BENEDITA E ANTÔNIO

Casados há 30 anos, o ator e a política pioneiros descobriram outro detalhe para partilhar: a origem na África

Beatriz Mazzei Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

Casados há mais de 30 anos, Antônio Pitanga, 82, e Benedita da Silva, 79, remontaram cada um à sua maneira as trajetórias de parentes que viveram a escravidão. Ele, neto de escravizados, juntou as peças de seu quebra-cabeças ancestral por conta própria. Ela, bisneta de cativos, cresceu ouvindo as histórias dentro de casa. Nunca souberam, porém, de que lugar do mundo essas pessoas saíram.

Agora, eles descobriram que possuem mais em comum do que a vida partilhada. Após toparem realizar testes de DNA, descobriram que seus antepassados têm países da África como origem, sendo Angola o mais presente deles.

Antes disso, os dois já tinham uma vida de pioneirismo. De um lado, ele é um dos primeiros negros a fazer história nas telonas brasileiras, ícone do movimento Cinema Novo. Do outro, ela foi a primeira mulher negra a ser eleita senadora do Brasil. Juntos, contam mais de 80 filmes, cinco mandatos, uma família numerosa, além de respeito e admiração um pelo outro. Fora os muitos planos em suas áreas, querem reunir todos para um papo sobre o que descobriram com a experiência.

A nossa relação é bonita, porque cada um tem a sua história, que no fim é a mesma, como se fossem fragmentos encaixados. Ela é política e eu, artista. Nossa estrada foi construída com lágrima, choro, sorriso, alegria e com ajuntamento. Para mim, é um dos mais belos encontros: duas histórias que se unem em uma só
Antônio Pitanga

Identidade apagada no açoite

Nascido em 1939 no Pelourinho, bairro de Salvador (BA), Antônio Luiz Sampaio foi batizado na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. O "Pitanga" só veio depois, quando decidiu adotar a alcunha que dava nome ao seu emblemático personagem no filme "Bahia de Todos os Santos", de 1960. Os filhos Camila, 44, e Rocco, 41, receberam o sobrenome oficialmente.

Os batuques, comuns nas missas da igreja de seu batizado, conectam-no diretamente com seus antepassados: 79% da sua composição genética é da África, principalmente da região Norte e Centro-Oeste, com predominância dos países Benin e Angola. Os restantes 20% vêm de países europeus, como Portugal, Espanha e Malta.

Sobre as origens africanas, ouviu pouca coisa. A respeito das europeias, menos ainda. Neto de negros escravizados, Antônio não conheceu os avós nem foi próximo do pai, que não participou de sua criação. Já a mãe, Maria da Natividade, que cuidou dele e dos três irmãos, não tinha tempo para memórias.

Minha mãe não falava muito sobre o passado da família, até porque era trabalhadora doméstica 24 horas por dia. Ela devia ter parentes que nem conhecia porque eles eram vendidos. Eu não tenho uma linhagem. Sou descendente daqueles 4 milhões de negros jogados ao mar. Todas as referências de identidade foram apagadas por conta do açoite

Baobá, capoeira e os sabores da memória

Antônio chama a mãe carinhosamente de Baobá, a árvore de grande porte natural da África, principalmente de Senegal e Madagascar, que virou símbolo de força e resistência.

Como ela e os filhos moravam na casa dos patrões da mãe no Largo Dois de Julho, no centro de Salvador, os irmãos tiveram uma infância pobre, mas com comida no prato. Dessa época, Antônio lembra da fruta-pão brotando no quintal e do café da manhã farto (banana da terra frita, batata doce, aipim, carne de sol e farinha).

Só soube mais tarde que os sabores, típicos da culinária africana, também eram ancestrais. Ele atribui a seus 16% de material genético angolano a origem de outra de suas paixões: a capoeira, ensinada pelo mestre Pastinha, grande nome da Capoeira Angola em Salvador e no Brasil.

Depois do colégio interno, Antônio trabalhou em um telégrafo. Queria dinheiro para estudar em um colégio particular frequentado por nomes ilustres, caso do poeta Castro Alves. Observador, exímio contador de histórias e, sobretudo, curioso, foi espiando pela fresta de um clube de teatro em Salvador que encontrou sua vocação.

Atuou em clássicos, como "A Grande Feira", de 1961; "Barravento", de 1962, e "Câncer", de 1972, ambos dirigidos por Glauber Rocha; "Ganga Zumba", de Cacá Diegues, de 1964. Na época, o ex-estudante da Universidade Federal da Bahia participou do movimento estudantil, que fazia resistência à ditadura no Rio de Janeiro, onde passou a viver por causa da profissão. Enquanto amigos foram presos ou se exilaram na Europa, Antônio escolheu aos 23 anos outro caminho. Aproveitou a fama mundial do primeiro longa de Glauber para ir a um festival na África.

No tour de dois anos por destinos do Norte e Centro-Oeste da África, como o Benin, sentiu uma forte conexão pela culinária, a música, os instrumentos, a língua e até mesmo pela altura das pessoas, próxima do seu 1,75 m.

Na Bahia, existe uma representatividade nagô muito forte. Quando eu saí daquela região da África, em que as pessoas falam iorubá, eu sabia que tinha vindo daquela de lá. Agora, décadas depois, com o advento da tecnologia, eu faço um teste de DNA que comprova isso. Bateu com o que eu senti na pele visitando o país

Os contos da escravidão

Diferentemente de Antônio, Benedita da Silva cresceu ouvindo as histórias dos antepassados narrados pela bisavó Rosa, escravizada na cidade Leopoldina, em Minas Gerais, terra natal da família.

Os contos da escravidão me marcaram. Eu não li nos livros, era ela que me contava quando eu era criança. Ela dizia que eles apanhavam, e eu perguntava: "cadê as marcas?". Mas ela tinha poucas. Foi da leva de escravas que amamentavam o filho do senhor.

Pelas histórias da bisavó Rosa, soube que, por serem bonitas, as mulheres da família eram selecionadas para entrar para servir a família na Casa Grande. Além de serem amas de leite, eram exploradas sexualmente pelos senhores.

Tempos depois, fui entender isso como estupro. Com ela, aprendi sobre a lenda da manga com leite. Na verdade, não fazia mal, mas as mulheres dos senhores diziam isso para os filhos das escravas não beberem. Enquanto isso, algumas das escravas carregavam no ventre o filho do senhorzinho e não podiam falar. Era muita atrocidade.

Benedita da Silva, deputada federal (PT-RJ)

Frango com arroz

Nascida em abril de 1942 no Rio de Janeiro, Benedita foi a penúltima dos 15 filhos — 13 mineiros e os 2 últimos cariocas. Seu pai, José Tobias de Sousa, era pedreiro, e a mãe, Maria da Conceição, lavadeira. Foi criada na favela do Chapéu Mangueira rodeada de familiares, principalmente as mulheres negras, com os mais diversos traços e corpos. Desta pluralidade, lembra a beleza da mãe.

"Era uma mistura muito grande. Algumas eram altas, tipo as senegalesas, outras mais baixinhas, como as angolanas. Minha mãe ficou no meio: muito bonita e dona de um cabelo invejável. Tinha uma cinturinha fina, a gente chamava de violão", conta.

O teste de DNA deu corpo às especulações, pois revelou que 95% do material genético de Benedita vem do continente africano, majoritariamente da parte Oeste e Centro-Leste, principalmente Angola (71%) e Gabão (11%). A ascendência europeia também está lá, em cerca de 4%, proveniente da Bulgária.

"O teste me surpreendeu porque eu não sabia de quais lugares da África minha família veio. Eu via uma similaridade dos perfis, mas não tinha certeza. Também me surpreendi com a Bulgária. Eu não podia ser 100% africana?", brinca. Em seguida, diz que gostaria de ir ao país europeu.

Assim como seu marido, Benedita foi à África a trabalho, por ocasião de uma agenda política. Na viagem, foi conquistada pelas pessoas e pela gastronomia. Lembra em especial de um frango com arroz feito na panela de barro por uma trabalhadora doméstica, com quem se comunicou apenas por sorrisos por não falarem a mesma língua.

"Era como o que a minha mãe fazia, mas nunca mais comi um frango igual ao dela. Quando chego à África, sou outra pessoa. Me sinto em casa."

Na passagem por Angola, antes de confirmar que de lá vieram seus antepassados, o que a atraiu foram as igrejas. Evangélica desde os 26 anos, a parlamentar se encantou com os corais, danças e festividades.

De operária a governadora

Para além das histórias da bisavó, Benedita se vê como herdeira direta dos escravizados libertos que, sem ter para onde ir, subiram os morros pelo Brasil afora. Tendo que se virar como dava, começou a trabalhar ainda criança, como empregada doméstica, vendedora ambulante e operária fabril. Mais tarde, foi professora, assistente social e auxiliar de enfermagem.

Atuando como ativista no Chapéu Mangueira, integrou a Associação de Favelas do Estado do Rio. Em 1980, participou da criação do Partido dos Trabalhadores (PT), onde foi pioneira em diversos momentos: primeira mulher negra vereadora do Rio, em 1982; primeira senadora negra do Brasil, em 1994; primeira mulher a governar o Rio, em 2002. Também foi ministra durante o governo Lula. ­­­­­Durante sua carreira política, lutou contra o racismo e as discriminações sociais e de gênero.

Trocaram o tronco por outra coisa, mas o açoite continua o mesmo. Sofisticaram os instrumentos para que as condições escravocratas permanecessem.

Os sonhos de Benedita e Antônio

Antônio e Benedita compartilham a alegria de terem aberto os caminhos para as novas gerações. Mas não só fora de casa. O casal costuma dividir com filhos e netos as dores e delícias de suas trajetórias, para que, assim, possam seguir adiante, como eles seguiram um dia.

"Converso com eles porque, se minha família se aliena, não vai saber de onde veio. Não saberá que em suas veias corre sangue de gente aguerrida, de luta, que supera, que é inteligente", conta Benedita.

Reconhecido pelos amigos e familiares como Griô (a pessoa que detém a tradição oral africana e difunde histórias do seu povo), Antônio leva essa gana para seu trabalho. Prestes a completar 83 anos, está dirigindo um filme sobre a Revolta dos Malês, um dos maiores levantes contra a escravidão e imposição da religião católica, que ocorreu em Salvador, em 1835. Ele diz que mostrar o negro se rebelando reforça a ideia de força e inteligência dos povos africanos.

A parlamentar já planeja reunir a família para contar sobre os resultados do seu teste de DNA e conversar sobre ancestralidade. O resultado do teste gerou ainda um novo sonho: voltar a Angola. Dessa vez, com a certeza de que aquele foi o lar de seus antepassados.

O exame de DNA se popularizou e virou uma ferramenta importante para resgatar e discutir a ancestralidade do povo brasileiro. Em 2021, Tilt propôs, e 20 personalidades negras toparam fazer o teste e olhar para a cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil, na primeira temporada do Projeto Origens. Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim". Agora, em 2022, Ecoa convidou, e três famílias olharam para seu passado a partir das descobertas genéticas. Esta é a segunda temporada do Projeto Origens. Você está no capítulo "BENEDITA E ANTÔNIO". Veja os outros:

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