Sopro de esperança

Nova colunista de Ecoa, Anielle Franco fala de empoderar mulheres negras, da memória da irmã e o ciclo da vida

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Marcus Leoni/Folhapress

24 horas antes do dia 14 de março de 2018, uma mensagem pipocou no WhatsApp de Anielle Franco. "Pra lembrarmos sempre da nossa força", lia-se o texto simples que a irmã mais velha mandou para ela, junto a uma foto tirada das duas na igreja de São Jorge no ano anterior. 24 horas depois desse dia começaram a surgir no celular de Anielle diversas notícias falsas sobre a irmã Marielle Franco, vereadora carioca e parceira de vida recém-morta a tiros ao sair de um evento no centro do Rio de Janeiro.

Pode-se dizer que na história do Brasil atual tudo ficou definido meio assim: entre o antes e o depois de 14 de março de 2018. Entre o antes e o depois do assassinato de Marielle Franco. Na vida de Anielle também. Quer dizer, principalmente na vida dela.

Após dedicar anos aos estudos, ao vôlei, a ser professora de inglês e a ajudar a irmã no backstage da vida política, ela se viu obrigada a tomar a frente da luta não só pelo povo preto e periférico, que um dia foi a principal bandeira defendida pela irmã, mas pela integridade da imagem de Marielle.

E é por isso que Anielle tem aprendido dia após dia, juntamente com uma rede de apoio majoritariamente composta por mulheres negras, a transformar o luto em luta. Assim, apresentou recentemente para o mundo a Escola Marielles, que em 2021 começará a dar formação política para meninas e mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+, além da criação da Pane, plataforma antirracista que apoiará ideias para as eleições municipais de 2020 — a primeira após o assassinato da vereadora.

Todos esses projetos são ações do Instituto Marielle Franco, que Anielle criou em 2019 para pedir justiça pelo crime contra Marielle e o motorista Anderson Gomes, e honrar a memória da irmã. Muito mais do que questionar quem mandou matar Marielle Franco, Anielle tomou para si a responsabilidade de fazer com que todos nós tenhamos na ponta da língua a resposta para outra pergunta: Quem foi Marielle Franco?

"A Mari não só representava várias lutas, mas também trazia em si o exemplo vivo de muitas mulheres. Para você ter ideia, quando ela foi eleita, lá na Lapa, eu vi pelo menos umas 15 ou 20 mulheres negras diversas falando: 'Finalmente alguém me representa!'. Então, eu acho que as pessoas se espelham muito nela mesmo. Acho que o povo negro no geral se espelha nela. Tentar calar a voz da Marielle é tentar calar a voz de mais um monte de brasileiro, sabe?", diz Anielle Franco, que é um monte de coisa: atleta, escritora, professora, mãe, militante, diretora do Instituto Marielle Franco e agora, a partir de amanhã (20), também será a nova colunista de Ecoa.

Reprodução/Instagram

Ecoa: Segunda você começa a escrever uma coluna aqui em Ecoa, já pensou em tudo que quer abordar?

Anielle Franco: Ah, eu tenho muita vontade de falar sobre várias coisas, mas principalmente voltadas a esse combate ao racismo, ao fortalecimento das mulheres negras, falar da galera favelada. Também tentar defender essa memória da Mari, que é sempre tão atacada por "fake news". Mas também quero falar sobre maternidade, essa coisa da gente ser mãe muito nova e criar uma criança sozinha, ser uma mãe favelada, preta e solteira.

Quero falar mais sobre o Instituto Marielle Franco, sobre como a gente tem transformado em luta esse luto que fomos obrigadas a viver. Como a gente saiu do anonimato para ser essa figura pública em que as pessoas passam na rua xingam, mas também abraçam, sabe?

E quem era a Anielle antes desta tragédia acontecer? Você já tinha algum envolvimento com toda essa luta?

Eu era a pessoa que criava com a Mari a parte escrita. Porque eu sempre fui dessa área de letras, literatura, jornalismo, sabe? Para você ter uma ideia, nesse final de semana eu fiquei muito emocionada porque minha mãe achou uma carta que escrevi em 2001, quando fui morar nos Estados Unidos com 16 anos. Eu estava indo jogar vôlei lá para tentar melhorar a vida dos meus pais e ajudar a Mari a criar a Luyara, que a minha sobrinha. E eu escrevia muito bem. Eu escrevi uma carta de cinco páginas para cada um: meu pai, minha mãe e para a Mari. Aí, eu li a carta e fiquei pensando: "Caraca! Olha eu escrevendo toda bonitinha sem erro gramatical!"

Eu tentei ser jornalista. Morei fora 12 anos. E lá eu fiz inglês e jornalismo na faculdade. Aí quando voltei, por ter jogado vôlei a minha vida inteira, tinha da minha cabeça aquele sonho, aquela ideia de que eu seria estilo Glenda Kozlowski. Atleta e jornalista, sabe? Eu queria isso, eu queria criar para o esporte, queria só falar de vôlei. Por isso, quando voltei, fiz três entrevistas para grandes veículos aqui do Brasil. Só que ouvi de duas pessoas diferentes que o meu rosto não era para bancada. E aí eu fui desistindo daquilo. Meu pai, naquela época, em 2012, estava desempregado, a Mari já estava trabalhando para caramba para criar a Luyara e minha mãe dando conta de tudo.

Aí eu pensei: "cara, eu vou ter que ir para um lugar em que eu consiga ganhar dinheiro agora para ajudar em casa." E aí eu comecei a dar aula em cinco cursos de inglês ao mesmo tempo. Eu tenho um orgulho de contar essa história, viu? Mas eu sempre escrevi muito. Esses dias eu achei cartas que ela [Marielle] escrevia para mim e eu escrevia para ela. Eu ficava sozinha lá nos Estados Unidos, então contava meu dia a dia, falava que tinha ganhado tal campeonato, que tinha sido escolhida melhor jogadora do torneio, mandava foto, esse tipo de coisa? Depois quando voltei, a gente começou a escrever muito juntas.

E acontecia de ajudar a Marielle a escrever os discursos dela?

Quando veio 2016 e ela falou que de fato ia se candidatar, nós começamos a escrever os discursos juntas. Muita coisa que ela escrevia, como aquele discurso do "Não serei interrompida" a gente escreveu juntas. E tenho muito muito orgulho de falar isso. No 8 de março, ela fez um discurso lindo na Fiocruz que a gente escreveu juntas. A gente tinha essa troca. E outra coisa, a Mari tinha muita dificuldade com a língua inglesa. Ela queria aprender muito e nunca conseguiu. Então, quando fui fazer meu intercâmbio, ela e meus pais me sustentaram lá. O vôlei me dava apenas a minha moradia e sustento. Agora, a passagem e o visto, por exemplo, eu tinha que pagar. Então, elas trabalhavam três ou quatro turnos da semana e final de semana vendendo coisa na Maré, vendendo coisa na feira para que eu pudesse falar inglês.

Em uma das últimas conversas que a gente teve já em março, antes dela falecer, ela me falou: "que bom que você aprendeu a falar essa porra dessa língua, porque eu não tenho condições de falar, nunca aprendi essa merda" (risos). Só que quando matam a Mari, me vi em uma situação de não ter mais a minha porta-voz.

Então passei a brigar para defender a narrativa de vida que tive com a minha irmã porque muita gente tenta apagar isso. As pessoas tentam apagar muitas histórias da vida dela e focam em coisas que não são reais. Usam isso como álibi, como desculpa para aparecer, para se mostrar, para ficarem famosos, para se eleger também, como foi em 2018. E aí eu comecei a ficar com muita raiva disso, e falei: "não, eu fui criada por essa mulher, vou começar a escrever, vou começar a correr atrás de defender a memória dela". E é o que tenho feito.

Quando vocês estavam escrevendo esses discursos tinham alguma noção de que poderiam tocar tanta gente?

Vou te confessar que não. Mas não era só a gente que escrevia. Ela tinha uma equipe de comunicação por trás também. Esses sempre foram uma construção coletiva. Nunca era ela construindo sozinha. Ela era muito coletiva em tudo. Quem ela ia contratar, o que ela ia falar, que roupa ela ia usar? Ela sempre perguntava o que a gente achava. Sempre. Acho que o mais difícil para mim hoje é isso também: tomar decisão das minhas coisas sem a ajuda dela. E eu te falo isso com a voz embargada. Perdi minha parceira de tudo.

2016 foi um ano muito foda para gente porque ela estava se separando do segundo marido e eu me separando do pai da minha filha. Então, a gente curtiu muito juntas. Parecia que a gente estava tendo um "remember" da adolescência, sabe? Foi forte, foi bem bom. A gente ficou muito unida em 2016.

24 horas antes de assassinarem ela, a Mari manda uma mensagem para mim que dizia: "pra lembrarmos sempre da nossa força", junto com uma foto nossa antiga dentro da igreja de São Jorge. E eu levo aquilo para mim até hoje, sabe? Principalmente na frente do Instituto Marielle Franco, que está crescendo. Lá, estou tentando buscar essa narrativa da memória dela porque o silêncio me mata. Ver esse racismo todo em cima da Mari, esse julgamento todo em cima dela e ficar calada? Isso eu não consigo.

Zo Guimaraes /Folhapress Zo Guimaraes /Folhapress

O Instituto Marielle Franco, além de ser uma plataforma para lutar por justiça, é também uma forma de defender a memória da Marielle, que foi vítima de muitas notícias falsas depois da morte. Parece que o favelado quando é morto, morre duas vezes. A morte física e depois a morte da memória, da imagem. Queria saber se nesses últimos dois anos da morte da Marielle você já chegou a alguma conclusão do porquê isso acontece?

De verdade quando eu olho para esses casos, acho que? A gente vive em um país onde o racismo não é velado. A gente vive um racismo explícito mesmo, para todo mundo ver. Aqueles que não veem e se omitem é porque ou tem práticas racistas, são racistas ou não se incomodam com o sofrimento das pessoas.

Quando eles veem alguém chegar como a Mari chegou e onde ela chegou, e que provavelmente teria sido reeleita, eles não aceitam isso. É racismo puro. Vou te dar um outro exemplo prático: tanto aqui no Brasil quanto lá fora eu já ouvi várias vezes nesses últimos dois anos coisas como: "Nossa, mas você é da Maré e fala inglês como?" Esse tipo de pergunta. Eu não sei o porquê de terem matado minha irmã. Eu não consigo entender porque fazem com ela algo que ela jamais faria com outra pessoa.

Essa foi uma morte muito covarde, muito cruel. Mas eu só consigo pensar no fato das pessoas não aceitarem quando a gente chega no topo, quando a gente chega no lugar de referência. A sociedade tem uma certa dificuldade em aceitar uma pessoa não branca conquistando seu próprio espaço.

Não consigo ter uma fala fechada do motivo deles sempre matarem a gente duas vezes. Com a Marielle aconteceu isso. Com o João Pedro aconteceu também. E é sempre isso: matam o corpo, depois matam a reputação, matam o seu trabalho. Acho que é por isso que o meu trabalho enquanto diretora do Instituto, enquanto irmã, tendo essa oportunidade de falar em alguns lugares, é tão importante. Estou numa luta pela preservação da memória dela.

E a Marielle era muita representatividade em uma pessoa só. Lutar para preservar a imagem dela também é lutar para preservar a imagem da maioria da população brasileira, que é mulher, negra, favelada e LGBTQIA+?

Sim, com certeza! A Mari não só representava várias lutas, mas também trazia em si o exemplo vivo de muitas mulheres. Para você ter ideia, quando ela foi eleita, lá na Lapa eu vi pelo menos umas 15 ou 20 mulheres negras diversas falando: "Finalmente alguém me representa!". Então, eu acho que as pessoas se espelham muito nela mesmo. Acho que o povo negro no geral se espelha nela. Tentar calar a voz da Marielle é tentar calar a voz de mais um monte de brasileiro, sabe? Muita gente começa a se ver negra após a morte dela, muita gente começa a falar, escrever, a entrar para a política após a morte dela. Isso eu acho superlegítimo.

E agora vocês vão construir a Escola Marielles em 2021 justamente para formar politicamente mulheres negras periféricas. Como vai ser isso?

A ideia surgiu da minha cabeça não me pergunte como (risos). Do nada, um dia eu aqui pensando tudo que a gente queria fazer de estruturação do Instituto Marielle Franco, e aí me veio essa ideia de ter uma escola de formação política. Mas não de formação política partidária. Pensei uma escola em que a gente pudesse inspirar meninas e mulheres a se reconhecerem como mulheres negras. Se entender, entender quais são seus direitos, enfim? É abrir um leque de oportunidades para essas mulheres. Fazendo uma junção de intelectuais negras, pensadoras negras com essas mulheres e meninas.

Para você ter uma ideia, a gente ia inaugurar esse ano se não fosse a pandemia. E quem viria para a inauguração agora em outubro seria a Angela Davis. Fico com o olho cheio d'água quando penso nisso. A gente quer inspirar outras meninas a crescer lendo e conhecendo essas autoras para elas se entenderem nesse mundo racista, nesse mundo que é muito cruel com a gente. Quando você é favelada, você normalmente não tem escolha do que pode fazer na sua vida, porque você tem que lutar todo dia. Não tem um dia fácil para gente. Então, não importa se está sol ou chuva, a gente está sempre lutando.

Por isso a gente quer passar um pouco da nossa essência na nossa escola. Passar um pouco do que a gente viveu. Trazer pessoas para o convívio dessas meninas que elas talvez não conheçam. Sei lá, muita gente não deve ter lido ainda Conceição Evaristo dentro da Maré ou no Complexo do Alemão, por exemplo, sabe?

Vanessa Freitas/Estúdio Freitas Fotografia Vanessa Freitas/Estúdio Freitas Fotografia

Dentro das favelas do Rio de Janeiro existe uma formação educacional comunitária muito forte. Como você enxerga a importância dessa futura escola que estão criando e de tantas outras comunitárias para a formação do indivíduo dentro da favela?

É superimportante! Continuo acreditando em algo que minha irmã sempre falava e meus pais também falam até hoje que é: só a educação salva a gente. Podem tirar o que for da gente, mas nunca vão tirar o conhecimento. O meu conhecimento é o meu conhecimento.

Tiraram minha irmã, tiraram várias oportunidades de eu ser jornalista na vida, mas no meu conhecimento ninguém vai conseguir mexer. Por isso, cada projeto de formação e educação da Maré ou em qualquer outra favela, que eu conseguir compartilhar, ajudar, eu vou fazer. Porque eles querem que a gente cresça burro, estúpido, sem noção de mundo, sem saber sobre outras culturas, sem conhecer outros lugares. Por exemplo, para esse governo fascista que a gente tem, quanto mais ignorante o favelado for, melhor para eles.

E como surgiu a ideia de criar o Instituto Marielle?

Tive a ideia, só que a minha ideia não era criar um Instituto, era criar uma organização de educação. Eu pensei em criar uma escola com o nome da Mari para dar aula de inglês, literatura e português em várias favelas no Rio. E aí eu comecei a levar as ideias pra várias pessoas como a Lúcia Xavier, para Jurema Werneck? Eu fui para Califórnia dar uma palestra e conversei com a Angela Davis sobre isso. Só que aí todo mundo falava que eu tinha uma parada na mão que era muito grande, que eu tinha que pensar em fazer mais e expandir essa ideia. Daí eu concordei, né? Comecei a fazer escuta com várias pessoas que trabalharam com a Mari e que hoje constroem o Instituto comigo. E passamos 2019 inteiro pensando, conversando e arquitetando como a gente podia lançar? Em janeiro deste ano a gente criou de verdade e virou isso tudo.

Me corrija se eu estiver errada, mas a maioria das pessoas na liderança do Instituto Marielle são justamente mulheres negras, né?

Sim, a maioria é de mulher preta. Eu falo para o Rafael que ele é a cota, né? (risos) Ele é único homem e é branco. O Rafa é o cara que era da confiança extrema da minha irmã. É um cara de projetos. Então, hoje ele está à frente da construção de projetos com a gente. O Instituto, na verdade, funciona assim: tem um conselho político composto por 10 pessoas, sete mulheres negras e três homens, que a gente consulta mensalmente. Aí meus pais, a Luyara e eu formamos o conselho familiar, sendo que eu respondo judicialmente como diretora. E tem uma equipe que é a Marcele, Luna e o Rafa. Então, a frente mesmo que está no dia a dia do batente somos nós quatro.

E, para você, qual a importância de investir nessas mulheres que estão desenvolvendo projetos, como vocês estão no Instituto Marielle? O que muda na sociedade quando a gente passa a colocar dinheiro na mão dessas mulheres para que elas tenham apoio para desenvolver seus projetos?

Eu acho que as mulheres negras, de fato, como diz Angela Davis, movem as estruturas e fazem esse país rodar. A gente fez uma pesquisa recentemente chamada "Para onde vamos", com mulheres negras ativistas. E ali você vê que as mulheres estudam para caraca, mas que poucas conseguem chegar a lugares de decisão. Acho que é isso que falta, sabe? Bato muito nas minhas postagens sobre isso, sobre fazer esse "black money" girar entre nós, para ajudar a mulher negra a ter visibilidade.

As pessoas às vezes não entendem isso. Enquanto as pessoas não se conscientizarem da importância de investir em mulheres negras, vai ficar complicado. A gente tenta fazer o máximo de coisas, fica pensando em um monte de coisa, de ideia, mas precisa de dinheiro para executar. É óbvio que a movimentação do dinheiro, do capital das mulheres é superimportante. Porque quanto mais projetos como o Instituto surgirem, melhor.

Não adianta só você ser branco e rico e ceder seu perfil nas redes sociais para uma mulher preta. Porque a mulher vai continuar no dia seguinte tendo que batalhar para pagar os boletos, tendo que sustentar a família. Então cede o perfil, mas fala também: 'O que posso fazer para te ajudar? Qual é o trabalho que essa mulher preta faz? Vamos investir nisso?'. É desse tipo de coisa que sinto muita falta.

Anielle Franco

E como tem sido conviver com a força dessas mulheres negras ao seu redor?

Não foi à toa que eu consegui ficar de pé quando mataram a Mari, sabe? Eu só consegui, porque existiu e ainda existe um movimento de mulheres negras para me dar suporte. Por exemplo, a Lúcia Xavier, da ONG Criola, foi uma mãezona para mim e até para minha mãe. Ela veio à nossa casa e nos ajudou demais. Ela mostrou vários caminhos que a gente não conhecia. O movimento de mulheres negras no geral veio e acolheu a gente, essas mulheres nos mostraram que a gente não estava sozinha e que a gente ia caminhar juntas. Tem toda uma construção coletiva para eu estar onde estou, inclusive sabendo que a gente ainda vai mais longe.

Hoje no Instituto vocês têm ideias, objetivos e ações estabelecidas, mas também têm uma imagem inspiracional muito forte, especialmente para meninas negras. Você acha que o Instituto e todas as mulheres envolvidas com ele pode ser de alguma forma um norte para a gente se espelhar e conseguir encontrar novos caminhos como sociedade?

Eu espero que sim. De coração. Tenho muito esse sonho de construir um centro de memória para a Mari para que as pessoas vejam que ela não foi só a vereadora. Uma coisa que eu gosto muito de falar é que todo mundo pergunta: "Quem mandou matar Marielle Franco?" Mas quem foi Marielle Franco? Vocês sabem? Sabem quem foi a pessoa que morreu? Eu hoje penso que o meu objetivo de vida é falar sobre essa mulher que morreu. Claro, a investigação da morte dela, saber quem matou, isso tudo é fundamental também. Mas eu quero contar para as pessoas quem foi a Marielle também.

O meu foco é fazer com que o Instituto possa ser um caminho de união política, sabe? Para quem sabe, um dia, a gente consiga dialogar com o centro, com a direita... De falar que aquilo ali é uma questão muito mais humana do que ideológica, politicamente falando.

Quem sabe um dia a gente consegue construir coisas juntos? É tentar fazer com que as pessoas se inspirem no tipo de política afetuosa que a minha irmã fazia. Porque não adianta, cara, ela era diferente. Não adianta. E vejo hoje o Instituto como uma ponte para vários caminhos mesmo. Para dar inspiração às pessoas, para apontar um possível futuro mais digno, com menos racismo, com mais acesso à população negra, com menos mortes de favelados.

Aliás, as eleições municipais vêm aí, né? A primeira após a morte da Marielle. Vocês pensam em se envolver com alguma articulação? Quais caminhos vocês vão tomar em relação a isso?

Você é a primeira repórter que me pergunta isso, hein? (risos). O nosso ideal não é apoiar campanhas individuais, mas sim apoiar ideias. Fazer com que as pessoas se comprometam a garantir que candidaturas negras tenham mais recursos em todos os lugares, em todas as cidades. Basicamente é isso que a gente vai focar. A gente não vai apoiar uma pessoa individualmente enquanto família, a gente vai apoiar ideias porque é como você falou, é a primeira eleição municipal depois da morte da Mari.

Em 2018, a gente teve muito problema com eleições. As pessoas usarem o nosso nome sem a gente autorizar. Nos usaram enquanto família de Marielle como palanque. Então, a gente quer fazer com que essa plataforma tenha um conjunto de ações e ferramentas para que possamos movimentar essa estrutura do sistema político. É basicamente isso.

Vanessa Freitas/Estúdio Freitas Fotografia Vanessa Freitas/Estúdio Freitas Fotografia

E mudando um pouco de assunto? Você está quase parindo! Como tem sido a experiência de uma gravidez durante uma pandemia, durante toda essa discussão sobre questões raciais que a gente viu nos últimos meses, durante essa crise política?

Já estou no final no final da gravidez. Foi tenso. Eu não vou negar que poder ficar em casa foi bom para descansar. Mas é muito difícil, a gente fica muito na neurose. Vai para o médico fazer um ultrassom e sai de casa parecendo que está indo para uma guerra, né? E o medo de ir para o hospital e voltar para casa com uma recém-nascida, já tendo uma criança de quatro anos em casa?

A cabeça da gente não para. Já refiz a minha mala umas cinco vezes para ver se tem tudo, porque a gente ficar neurótica. Mas é muito difícil. E não tem outra palavra para definir senão punk, sabe? É muito punk está grávida nesse momento. É engraçado porque na primeira vez que engravidei rolou a epidemia do zika. Agora na segunda vez veio a Covid. Eu falei que agora chega, porque se eu engravidar pela terceira vez é capaz do mundo acabar de vez, né? (risos)

Rolou medo de colocar uma criança nesse mundo do jeito que está, então?

Muito! Mas eu sempre tive medo de parir, na verdade. Sempre achei o mundo muito cruel por causa da nossa história de vida mesmo. Por ser favelada, por ser preta. E eu não esperava engravidar agora, né? Eu não planejei direito. Eu falei assim: "vamos tentar, se der três meses e não rolar, já era, a gente não tenta mais." E aí, menina, veio em um mês. Eu parei de tomar anticoncepcional em setembro, em outubro eu engravidei.

Eu só penso que a minha filha vai nascer no mesmo mês do aniversário Marielle. Completo 40 semanas no dia do aniversário da Marielle. Eu não sei se a gravidez vai até lá, mas isso me deu muita força. Para muita gente pode não significar nada, mas para mim é um acalanto de Deus. E mostrando o ciclo da vida né? Eu nunca tinha passado por uma perda tão grande, nunca perdi alguém tão próximo. A Mari, infelizmente, foi a primeira.

E essa gravidez, ganhar um novo ser, uma nova esperança, uma renovação... Espero que ela traga muita paz e alegria para a minha família, porque minha mãe ainda é muito abalada com tudo isso. Essa gravidez traz um sopro de esperança, de dias melhores para gente, sabe?

Eu sei que está muito difícil, mas ao mesmo tempo não perco a esperança de dias melhores para mim, para minha família, para você, para todo mundo que acredita em um futuro melhor, mais justo e mais honesto para todos.

Eu nunca perdi a esperança de nada. Estamos vivendo um momento muito difícil, de muito ódio, de falta de valores... Assistimos a um povo, uma galera muito louca que não se cuida, que não está nem aí, que não tem empatia, mas prefiro manter dentro de mim a esperança viva porque aí me impulsiona a lutar e a seguir. É isso que tiro de tudo isso, dessa loucura desse mundo doente.

Anielle Franco

Eloah veio ao mundo na madrugada da última sexta-feira (17), dez dias antes do aniversário de Marielle Franco. O parto normal foi a jato. Anielle deu entrada na maternidade às 0h40 e deu luz às 2h51 com direito a pizza no meio do caminho. Mãe e bebê passam bem.

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