Por anjos negros nos livros

Após lutar por cultura negra na sala de aula, Ana Célia, 81, faz rolezinho contra racistas

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Rafael Martins/UOL

Eu sempre quis ser anjo, mas nunca deixaram. Não existe anjo negro nos livros
Ana Célia da Silva, pedagoga

As frustrações cultivadas na infância serviram de fagulha para que a educadora Ana Célia da Silva, de 81 anos, se tornasse uma das principais estudiosas do racismo em publicações didáticas usadas nas escolas brasileiras.

A observação do sistema educacional, especialmente na primeira infância, e o diálogo com professores de escolas públicas da Bahia a ajudaram a identificar os estereótipos atribuídos a pessoas negras e que atingem crianças pretas e pardas ainda nos bancos escolares e são alimentados para além da sala de aula.

A trajetória na academia, sempre na UFBA (Universidade Federal na Bahia), onde foi da graduação ao doutorado em pedagogia, se mistura com os passos que deu como militante nas ruas.

Na década de 1970, ajudou a fundar o MNU (Movimento Negro Unificado) na Bahia e acompanhou a ascensão do bloco Ilê Aiyê, entidades que contribuíram na luta contra o racismo no estado, sobretudo em Salvador.

Rafael Martins/UOL Rafael Martins/UOL

Para ver o bloco contra o racismo passar

Deborah Faleiros/UOL

Ana Célia é taxativa ao definir um marco na luta racial em Salvador: 1974, ano do surgimento do bloco afro Ilê Aiyê. Até então, a luta estava inserida no contexto político da ditadura militar (1964-1985). Na faculdade, entre 1965 e 1968, ela fez parte do movimento estudantil de resistência ao regime. "No diretório, a luta não incluía diversidade ou racismo. Era pela democracia e universalista", comenta.

No Ilê, Ana Célia integrou a ala da organização que atua em ações culturais e na formação de professores de escolas públicas de Salvador. Além disso, ela trabalhou na confecção dos Cadernos de Educação, que costura história, poesia e música para resgatar a trajetória de organizações negras brasileiras desde o século 17.

Longe das atividades desde o fim dos anos 2000, Ana Célia inicialmente culpa a falta de tempo pelo afastamento. "Estou lá sempre que precisam", diz, deixando transparecer certa tristeza na voz e no semblante. Depois abre o jogo. Levada para o Ilê por um dos seus irmãos, o poeta e professor universitário Jonatas Conceição, que ocupou diversos cargos diretivos no bloco, ela se afastou da organização após a morte dele, em 2009, aos 54 anos.

Em homenagem a ele, a pedagoga reuniu a obra do irmão em livro. O volume deve ser lançado em dezembro de 2022.

O Ilê Aiyê foi a primeira instituição que nos ensinou sobre o povo negro, o significado da nossa ancestralidade, ainda que não soubéssemos o nome. Eles foram nosso currículo educacional muito antes de o MNU chegar aqui [em Salvador]

Ana Célia da Silva, pedagoga

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

MNU na Bahia

Deborah Faleiros/UOL

Enquanto o bloco Ilê Aiyê travava uma luta por reconhecimento cultural e educacional, outros grupos organizavam manifestações e passeatas contra o racismo em Salvador. Era o caso do Nêgo, que também conduzia ações de conscientização, como palestras da intelectual Lélia Gonzalez (1935-1994).

Assim que seus integrantes souberam do lançamento do MNU, despacharam o dançarino Kal dos Santos para a capital paulista. Lá, participou do ato, em julho de 1978, em que o movimento foi fundado. Apresentou uma carta do grupo Nêgo reconhecendo o MNU e se integrando ao movimento.

A primeira leva de militantes baianos era constituída pelos geólogos Gilberto Roque Nunes Leal e Leib Carteado Crescêncio, o petroleiro e futuro deputado Luiz Alberto, os sociólogos Lino Almeida (1958-2006) e Manoel de Almeida Cruz (1950-2004) e a futura ministra Luiza Bairros (1953-2016).

Antes de deixar o MNU em 1989, ela ajudou a criar um grupo de trabalho de educação denominado Robson da Luz, nome de um jovem negro torturado e assassinado por policiais militares em 1978 sob a acusação de roubar frutas na feira. O episódio de violência policial foi uma das fagulhas para a criação do MNU.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Ao lado do grupo constituído pelo irmão Jonatas e outros militantes como a assistente social Gildalia Anjos e Carlos Alberto Menezes, Ana Célia detectou a dificuldade de jovens se identificarem como negros, a baixa autoestima e a falta de conhecimento em relação à própria identidade.

Uma das principais vitórias do grupo está relacionada com a tentativa de reverter esse quadro. Junto à secretaria de Educação baiana, conseguiu em 1986 que a disciplina optativa Introdução aos Estudos Africanos entrasse nos currículos dos ensinos fundamental e médio do Estado.

Nas aulas, que chegaram a ser ministradas em oito escolas de Salvador, os professores discutiam a organização política da África pré-colonial e a formação histórica e geográfica dos povos africanos. Essa iniciativa serviu como embrião para o que aconteceria anos depois, com a promulgação da lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas do país.

Quando digo que sou independente hoje é em parte por falta de tempo para estar em reuniões e porque acredito nos movimentos que acontecem na rua, próximo das pessoas, como era o MNU no meu tempo. Acho que o movimento deve apoiar os jovens do hip hop, dos saraus de poesias, estar nas favelas. São eles que têm a força da mudança

Ana Célia da Silva, pedagoga

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Derrubando estereótipos

Deborah Faleiros/UOL

A atuação como militante era alimentada pelas descobertas que Ana Célia fazia enquanto acadêmica e pesquisadora do sistema de ensino brasileiro.

No mestrado em educação na UFBA, ela investigou a existência de estereótipos na educação escolar em ilustrações e textos. Analisou 16 livros da grade curricular de 22 escolas de Salvador. Além disso, entrevistou professores para colher a percepção deles sobre os estereótipos contidos nas publicações. Uma das conclusões, diz, é que boa parte dos mestres não percebia a discriminação racial no material didático.

Alguns professores e coordenadores das escolas ainda não sabem como usar o livro de forma crítica. Aqueles ligados ao neopentecostalismo não fazem questão de aprender, ainda que tenha entre eles um grupo que entende e age. O Ministério da Educação não vai mudar o livro. Nós é que precisamos fazer essa leitura do material com o aluno

A pesquisa não só orientou ações do movimento negro como também virou livro, publicado em 1995 pela Edufba com o título 'A discriminação do negro no livro didático'.

Já no doutorado, Ana Célia tenta captar se houve avanço na representação social de pessoas negras em materiais escolares. Na tese, que também virou livro em 2011, ela concluiu que, por um lado, há uma pequena evolução da temática racial no ambiente escolar, mas, por outro, a invisibilidade e o racismo ainda dão a tônica das publicações didáticas.

A criança negra não tem nome e família. Está sempre sozinha e não brinca. É sempre a responsável por atitudes ruins. Em boa parte dos livros, tudo que é bom está associado à branquitude

Ana Célia da Silva, pedagoga

Para ela, a construção dos estereótipos não nasce na escola. Acontece também no seio familiar, "que reproduz o racismo estrutural sem conversar com seus filhos sobre uma educação antirracista", e na religião, "sobretudo aquelas de matriz cristã, que disseminam a ideia do branco, masculino, hétero, inteligente, e que inferioriza o que é diferente", diz.

Para Ana Célia, a lei do ensino da cultura negra ajudou a alterar esse cenário, mas ainda é pouco para resolver o problema do racismo no Brasil.

O que nós temos hoje é uma parcela de professores, não todos, formados com consciência política no que diz respeito à questão racial. Essa ainda é uma batalha em um contexto de avanço na educação pública das lideranças evangélicas, que estão restringindo o ensino de culturas diversas. Mas não se pode desistir. É o futuro dos nossos que está em jogo

Poesia como válvula de escape

Deborah Faleiros/UOL

Para além da atuação como pensadora da educação, Ana Célia é uma entusiasta da prática cultural na luta contra o racismo. No Ilê, ela viu nascer o programa de rádio Tambores da Liberdade, criado pelo irmão Jônatas Conceição para divulgar música e cultura afro-brasileira semanalmente. Atualmente, está na Educadora FM.

Aqui na Bahia, a música do Ilê Aiyê chega com muito mais ênfase na população do que um discurso político

A ligação com a arte levou a pedagoga a publicar poemas nos Cadernos Negros, publicação literária criada em 1978 pelos escritores Oswaldo de Camargo, Paulo Colina (1950-1999), Abelardo Rodrigues e Cuti. Nos 40 anos seguintes, ela abrigou a produção literária de autores como o poeta Oliveira Silveira (1941-2009), Conceição Evaristo e Miriam Alves.

Entre seus escritos, Ana Célia trabalha com temas do cotidiano, como a violência policial, como em "Bebê a Bordo", de 1996, que trata do assassinato de jovens negros pela polícia militar no bairro do Curuzu, em Salvador.

Que brilho é este negro?
É o brilho do sangue no asfalto
Dos bebês do Curuzu
Negras crianças insurgente
Desesperadas, abandonadas.
Negra juventude transviada?
Seus frágeis corpos metralhados
Seguem a bordo do grito de justiça,
Espalhados pelos blocos afros e MNU
Pelas ruas da Liberdade e Curuzu

Também há espaço para questões íntimas, como a homenagem que fez ao pai em "Pão", de 2014. Motorista de bonde, ele faleceu quando ela tinha 20 anos. Foi vítima de AVC fulminante, enquanto procurava quitar uma dívida pela compra de pães em uma mercearia no bairro da Liberdade, onde viviam.

Podia faltar reza
A fé, a luz, a água
Mas não o pão
O jornal, o afeto
Todos dos dias, ao cair da tarde
Ele os trazia debaixo do braço e no abraço
Com sua farda caqui de botões dourados
Aerados com caó
Que escurecia seu rosto e suas mãos
De preto sarará
Um dia faltou pão
Ele não resistiu
E nos faltou

Constranger para mudar

Deborah Faleiros/UOL
Rafael Martins/UOL

Em meio às sutilezas da poesia, Ana Célia não perde a firmeza de quem está no front há muitos anos e não tem perspectiva de que a batalha acabe. Para ela, a luta contra a discriminação e o racismo está longe do fim. Mas os tempos são outros, e a tecnologia virou aliada.

Hoje em dia, a estratégia passa pelo WhatsApp. No aplicativo, ela articula no grupo "Rolezinho das Caras Pretas" ações de "constrangimento pedagógico" de pessoas e empresas acusadas de cometer crimes de racismo. "O pessoal é rápido. Eu, que sou mais velha, fico atenta para não perder", explica.

A ideia surgiu em 2017, quando a professora e doutora em educação pela UFBA Amanaiara Miranda ouviu comentários racistas de uma vendedora de uma loja do Salvador Shopping. No mesmo dia, cerca de 60 pessoas foram até o local protestar.

Não há violência. Deixamos evidente que aquilo foi um ato racista. É para expor o criminoso mesmo, fazer passar vergonha

Em junho de 2018, o grupo foi até o Shopping da Bahia após seguranças impedirem um homem de pagar pelo almoço de uma criança negra. Cerca de 100 pessoas caminharam pelo centro comercial, e crianças entregaram à administração o livro "Parem de Nos Matar", da escritora Cidinha da Silva. Com a pandemia, as ações foram suspensas, mas Ana Célia diz que serão retomadas em breve.

Mas estamos com a cabeça erguida. Seja na cultura, na política, na religião, com os terreiros de candomblé, tudo para fortalecer a autoestima do negro de maneira sistemática. Não podemos desistir

Ana Célia da Silva, pedagoga

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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