Além do hambúrguer, estão no mercado carne moída, almôndegas, linguiça e frango, também totalmente à base de plantas.

Para o fundador da Fazenda Futuro, Marcos Leta, o sucesso da marca se deve à tecnologia e produção próprias, que permitem entregar um bom produto, e ao timing — ter chegado ao mercado brasileiro em um momento favorável, em que discussões sobre sustentabilidade e consumo consciente estão em alta.

Carne tipo imitação

A ênfase no desenvolvimento da própria tecnologia é um ponto comum entre as food techs ouvidas por Ecoa. As marcas procuram destacar sua diferença em relação às grandes empresas de alimentos (inclusive da própria indústria bovina) que, recentemente, vêm desenvolvendo linhas de produtos feitos de proteínas alternativas e muitas vezes terceirizam essa produção.

Sublinham também uma distinção de propósito: "A nossa missão é mudar a maneira como o mundo come carne", disse Leta, da Futuro. "Quando um frigorífico entra [nesse setor], ele não quer mudar o status quo. Em nenhum momento ele se compromete em diminuir a produção de carne ao longo dos anos. Ele continua matando boi. O 'plant-based' foi criado como uma alternativa não só para a experiência da carne, mas também produtiva."

Como essas empresas miram em um público que vai além dos vegetarianos e veganos, chegar a um sabor próximo ao de produtos de origem animal é uma de suas preocupações centrais, e para isso a tecnologia é essencial. A estratégia é facilitar a transição para uma alimentação de base vegetal, mantendo aquilo que as pessoas já estão acostumadas a comer.

"As pessoas não querem mudar o hábito alimentar. Elas querem continuar tomando leite e comendo queijo no seu café da manhã, hambúrguer na sexta à noite. Estamos dando a possibilidade de elas manterem isso com os produtos à base de plantas. Lançando um produto que é mais gostoso, mais sustentável, saudável e não faz mal pra nenhum animal, não tem por que não trocar", disse Rodrigues, da Vida Veg.

O preço dos produtos, no entanto, é um fator que trabalha contra sua popularização: uma caixa de leite vegetal custa entre R$ 5 e R$ 20. Porções de cerca de 250g de carne vegetal também estão nesta faixa superior.

Barateamento depende de alguns fatores:

  • 1

    Maior escala de produção

    A produção de alimentos à base de plantas ainda é pequena perto dos produtos de origem animal

  • 2

    Nacionalização dos ingredientes

    Grande parte da proteína de ervilha utilizada pelo setor hoje é importada. Com fomento do The Good Food Institute Brasil, há pesquisas em andamento para a extração de proteínas vegetais de variedades agrícolas nacionais ou produzidas em abundância no país, voltadas para esses produtos

  • 3

    Tributação e subsídios

    Por falta de uma regulação específica, os produtos à base de plantas ainda são mais taxados do que os de origem animal e não recebem nenhum tipo de incentivo no Brasil

Processado é tudo igual?

A promessa de futuro alardeada pelas food techs esbarra em um palavrão: ultraprocessados. Empregado por especialistas da área de alimentação e saúde, o termo categoriza produtos que têm uma pequena porcentagem de ingredientes naturais e diversos aditivos químicos. Seu consumo está ligado a risco de obesidade e desenvolvimento de doenças crônicas.

Nem todo produto à base de plantas pertence à categoria, mas especialistas recomendam prestar atenção à lista de ingredientes dos rótulos. Se ela for longa e contiver nomes complicados de formulações químicas, é um indício de que o produto em questão é um ultraprocessado.

Um estudo canadense de 2019 investigou os ingredientes e informações nutricionais de produtos vegetais análogos à carne como Beyond Burger e Impossible Burger e constatou que se enquadravam na categoria de ultraprocessados.

A relação entre ultraprocessados e problemas de saúde é um tema que preocupa as empresas. A Fazenda Futuro lançou recentemente sua terceira versão do hambúrguer, com nova fórmula anunciada como tendo menos calorias, menos sódio e menor teor de gordura

Por outro lado, um estudo de 2020 realizado por pesquisadores da Universidade de Stanford, nos EUA, identificou uma redução de alguns fatores de risco cardiovascular com a substituição de carne vermelha por carne à base de plantas na dieta.

Para o nutricionista e pesquisador do Instituto de Defesa do Consumidor Rafael Arantes, os caminhos de transição para uma dieta com menos carne precisam ser oferecidos e é louvável que a indústria esteja ampliando as alternativas disponíveis.

A comida saudável e sustentável não está no futuro, está aqui há muito tempo. Ela passa pela produção orgânica, pela transição agroecológica e pela valorização dos alimentos in natura, frutas, verduras, hortaliças, seus preparos e derivações

Rafael Arantes, Nutricionista e pesquisador do Idec

Futuro flexitariano

Segundo Gustavo Guadagnini, diretor executivo do The Good Food Institute, as previsões sobre o mercado de proteínas alternativas não indicam o desaparecimento do consumo de carne, mas uma tendência de diversificação das fontes de proteínas na alimentação humana.

Os empresários das food techs do ramo vão mais longe. Leta, da Fazenda Futuro, aposta em uma redução drástica no consumo de alimentos de origem animal nas próximas décadas.

"Estamos no início de uma revolução alimentar. Acho que daqui a cem anos — ou até antes — a gente vai olhar pra trás e questionar como era normal escravizar animais para se alimentar", disse Anderson Rodrigues, da Vida Veg, a Ecoa.

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

Acompanhe reportagens especiais, entrevistas exclusivas, perfis e colunas para mostrar quem tem criado soluções, instigado reflexões e liderado possibilidades de transformação a partir de diferentes regiões, vivências e realidades.

Ler mais
Topo