Economia circular

Recordista mundial quer acabar com poluição plástica e avisa: PIB cairá 25% se não pararmos a crise climática

Lia Hama Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Martin Allen/Divulgação

No dia 2 de março deste ano, representantes de 175 países reunidos em Nairóbi, no Quênia, concordaram em iniciar as negociações para o primeiro acordo global contra a poluição plástica, apontado como o tratado ambiental mais importante desde o Acordo de Paris de 2015. "É uma decisão para entrar nos livros de história", declarou Espen Barth Eide, ministro norueguês para o Clima e presidente da Assembleia da ONU para o Meio Ambiente.

Por trás dos esforços para a criação do tratado histórico está uma velejadora britânica de 46 anos que, em 2005, bateu o recorde mundial de circum-navegação solitária e sem paradas pelo globo terrestre. Após passar 71 dias e 14 horas com escassez de comida, água potável e combustível no barco, a navegadora se deu conta de que a limitação ocorre em todo o planeta e, portanto, os recursos naturais devem ser melhor utilizados, evitando desperdício. "Está claro que a extração indiscriminada para produzir bens descartáveis não é sustentável no longo prazo. É urgente uma mudança sistêmica", defende a navegadora recordista que foi condecorada com o título de "dama" pela rainha Elizabeth 2ª.

Em 2010, ela criou a Fundação Ellen MacArthur, cuja missão é acelerar a transição global de uma economia linear (que extrai recursos naturais, produz itens de curta duração e os joga prfora) para uma economia circular, que é regenerativa e reutiliza materiais a fim de evitar o descarte.

Em parceria com a ONU Meio Ambiente, a fundação sediada no Reino Unido lidera o Compromisso Global por uma Nova Economia do Plástico, pacto que reúne governos, empresas e organizações do terceiro setor em torno do objetivo de criar uma economia circular do insumo. Os mais de 500 signatários incluem gigantes como Unilever, Danone e Coca-Cola e são responsáveis por 20% das embalagens plásticas do planeta.

Em entrevista a Ecoa, Ellen fala sobre sua trajetória, o impacto da pandemia no aumento da poluição plástica e a oportunidade do agronegócio brasileiro se engajar numa economia que seja mais próspera e regenerativa.

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O plástico e o mar

Ecoa - Você teve uma carreira bem-sucedida como velejadora, vencendo competições e quebrando recordes mundiais. Em que momento decidiu se engajar na causa ambiental?

Ellen MacArthur - Achei que fosse velejar até morrer, era tudo o que eu sonhava fazer desde a primeira vez em que entrei num barco aos 4 anos de idade. Mas quando você faz viagens de volta ao mundo como as que eu fiz, desenvolve uma visão clara sobre a finitude dos recursos. A comida, a água que você bebe, o combustível, tudo é limitado. Quando quebrei o recorde [de pessoa mais rápida a dar a volta ao mundo solo sem paradas em um veleiro] em 2005, comecei a refletir que essa limitação também ocorre na economia global. Passei três anos dedicada a estudar e conversar com especialistas sobre o funcionamento da nossa economia e como usamos seus recursos. Passei a focar 100% da minha atenção nisso e, em 2010, criei a fundação.

A que conclusão você chegou?

Hoje temos uma economia linear, que extrai recursos da natureza, os utiliza para produção e esse produto é descartado em pouco tempo. Esse modelo não é sustentável no longo prazo, já que o suprimento é finito e estamos consumindo muito e de maneira muito rápida. É preciso redesenhar os produtos para que funcionem de forma circular. O sistema linear é resultado da Revolução Industrial. Ele funcionou bem no início, mas com o crescimento da população e do consumo global tornou-se problemático.

Qual é a saída para um modelo mais sustentável?

A linha reta do sistema linear pode fazer uma curva, formando um círculo, onde temos uma economia que elimina o desperdício e a poluição, os produtos têm a maior duração possível e, mais importante, os sistemas são regenerativos. Trata-se de regenerar a natureza e não de degradá-la. Quanto mais rápido fizermos essa transição, melhor.

De onde vem a inspiração para uma economia circular?

Há muitas escolas de pensamento que levam a essa ideia, como a biomimética [ciência que observa e estuda os processos da natureza como inspiração para soluções do cotidiano] proposta pela bióloga americana Janine Benyus e a filosofia do design "cradle to cradle" ["do berço ao berço", do arquiteto americano William McDonough e do químico alemão Michael Braungart, que defendem sistemas cíclicos de produção]. Li muitos livros a respeito e mantenho contato com Janine.

Qual foi a principal contribuição da Fundação Ellen MacArthur para esse debate?

Foi apontar para a racionalidade econômica desse modelo. Fizemos a seguinte pergunta: se a ideia de um sistema circular faz sentido e pode ser entendida tanto por uma criança como pelo presidente de uma empresa, será que ela funciona do ponto de vista econômico? Os relatórios que produzimos apontam que sim e esse foi o ponto crucial para conseguirmos adesão.

Em outubro do ano passado, participei de um debate com Philipp Hildebrand, vice-presidente da Black Rock, maior gestora de ativos do mundo. Ele disse que, nas próximas duas décadas, o PIB mundial vai contrair 25% porque o atual modelo econômico não enfrenta os maiores desafios globais, incluindo a crise climática. É urgente mudar esse sistema.

Ellen MacArthur, Velejadora e ativista pela economia circular

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Lucro limpo

Por que a fundação escolheu focar as ações no combate à poluição plástica?

Em 2015, quando escolhemos trabalhar com plástico, ninguém dava bola para isso, mas achamos importante porque há muita perda do insumo que acaba poluindo o meio ambiente, em especial, os oceanos. Fomos pesquisar a situação globalmente e produzimos um relatório sobre como são produzidas as 78 milhões de toneladas de embalagens plásticas por ano, como são descartadas e o quanto é reciclado. As estatísticas são estarrecedoras: apenas 2% do material é adequado para reuso. O relatório teve ampla repercussão quando foi lançado em janeiro de 2016 no Fórum Econômico Mundial em Davos e o assunto entrou em pauta.

Qual a importância de envolver as empresas no enfrentamento dessa questão?

É fundamental. Esse relatório de 2016 foi feito com a colaboração das empresas parceiras. Quando vieram os resultados, falamos: "E agora, o que fazemos?". Sentamos juntos na mesa e decidimos criar um mapa de ação. A conclusão é que temos que eliminar todo o plástico de que não necessitamos. Temos que inovar no tipo de plástico que produzimos de forma que dure o maior tempo possível e seja reciclável. O design tem papel fundamental nisso. Muitas embalagens não foram desenhadas para serem recicladas. Temos que criar um sistema de coleta dentro do qual o plástico circule para evitar que uma garrafa reciclável vá parar no oceano.

Quais foram os resultados desse grupo de trabalho?

Em parceria com a ONU Meio Ambiente, criamos o Compromisso Global por uma Nova Economia do Plástico, que obteve a adesão de 20% da indústria global de embalagens plásticas. Observamos um aumento anual de 22% de conteúdo reciclado das embalagens plásticas. São dados significativos, mas falta engajar os 80% restantes do setor, incluindo os pequenos fabricantes. É preciso avançar para um pacto global que permita que o sistema como um todo mude.

Que países estão fazendo um bom trabalho na direção de uma economia circular?

Hoje as decisões europeias levam em conta o conceito de economia circular. Isso só foi possível porque nossas empresas parceiras convenceram a Comissão Europeia de que a economia circular não é apenas um papo de ambientalistas, mas é importante para aumentar os lucros e a competitividade. Esse foi o ponto-chave para a adesão ao conceito. Outras regiões como o Chile também têm feito um bom trabalho nessa direção.

Que empresas são exemplos de inovação nessa área?

Há exemplos tantos de pequenas como de grandes empresas. Algumas são muito inspiradoras, como a Apeel, uma startup americana que criou um spray para borrifar em frutas e legumes e, com isso, prolongar o tempo de consumo deles. Você come a fruta com a película vegetal pois é feita de material não tóxico. Com isso, combate o desperdício de alimentos e a poluição causada por embalagens plásticas desnecessárias. É um enorme sucesso. Outro exemplo muito bem-sucedido é a The RealReal, uma plataforma que movimenta milhões de dólares revendendo roupas de luxo e as mantendo em circulação por muito tempo. Entre as grandes companhias, a Nespresso tem feito um trabalho exemplar de agricultura regenerativa em suas plantações de café.

Martin Allen/Divulgação Martin Allen/Divulgação

Um ótimo lugar

Como fazer com que países como o Brasil ingressem numa lógica de economia circular?

O agronegócio é enorme no Brasil. O que é produzido nas fazendas brasileiras é comprado por algumas das maiores indústrias do planeta. Se essas companhias atuarem sob a vigência de um tratado juridicamente vinculante que prevê que seus produtos só possam ser fabricados em um sistema regenerativo, isso muda a produção agrícola brasileira. Isso pode ser feito por meio de um acordo global ou por iniciativa das empresas. Essas companhias têm o poder de provocar mudanças em escala gigantesca. Se exigirem boas práticas dos fornecedores, a situação muda.

Qual foi o impacto da pandemia no aumento da poluição plástica em todo mundo?

Não tenho números específicos, mas é claro que o pânico levou a uma produção desenfreada de máscaras e outros equipamentos de proteção de uso único, o que teve impacto negativo em termos de poluição plástica. Isso só reforça o fato de que é preciso redesenhar o sistema. No começo da pandemia, essa produção foi necessária para proteger as pessoas, mas agora é preciso dar um passo atrás e pensar como fabricar modelos recicláveis.

Houve algum impacto positivo da pandemia?

A pandemia nos mostrou que podemos agir rapidamente quando somos forçados a isso e os governos são capazes de criar pacotes de estímulo quando estão sob pressão. Nos últimos dois anos, vimos avanços sem precedentes em áreas como comércio eletrônico.

Você é otimista em relação ao futuro da humanidade?

Há muitos desafios, mas eu realmente acredito que temos uma oportunidade enorme de fazer a coisa certa. Não é impossível, sabemos muito do que deve ser feito e essa mudança será guiada pela economia. Quando a economia global for regenerativa, o mundo então será um lugar ótimo para se viver.

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