Ecoa: Segunda você começa a escrever uma coluna aqui em Ecoa, já pensou em tudo que quer abordar?
Anielle Franco: Ah, eu tenho muita vontade de falar sobre várias coisas, mas principalmente voltadas a esse combate ao racismo, ao fortalecimento das mulheres negras, falar da galera favelada. Também tentar defender essa memória da Mari, que é sempre tão atacada por "fake news". Mas também quero falar sobre maternidade, essa coisa da gente ser mãe muito nova e criar uma criança sozinha, ser uma mãe favelada, preta e solteira.
Quero falar mais sobre o Instituto Marielle Franco, sobre como a gente tem transformado em luta esse luto que fomos obrigadas a viver. Como a gente saiu do anonimato para ser essa figura pública em que as pessoas passam na rua xingam, mas também abraçam, sabe?
E quem era a Anielle antes desta tragédia acontecer? Você já tinha algum envolvimento com toda essa luta?
Eu era a pessoa que criava com a Mari a parte escrita. Porque eu sempre fui dessa área de letras, literatura, jornalismo, sabe? Para você ter uma ideia, nesse final de semana eu fiquei muito emocionada porque minha mãe achou uma carta que escrevi em 2001, quando fui morar nos Estados Unidos com 16 anos. Eu estava indo jogar vôlei lá para tentar melhorar a vida dos meus pais e ajudar a Mari a criar a Luyara, que a minha sobrinha. E eu escrevia muito bem. Eu escrevi uma carta de cinco páginas para cada um: meu pai, minha mãe e para a Mari. Aí, eu li a carta e fiquei pensando: "Caraca! Olha eu escrevendo toda bonitinha sem erro gramatical!"
Eu tentei ser jornalista. Morei fora 12 anos. E lá eu fiz inglês e jornalismo na faculdade. Aí quando voltei, por ter jogado vôlei a minha vida inteira, tinha da minha cabeça aquele sonho, aquela ideia de que eu seria estilo Glenda Kozlowski. Atleta e jornalista, sabe? Eu queria isso, eu queria criar para o esporte, queria só falar de vôlei. Por isso, quando voltei, fiz três entrevistas para grandes veículos aqui do Brasil. Só que ouvi de duas pessoas diferentes que o meu rosto não era para bancada. E aí eu fui desistindo daquilo. Meu pai, naquela época, em 2012, estava desempregado, a Mari já estava trabalhando para caramba para criar a Luyara e minha mãe dando conta de tudo.
Aí eu pensei: "cara, eu vou ter que ir para um lugar em que eu consiga ganhar dinheiro agora para ajudar em casa." E aí eu comecei a dar aula em cinco cursos de inglês ao mesmo tempo. Eu tenho um orgulho de contar essa história, viu? Mas eu sempre escrevi muito. Esses dias eu achei cartas que ela [Marielle] escrevia para mim e eu escrevia para ela. Eu ficava sozinha lá nos Estados Unidos, então contava meu dia a dia, falava que tinha ganhado tal campeonato, que tinha sido escolhida melhor jogadora do torneio, mandava foto, esse tipo de coisa? Depois quando voltei, a gente começou a escrever muito juntas.
E acontecia de ajudar a Marielle a escrever os discursos dela?
Quando veio 2016 e ela falou que de fato ia se candidatar, nós começamos a escrever os discursos juntas. Muita coisa que ela escrevia, como aquele discurso do "Não serei interrompida" a gente escreveu juntas. E tenho muito muito orgulho de falar isso. No 8 de março, ela fez um discurso lindo na Fiocruz que a gente escreveu juntas. A gente tinha essa troca. E outra coisa, a Mari tinha muita dificuldade com a língua inglesa. Ela queria aprender muito e nunca conseguiu. Então, quando fui fazer meu intercâmbio, ela e meus pais me sustentaram lá. O vôlei me dava apenas a minha moradia e sustento. Agora, a passagem e o visto, por exemplo, eu tinha que pagar. Então, elas trabalhavam três ou quatro turnos da semana e final de semana vendendo coisa na Maré, vendendo coisa na feira para que eu pudesse falar inglês.
Em uma das últimas conversas que a gente teve já em março, antes dela falecer, ela me falou: "que bom que você aprendeu a falar essa porra dessa língua, porque eu não tenho condições de falar, nunca aprendi essa merda" (risos). Só que quando matam a Mari, me vi em uma situação de não ter mais a minha porta-voz.
Então passei a brigar para defender a narrativa de vida que tive com a minha irmã porque muita gente tenta apagar isso. As pessoas tentam apagar muitas histórias da vida dela e focam em coisas que não são reais. Usam isso como álibi, como desculpa para aparecer, para se mostrar, para ficarem famosos, para se eleger também, como foi em 2018. E aí eu comecei a ficar com muita raiva disso, e falei: "não, eu fui criada por essa mulher, vou começar a escrever, vou começar a correr atrás de defender a memória dela". E é o que tenho feito.
Quando vocês estavam escrevendo esses discursos tinham alguma noção de que poderiam tocar tanta gente?
Vou te confessar que não. Mas não era só a gente que escrevia. Ela tinha uma equipe de comunicação por trás também. Esses sempre foram uma construção coletiva. Nunca era ela construindo sozinha. Ela era muito coletiva em tudo. Quem ela ia contratar, o que ela ia falar, que roupa ela ia usar? Ela sempre perguntava o que a gente achava. Sempre. Acho que o mais difícil para mim hoje é isso também: tomar decisão das minhas coisas sem a ajuda dela. E eu te falo isso com a voz embargada. Perdi minha parceira de tudo.
2016 foi um ano muito foda para gente porque ela estava se separando do segundo marido e eu me separando do pai da minha filha. Então, a gente curtiu muito juntas. Parecia que a gente estava tendo um "remember" da adolescência, sabe? Foi forte, foi bem bom. A gente ficou muito unida em 2016.
24 horas antes de assassinarem ela, a Mari manda uma mensagem para mim que dizia: "pra lembrarmos sempre da nossa força", junto com uma foto nossa antiga dentro da igreja de São Jorge. E eu levo aquilo para mim até hoje, sabe? Principalmente na frente do Instituto Marielle Franco, que está crescendo. Lá, estou tentando buscar essa narrativa da memória dela porque o silêncio me mata. Ver esse racismo todo em cima da Mari, esse julgamento todo em cima dela e ficar calada? Isso eu não consigo.