De mão em mão

Aline Souza, a catadora que passou faixa para Lula, quer desconto na conta de luz de quem separa lixo

Janaína Camelo Colaboração para Ecoa, de Brasília (DF) Diego Bresani/UOL

Naquela tarde de domingo do último primeiro de janeiro, Aline Souza, catadora de recicláveis, avistava da janela do terceiro andar do Palácio do Planalto a multidão em vermelho que ocupava a praça dos Três Poderes. Sentiu um arrepio subir na espinha. Dali a alguns minutos, em frente àquele mar de gente, e ao vivo para o mundo todo, ela vestiria a faixa presidencial no novo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Era uma cerimônia de entrega de faixa cheia de simbologias. Aline, mulher, trabalhadora, mãe e negra, se juntava naquele momento a outras sete pessoas escolhidas para representar a sociedade civil na subida da rampa do Palácio do Planalto.

Na mesma sala com a janela para a multidão do lado de fora, o grupo era orientado sobre os passos da cerimônia. A faixa passaria de mão em mão, entre cada um deles, até chegar ao presidente Lula.

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Soube ali que eu seria a última. E a última é quem iria botar a faixa no presidente. Aí, fui para outro mundo e voltei. Comecei a chorar.

Aline Souza, ativista, catadora e dirigente da CentCoop - DF

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Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis

Dias antes da posse, Aline recebeu o convite por uma ligação telefônica do fotógrafo oficial de Lula, Ricardo Stuckert. Os dois já se conheciam de eventos com lideranças de movimentos populares dos quais Lula costuma participar. Lula inclusive já esteve presente na Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do DF e Entorno (CentCoop) onde Aline ocupa hoje o cargo de diretora presidente.

"Eu estava em casa. O Ricardo Stuckert falou 'Aline, tô pra te fazer um convite. Você aceita participar do ato da posse de subir a rampa para a entrega da faixa com outros representantes para o presidente?' Eu falei: 'Seria uma honra'. Mas eu não tinha noção do que seria aquilo tudo. Não tinha noção", disse Aline para Ecoa.

Com 33 anos de idade, ela está em seu terceiro mandato como dirigente na CentCoop - DF. Há dez anos faz parte do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, e é secretária de Mulheres da União Nacional de Catadores e Catadoras de Material Reciclável (Unicatadores). Além disso, é delegada na Aliança Internacional de Catadores, representando o Brasil.

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Uma catadora no governo Lula?

Perguntada se ocuparia um cargo no governo federal nesta nova gestão, Aline é enfática. "Jamais iria pensar em cancelar esse elo de compromisso com eles [catadores] porque surgiu esse fato novo. Já está suficiente a estrutura de governo do jeito que está sendo montada".

Aline, juntamente com outras lideranças de cooperativas de catadores, colaborou com propostas na transição de governo. Uma das primeiras medidas anunciadas por Lula foi a de recriar o programa Pró-Catador, lançado por ele em 2010 mas extinto em 2020 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O programa tinha por finalidade expandir a coleta seletiva de resíduos sólidos, assim como a reutilização e reciclagem, além de fomentar a organização produtiva dos catadores.

Outra vitória para a categoria foi a criação do departamento de Gestão de Resíduos Sólidos, na nova estrutura do Ministério do Meio Ambiente, que ficará sob a alçada da Secretaria Nacional de Meio Urbano e Qualidade Ambiental.

"Era uma pauta nossa. A gente precisa entender a participação e a importância do catador na logística reversa", diz Aline.

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Em nome da avó.

Aline é de uma família de catadores. Morou em uma ocupação irregular na região administrativa de Taguatinga, no Distrito Federal. Ela lembra que ainda criança, sentia angústia a cada vez que voltava da escola e via a avó sair pro segundo turno [de trabalho] na rua em cima da caçamba de uma carroça.

"Via aqueles cavalos disparando e dizia 'Meu Deus, a minha '. Sou catadora porque não queria ver a minha avó em cima de uma carroça", conta. Foi com essa memória, e com a mãe também catadora, que resolveu militar pela qualidade de trabalho e dignidade de quem exerce a atividade.

Embora vivesse o dia a dia do catador, nunca largou a escola, e aproveitava para ler os livros que encontrava na coleta. Na adolescência, participou do programa Jovem Aprendiz da Caixa, onde atuava no setor que atendia às prefeituras. Curiosa, diz que aprendeu ali as primeiras habilidades de articulação política. Aos 18 anos, entrou na cooperativa de catadores Recicla, onde não demorou muito para que fosse transferida para trabalhar no setor de administração.

Desde então, Aline nunca parou. A Política Nacional de Resíduos Sólidos, ela tem na ponta da língua.

Sempre com um sorriso no rosto, Aline deixa claro que sua prioridade é continuar na luta pela valorização dos catadores, atrelando a importância da categoria à preservação do meio ambiente. Embora compreenda que haja curiosidade sobre sua história de infância e adolescência sem privilégios, morando em ocupações irregulares do Distrito Federal, não quer foco somente em sua história de superação.

Do dia em que apareceu na cerimônia de posse, Aline viu sua rotina mudar completamente. Convites para participações em eventos, reuniões com integrantes do governo, entrevistas para veículos de comunicação, além de sua agenda habitual na pauta de coleta de material reciclável.

Estou tentando lidar com a situação da melhor forma possível, sem ser ingrata a essa nobreza que me foi dada. Mas fui só um instrumento. Quero que falem menos de mim e mais da pauta dos catadores, das leis ambientais. Quero que falem mais das necessidades da população preta, quero que falem mais dos direitos da mulher.

Aline Souza, ativista, catadora e dirigente da CentCoop - DF

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Luz barata para quem separar lixo

Os projetos de Aline são muitos. Propostas que ela pretende emplacar com a visibilidade que ganhou. Um deles é a criação de uma bandeira sustentável de abatimento nas contas de água e de energia para o usuário que separar e destinar corretamente seu resíduo.

Pensa também na instalação em vias públicas de lixeiras inteligentes de coleta seletiva, onde o usuário teria créditos a cada depósito de lixo reciclável. Aline conheceu o projeto em uma missão técnica que fez à Itália, em outubro passado, para conhecer o sistema italiano de lixo zero, a convite da Organização das Cooperativas do Distrito Federal (OCDF) em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Regional.

Foi uma foto da viagem à Itália publicada em suas redes sociais que fez da Aline alvo de ataques nos últimos dias.

Comentários agressivos como "Entrega um currículo meu para catar lixo e conseguir viajar pra Europa" ou "Que mentira, não é catadora de lixo não!", foram postados na foto que aparece em Roma.

Em resposta, ela detalhou que o programa de intercâmbio foi viabilizado pela deputada federal Bia Kicis (PL-DF), aliada do ex-presidente Jair Bolsonaro. "Isso é uma cultura escravagista que no nosso país ainda está muito forte. Onde o branco ocupa, o preto não pode estar. Ele é sempre o empregado".

Diego Bresani/UOL Diego Bresani/UOL

Missão em Brasília

A central de cooperativas dirigida por Aline conta hoje com 21 cooperativas e quase 2 mil catadores. A maioria tem contratos firmados com a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) do Distrito Federal, que garante ao catador benefícios similares aos recebidos pelo trabalhador celetista, como recolhimento de INSS.

"Já temos catadores aposentados por meio da cooperativa por conta desse contrato. Isso é uma vitória que jamais pensaríamos ter". Ela agora luta para garantir o mesmo benefício aos demais catadores descobertos.

Outra pauta reivindicada é a isenção da bitributação de produtos da cadeia de reciclagem, e a retomada da isenção de PIS e Cofins nas operações de vendas de materiais recicláveis à indústria de transformação, benefício derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no fim do ano passado.

No complexo de recebimento e triagem de materiais recicláveis da CentCoop, que fica na Cidade Estrutural, região administrativa de Brasília, chegam cerca de três mil toneladas de resíduos ao mês. Disso, mil são enviados ao mercado de reciclagem. O restante é destinado ao aterro sanitário.

Quem visita o complexo percebe nitidamente a diferença entre o montante de lixo depositado pelos caminhões de empresas, que são molhados e pesados, e dos caminhões das cooperativas, que são secos e leves, e muito bem separados, com aproveitamento de até 97%.

A meta é aumentar a quantidade de resíduo recuperado, mas o objetivo esbarra num valor muito simples: educação ambiental.

"As pessoas precisam parar de ver no catador, só o lixo, e ver o catador como um elo e um herói que contribui para as futuras gerações", diz Aline.

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