Uma arara só não faz verão

Com ajuda de um xeque do Qatar, ararinhas-azuis, que estavam extintas na natureza, ressuscitaram na caatinga

Pâmela Carbonari Colaboração para Ecoa, de Florianópolis (SC) ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.

Cerca de um terço dos 35 mil habitantes de Curaçá, na divisa da Bahia com Pernambuco, não tinha nascido ou era jovem demais para se lembrar da época em que o município tinha a bela e estridente companhia das ararinhas-azuis. Em 11 de junho deste ano, oito exemplares do psitacídeo foram soltos no céu da cidade baiana - um enorme avanço para uma espécie que respirava por aparelhos, extinta na natureza havia mais de 20 anos.

Foi uma grande vitória também para todas as partes envolvidas, entidades públicas e privadas, comunidades locais e entusiastas da causa do outro lado do mundo. "Projeto de conservação não é de um ou dois anos, ele precisa de 20, 30 anos, para colhermos bons frutos", diz a médica veterinária e analista ambiental Camile Lugarini, coordenadora do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ararinha-Azul, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

É uma história que começou em 1990, quando o Ibama criou um comitê para a preservação da espécie, após descobrir que havia somente três indivíduos selvagens restantes. A destruição das matas de galeria às margens do rio São Francisco e o comércio ilegal dizimaram a espécie.

A iniciativa não foi suficiente, e dez anos depois a ararinha-azul foi decretada extinta na natureza. Desde 2007, o ICMBio coordena o esforço para tentar reintroduzir a ave - apesar de ter desaparecido da natureza, ela ainda existia em cativeiro.

ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.  ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.

Um xeque das araras

É aí que entra a Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), ONG alemã que, como o nome diz, luta para preservar papagaios, periquitos e afins ameaçados de extinção em diversas partes do globo. A ONG se tornou parceira essencial do ICMBio, porque, em dado momento, 90% de todas as ararinhas-azuis do mundo, ave exclusiva desse pedaço da caatinga, entre os município de Petrolina (PE) e Curaçá (BA), viviam em um zoológico privado no norte da Alemanha.

A ACTP, segundo uma reportagem do jornal britânico "The Guardian", está envolvida em uma lista de controvérsias que inclui tentativas de venda de animais importados pela ONG. Mas, sem a cooperação dela, seria difícil conseguir alguma coisa. "Para que esses colecionadores contribuíssem, era preciso uma sensibilização", diz Lugarini. "Estar ligado a um projeto de conservação é status também. É o caso do xeque Saud bin Muhammed Al Thani, que era um apaixonado por animais. Ele realmente contribuiu, fez as melhores instalações, tinha os melhores profissionais."

Morto em 2014, o xeque qatari (pessoa que nasce no Qatar) foi um dos responsáveis pela preservação da ararinha-azul, ao investir na criação de cativeiro. Quando ele morreu, a ACTP adquiriu as ararinhas e os profissionais envolvidos no projeto. Assim, uma ave única, natural do único bioma exclusivamente brasileiro, se mudou de Doha para Berlim.

Não que fossem os únicos espécimes. Há colecionadores em outros lugares, como na Suíça, mas eles não quiseram participar. "Tudo depende muito dessa articulação com empreendedores", enfatiza Lugarini.

ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.  ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.

Carga viva

Em março de 2020, 50 exemplares vieram direto da Alemanha para Petrolina (PE), cujo aeroporto jamais havia recebido carga viva. Infraero e Receita Federal se envolveram, e as aves passaram um período de quarentena na unidade de conservação criada em Curaçá no ano anterior especificamente para as ararinhas.

Infelizmente, todo o resto do mundo também entrou em quarentena naquele mês, com o início da pandemia, o que acabou atrasando o projeto.

A esperança de que um dia as ararinhas voltariam foi esfriando. Permaneceu a sensação de que elas talvez nunca voltassem ao nosso sertão.

Antony Pietro Martins, brigadista e integrante do projeto desde 2021

Antony Pietro, 20 anos, é um dos representantes da comunidade local envolvidos diretamente na reintegração da ararinha-azul. Ele cumpre uma série de atividades, de limpeza de aviários a preparo do ambiente em que elas serão reintroduzidas. Produz caixas-ninhos, instala cintas de zinco em árvores (o que dificulta a escalada de potenciais predadores) e monitora o comportamento das ararinhas em cativeiro e introduzidas.

Para Lugarini, a participação da comunidade é essencial. "Isso faz com o que o programa tenha uma continuidade. Hoje estou lá, amanhã não estou. Eles precisam se apropriar, depende deles", diz. Por isso, há contratos de até dois anos para agentes temporários ambientais, voltados a pessoas da região. Sem o envolvimento da população, tudo ficaria mais difícil.

Arquivo Pessoal
Adonai Martins, 76, pai de Pedro e avô de Antony, foi um "vaqueiro da ararinha-azul"

Vaqueiro da ararinha-azul

A soltura dos espécimes na natureza parecia uma vitória, mas era só mais uma batalha na guerra pela vida das ararinhas. O trabalho é constante, pois é preciso continuar aumentando o número de ararinhas em cativeiro para que haja variabilidade genética. Além disso, as aves soltas na natureza devem ser acompanhadas, elas precisam aprender a viver por conta própria, o que demanda esforço e dedicação.

Antony sabe bem o que significa esse acompanhamento. Seu pai e seu avô são veteranos da luta pela ararinha-azul. Pedro Martins, agricultor, 54 anos, trabalhou na construção do primeiro aviário dedicado à espécie, em meados dos anos 1990. "Fui servente na época, trabalhei junto com meu pai. Meu filho é um orgulho. Um jovem como ele, se dedicando para a conservação de um animal que já foi extinto da natureza, é raro de se ver", diz.

Adonai Martins, 76, pai de Pedro e avô de Antony, foi um "vaqueiro da ararinha-azul", como eram chamados aqueles que monitoravam, a cavalo, as aves nos leitos dos riachos. "Participei ativamente antes e, hoje, se puder, participarei. Quando uma ararinha-azul se perder, caso eu ouça ou veja, comunicarei às equipes responsáveis, porque sei que posso ajudar."

ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.  ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.

Da Alemanha para Hollywood

A ararinha-azul foi registrada pela primeira vez no século 19 pelo alemão Johann von Spix, um dos maiores naturalistas de sua época. Ele foi homenageado no nome científico e no nome popular da ave em alguns idiomas. No alemão, francês, espanhol e inglês, por exemplo, ela se chama "arara-de-spix". Quase 200 anos depois, o carioca Carlos Saldanha a deixou muito mais famosa, com a animação "Rio", protagonizada por Blu, uma ararinha-azul.

De uma expedição científica austríaca a Hollywood, a ararinha-azul mostrou que é desses casos de animais com vocação de "celebridade internacional", com carisma o suficiente para atrair lideranças da iniciativa privada, do poder público, cientistas e ambientalistas por uma causa.

Trabalhando em conjunto, nós poderemos resgatar a caatinga e reverter a imagem de uma área seca, morta e devastada. Acho que poderemos transformar ela em algo mais verde, reflorestado e cheio de locais bonitos para se apreciar

Antony Pietro Martins, brigadista e integrante do projeto desde 2021

Apenas entre as aves, a União Internacional para a Conservação da Natureza lista mais de 160 espécies extintas ou extintas na natureza. Poucas têm a atenção reservada à ave que mobilizou três gerações da família Martins, bem como tantos moradores de Curaçá e Juazeiro, e que agora quer retomar seu espaço natural. Se tudo der certo, esse pedacinho de caatinga vai ficar mais azul.

ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V. ACTP e.V. ? Association for the Conservation of Threatened Parrots e.V.

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