Cinza que te quero verde

Mesmo com o adensamento urbano, produção de alimentos nas grandes cidades brasileiras é possível

Janaina Garcia Colaboração para Ecoa, de São Paulo

Quando uma família tem acesso a um lote de terra, independentemente de ter no campo seu trabalho, pode ganhar com ele a garantia de alimento na mesa todos os dias. Num cenário de pandemia em que quase 60% da população brasileira, ou 125,6 milhões de pessoas, tem vivido em insegurança alimentar, ou seja, não comem em quantidade e qualidade ideais, a discussão sobre saídas para combater a fome se faz ainda mais urgente.

Mas como avançar em uma realidade de grandes cidades cada vez mais adensadas, verticais e com déficits de moradia ou habitações precárias? É possível pensar na produção de alimentos dentro delas para fazer frente à demanda? Há espaço e ações proativas, afinal, para isso?

Para os entrevistados desta reportagem, a resposta é sim — e com um olhar que não foca tão somente na questão alimentar. A produção urbana de alimentos também é questão ambiental e até de saúde mental.

Expansão urbana desloca experimentos agrícolas

Oportunidade e necessidade são os elementos que "adubam" o cenário de possibilidades para a agricultura urbana nos grandes centros, especialmente porque é neles onde mais se consomem, nesta ordem, hortaliças, frutas e plantas ornamentais.

E essa é uma realidade que, aos poucos, vai ganhando mais adeptos nas metrópoles do país, explica o pesquisador Ítalo Guedes, da Embrapa Hortaliças, em Brasília.

Pesquisador de modelos de agricultura indoor e fazenda vertical, Guedes explica que, além da existência de cinturões verdes ao redor de cidades como São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, tem crescido a tendência de concentração do cultivo protegido de hortaliças — seja em túneis, telas e galpões, à medida também que aumenta a frequência dos fenômenos climáticos extremos, os quais afetam a qualidade e a quantidade de hortaliças e frutas produzidas.

"Esse é um problema: a expansão urbana razoavelmente desordenada tem competido muito com esses experimentos agrícolas periurbanos e os deslocado para mais longe", afirma o pesquisador. Ele cita o caso de Manaus, onde o cinturão verde que a abastecia, em Iranduba (AM), acabou deslocado cerca de 100 km com a construção da ponte sobre o Rio Negro e substituindo as plantações por loteamentos e condomínios.

O pesquisador vê fenômenos semelhantes também nas capitais SP, Rio e BH, que, além disso, concentram uma quantidade razoável de áreas subutilizadas — prédios que já foram indústrias, comércios fechados e grandes armazéns, em regiões mais marginais, por exemplo — que começam a ser transformadas em fazendas verticais de ambiente controlado para o cultivo.

"Há essa necessidade até em razão dos chamados desertos alimentares dos grandes centros urbanos, onde não se consegue comprar, a pouca distância, alimentos frescos", define.

Em países continentais como Brasil e mesmo os Estados Unidos, a produção controlada em território urbano ainda evita ou pelo menos minimiza a necessidade de logística onerosa para o transporte desses produtos em grandes distâncias, que muitas vezes, por aqui, é feito em estradas de rodagem de baixa qualidade, grandes distâncias e caminhões sem refrigeração.

A luta pela terra é central, ainda mais nos centros urbanos, onde a especulação imobiliária muitas vezes é o projeto de cidade

Juliana Torquato Luiz, cientista social e política, pesquisadora e membro do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

Demanda e consumo nas cidades

Vistas como alternativa aos desertos alimentares e aos gastos exorbitantes com logística, as fazendas verticais ainda vivem uma espécie de infância embrionária no Brasil, em cenário contrastante com o de outras cidades pelo mundo.

Em grandes cidades norte-americanas essa forma de produzir alimentos é uma realidade em franca expansão. O mesmo acontece em países asiáticos como Japão, China, Coreia do Sul, Tailândia e Singapura. O movimento começa a migrar também para a Europa, especialmente na França (na capital Paris) e na Suécia (Estocolmo).

Se por um lado esse tipo de produção supre parte da demanda dos grandes centros urbanos por produtos in natura — ainda mais, produtos in natura de qualidade —, por outro, é uma prática que está longe de ser acessível, uma vez que demanda adoção de tecnologias que garantam a proteção do cultivo. Aqui, são considerados, por exemplo, iluminação suplementar, cultivo hidropônico e qualidade nutricional elevada.

"O maior desafio desse tipo de empreendimento no Brasil ainda é o baixíssimo consumo de hortaliças no país", diz o pesquisador da Embrapa Hortaliças. Os brasileiros consomem menos de um terço da recomendação diária da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 400g de hortaliças. Guedes conta que nosso consumo médio é de 25 quilos per capita ao ano, enquanto, na Itália, esse número chega a 150 quilos. "Esse consumo muito baixo tem um reflexo no perfil de adoção de tecnologia pelo produtor de hortaliças no Brasil", conclui.

Ainda que seja alternativa mais saudável, o acesso a esse tipo de produção ainda acaba restrito a uma classe média com maior poder de consumo e mais disposta a pagar por produtos realmente frescos, seguros e de alta qualidade nutricional.

A pesquisadora Juliana Torquato Luiz há 11 anos pesquisa sobre agricultura urbana em sua diversidade de escalas e sujeitos — com práticas quilombolas, indígenas, familiares e camponesas, em áreas urbanas ou periurbanas (espaço limítrofe entre as regiões urbana e rural).

Ela diz acreditar em uma agricultura urbana em escala se adotadas políticas públicas e multissetoriais de produção de alimentos - as quais se relacionam com segurança alimentar, mas também com nutrição, educação ambiental, urbanismo, saúde pública e direito à terra. A região de Parelheiros, por exemplo, fica no extremo sul de São Paulo e é um dos redutos da produção de orgânicos da cidade, feita com pequenos produtores e grande escala.

"É preciso incluir o tema da agricultura urbana inclusive dentro dos Planos Diretores dos municípios, além de batalhar para ocupar espaços, como os conselhos participativos municipais, que falem de segurança alimentar. O presidente Jair Bolsonaro extinguiu o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar], onde havia um grupo de trabalho, dentro de suas câmaras técnicas, destinado à agricultura orgânica", citou.

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Como seria se todos pudessem plantar para comer?

"Seria maravilhoso", resume o urbanista Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), caso isso fosse uma realidade nas grandes cidades do Brasil.

O urbanista defende que a relação direta com o alimento saudável, a partir do cultivo e proximidade com sua produção, é a possibilidade de se resgatarem valores civilizatórios, permanentes — uma vez que a civilização se apoia também, e especialmente, em valores alimentares.

"Hoje discutimos muito a crise civilizatória — e considerando que os valores civilizatórios, que são aqueles compartilhados e coletivos, se fundamentam em uma relação com a produção e o consumo do alimento, transformar essa relação com o que se come é ter uma transformação até mesmo de valores civilizatórios, tão em crise hoje em dia", destaca.

O impacto, segundo o especialista, também transparece em outras áreas da vida, como a saúde mental, discussão que ganhou ainda mais força durante o isolamento social. "A presença dessas áreas de cultivo alimentar, que são áreas verdes, propicia essa articulação e essa proximidade com a vegetação e os ciclos da natureza, e isso tem um benefício até mesmo para a saúde mental."

As pessoas seriam mais felizes; a gente teria uma desalienação das mais importantes, que é em relação àquilo que se come, que se usa como alimento -- é poder ter uma relação consigo próprio mais saudável, autoconsciente e mais positiva.

Kazuo Nakano, urbanista e professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Alternativas para o custo logístico

Para o arquiteto Anthony Ling, urbanista e editor da plataforma colaborativa Caos Planejado, o adensamento crescente das grandes cidades acaba expandindo a mancha urbana — a imagem vista por satélite e que, em geral, transgride os limites de um município — para mais longe e distanciando a produção rural das periferias da cidade.

Na avaliação do urbanista, isso implica um desafio logístico relevante, uma vez que, com maiores distâncias para a produção de alimentos nas cidades, sobe o preço da terra rural nessas regiões, que passa a competir, por exemplo, com a instalação de indústrias.

Como produzir alimentos, então, dentro de cidades cada vez mais adensadas?

"Conceitualmente, esse modelo de fazendas verticais faz mais sentido em uma cidade muito grande e na qual o custo logístico é elevado demais para levar alimentos frescos até a área urbana — em Porto Alegre, onde moro, esse não é um modelo que faria tanto sentido, já que o preço da terra em uma cidade como Viamão [região metropolitana] ainda é relativamente baixo, ao ponto de se produzir ali e trazer para o centro da cidade", analisa Ling.

O profissional admite que esse é um tipo de produção ainda limitado. Ele menciona as hortas e canteiros comunitários, em topos de prédios ou não, em iniciativas paralelas, mas observa que, por ora, elas ainda são mais relevantes na tomada de consciência ambiental, comunitária e ecológica, propriamente ditas, do que em volume ou combate real à fome.

Circuitos curtos de produção e políticas públicas de escala

Nakano acredita que é possível o abastecimento considerar circuitos curtos de produção — nos quais, de forma controlada, se consegue aproximar dos centros consumidores a produção de alimento saudável, seguro e condizente com a cultura alimentar local.

"É desse conjunto de fatores que surge toda uma agenda de cidades comestíveis — que é a ideia de usar todo e qualquer espaço das cidades para a produção desse tipo de alimento, e não mais somente na figura dos cinturões verdes", explica.

Entretanto, para uma produção de alimento capaz de fazer frente a demandas mais amplas, Nakano afirma serem necessárias políticas públicas que deem escala aos circuitos curtos.

"Especialmente neste momento de pandemia temos visto que é preciso reconfigurar as políticas públicas em vários níveis e várias esferas, assim como redefinir o papel do Estado", analisa. "[Isso] amplia o alcance, a abrangência e a cobertura das ações de produção de alimentos — e é o tipo de iniciativa que tem que ser parte de toda uma política de segurança alimentar e nutricional", sinaliza.

Por escala e abrangência de produção de alimento saudável, o urbanista não se refere apenas a quantidade, mas a elementos que tratem também de uma política que considere preservação ambiental, abastecimento alimentar, saúde pública e coletiva — com uma gama de matizes que envolva ainda a discussão sobre combate à obesidade, sedentarismo e saúde mental.

Dentro dessa lógica de produção que estabelece uma agenda de conversão a uma economia mais verde — inclusive, com geração de empregos —, também se reduz o uso de combustíveis fósseis no transporte de alimentos para as cidades.

A agricultura veio como uma das respostas à questão da insegurança alimentar nutricional na pandemia, mas ela não pode ser entendida como medida paliativa e temporária. Você ver uma planta crescer e a colher, em um momento em que há tantas mortes, é a microescala de uma história feliz que tem um sentido muito forte nesse luto que não temos conseguido viver. Precisamos de escala nisso também.

Juliana Torquato Luiz, cientista social e política, pesquisadora e membro do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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