Os pássaros

Ave fantasma vira símbolo de luta contra construção de um centro logístico próximo a cidade histórica de SP

Marcos Candido (texto), André Porto (fotos) e Doug Firmino (arte) De Ecoa, em Paranapiacaba (SP)

O urutau é um pássaro peculiar. Seus olhos são completamente pretos ou amarelos e esbugalhados, mas ele também enxerga com os olhos fechados por uma fina membrana. A boca lembra um fantoche, com um pequeno bico parecido com o de uma coruja. Ele tem uma das camuflagens mais impressionantes do reino animal: predadores e humanos leigos demoram a vê-lo disfarçado de tronco de árvore.

Quando cai a noite, o canto do urutau lembra uma flauta e um choro humano. O som pode parecer assustador na escuridão. Há muitas lendas sobre o urutau. Desta vez, porém, ele está em uma história bem realista.

Desde 2018, a construção de um centro logístico a 4 km da vila de Paranapiacaba, em Santo André (SP), é questionada na Justiça e no município. O projeto inicial calculava a retirada de uma área equivalente a 92 campos de futebol de vegetação de Mata Atlântica.

Para moradores e ambientalistas, a obra levaria poluição, barulho e acidentes para um local com denso nevoeiro da Serra do Mar, próximo a áreas de conservação, rios e com patrimônio histórico e turístico. Na versão da empresa, criaria 600 empregos e usaria o trem para diminuir o uso da rodovia.

O urutau foi eleito símbolo do grupo contrário à instalação do "Porto seco". "A destruição do espaço gera um desequilíbrio: uma espécie de uma região próxima pode disputar alimentos e espaço com o urutau e causar efeito negativo em todas as espécies", diz o biólogo Miguel Malta Magro, do SOS Paranapiacaba.

Paranapiacaba é uma vila ferroviária erguida por ingleses a partir de 1867, a 769 metros do nível do mar. No distrito, existem rios, áreas de proteção ambiental, reservas, parques e trilhas com nascentes, cachoeiras e milhares de hectares de Mata Atlântica.

A natureza densa, misturada com a arquitetura histórica dos trens, das casas e dos morros verdes, criou uma cultura própria entre moradores em um cenário que parece saído de uma ficção.

Quase todo dia, surge o "Véu da Noiva" em Paranapiacaba: o nome é dado para o nevoeiro que encobre a vila e impede de se enxergar poucos metros à frente. De acordo com a lenda da região, o nevoeiro é o véu de uma noiva que se matou na ferrovia após ser abandonada no altar.

A ferrovia faz parte da história da região. Em Paranapiacaba, foi criado um sistema funicular, um tipo de elevador com vagões para subidas íngremes, para transporte de café, açúcar e carga entre Jundiaí, no interior, até Cubatão, cidade a caminho do porto de Santos.

O funicular foi desativado a partir dos anos 1970 e Paranapiacaba definhou. Nos anos 2000, a vila ressurgiu focada no turismo após ser comprada da União pelo município de Santo André.

Desde então, famílias, historiadores, ciclistas, grupos esotéricos e biólogos viraram personagens da vila, cada um na busca de sua experiência preferida. São 250 mil turistas por ano, de acordo com a prefeitura, e os imóveis são tombados como patrimônio histórico.

O projeto "Porto Seco Campo Grande" seria construído a cerca de 5 km de Paranapiacaba, no caminho para a vila histórica, onde iria desembarcar e embarcar carga trazida pelo trem. O projeto dividiu moradores e ambientalistas.

Para ambientalistas, o porto seco ameaça a existência de aves como o tico-tico-do-banhado e o peculiar urutau, que vive em Paranapiacaba para se reproduzir antes de migrar para a Amazônia. Na Justiça, o grupo argumenta que o projeto desrespeita a zona turística do distrito e o plano diretor, interfere em áreas de proteção ambiental e não incentiva o turismo ecológico.

Parte dos locais defende a ideia. Zilda Maria Bergamini, dona do bar da Zilda, acredita que o centro logístico iria gerar empregos, mas diz que seria a "primeira a ser contra" caso seja constatado risco ambiental.

"Eu vivo de porta em porta levando cesta básica", diz. "Uma das vantagens do centro é o emprego". Por outro lado, afirma que a própria filha, ambientalista, é contra o projeto. "A pior ameaça da região é a fome".

Para a dona de pousada Zélia Maria Paralego, 70, o projeto causaria acidentes devido à neblina e tiraria a qualidade de vida da região. "Qualquer pessoa com bom senso é contra a obra", diz a filha de uma antiga família ferroviária de Paranapiacaba. "Para mim, é um empreendimento imobiliário. E se passar o boi, passa a boiada".

Há também os indecisos. "Quando falam de emprego, eu acho bom. Quando falam sobre desmatamento, sou contra", diz Gustavo Navarro, 24.

O local onde habita o urutau também tem histórias fantásticas, que parecem remeter a lendas. Apesar de apenas 700 moradores, a região sempre esteve no meio de feitos grandiosos no território.

Antes dos ingleses, Paranapiacaba era um ponto de passagem de uma complexa rota indígena em busca da terra do Sol, que passava pela futura cidade de São Paulo, conectando-se à rota Peabiru até Cusco, no Peru, e, de lá, chegando ao oceano Pacífico, segundo um documentário de 2021 sobre a região.

Os colonizadores usaram a mesma rota para façanhas diversas e as chamavam genericamente de "Caminho dos Tupiniquins". Muitos a seguiam em busca da cidade mística de Eldorado ou apenas em busca de terra e poder, deixando árvores pelo caminho e inaugurando rotas para o centro do Brasil.

Em 1856, o Barão de Mauá se uniu a ingleses para criar a São Paulo Railway Co. e construir uma ferrovia improvável, capaz de superar os mais de 700 metros de declive da Serra do Mar. Era preciso um lugar para a moradia dos operários.

Aos poucos, foi surgindo Paranapiacaba, e a linha ferroviária tomou forma quando São Paulo enriqueceu a partir de 1900. Depois, com o avanço das grandes rodovias, as ferrovias perderam o protagonismo econômico e o interesse dos grandes barões do dinheiro.

"A história não começa há 500 anos. Aqui é uma história com milhares de anos", defende Raquel Varela, ativista do Movimento em Defesa da Vida do Grande ABC. Segundo ela, a obra ameaça nascentes de rios, como o rio Grande e Mogi, e desvaloriza o patrimônio histórico da vila. "É aqui que se gera água", diz.

Segundo Jael Rawet, dono do terreno, o centro logístico serviria para receber parte da carga ainda transportada pela linha férrea. Nos planos dele, apenas 17% da área total seria usada para a construção e o restante transformado em uma reserva.

Rawet ainda não sabe a quantidade de carga absorvida pelo espaço, nem qual seria o modelo de reserva particular a ser adotado. O número de empregos, diz, caiu pela metade do inicial com a exclusão de uma gleba e prevê 600 vagas.

Para ele, haveria trânsito de caminhões para suprir o plano de expansão total da obra em até 15 anos, a depender da demanda. "Existem agentes que por vontade política ou por afiliação veem as coisas sempre de uma maneira negativa", diz.

O processo se arrasta pelos tribunais e na Câmara dos Vereadores de Santo André desde 2018. Ainda está em fase de licenciamento pelo órgão ambiental do estado, a Cetesb, sem prazo para ser analisado.

Em fevereiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou recursos para a continuidade do projeto, que estava paralisado após decisão judicial. A expectativa é que o caso vá para no Supremo Tribunal Federal, em Brasília.

Um grupo também criou outra maneira propositiva de reivindicar o espaço verde da região: observar os pássaros de Paranapiadcaba. É uma forma de protesto contra o Porto Seco a partir do registro da fauna que voa por ali. A expedição é liderada pelo biólogo e professor Miguel Malta, conhecedor de mais de mil cantos de pássaros da Mata Atlântica.

Em uma caminhada breve, Miguel identificou 21 aves na região do empreendimento. Ele as atrai com uma caixa de som bluetooth que os imita. "Há dois anos eu visito um casal de tico-tico por aqui", diz, enquanto os chama por meio do aparelho. Após alguns minutos, o casal realmente aparece, como num conto de fadas. "Pensei que vocês iriam me deixar na mão", ele diz.

Às vezes, Miguel percorre as estradas à noite para registrar o comportamento noturno das espécies. Entre elas, o urutau, também chamado de mãe da Lua ou ave fantasma. Além do olho mágico, a espécie chama atenção por botar apenas um ovo, que é chocado sempre na ponta de um único tronco quebrado.

Na crença popular, a ave é vista como sinal de mau agouro, devido ao canto e associada à aparição do Curupira. "Parece um fantasma!", diz Miguel. "Muita gente tem preconceito e mata o urutau", acrescenta. O grupo SOS Paranapiacaba escolheu a ave como símbolo de sua luta pela capacidade de resistir aos perigos e aos predadores nas florestas espalhadas pelo Brasil.

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