A desobediência pelo afeto

Atração musical do 1º Prêmio Ecoa, cantora Bia Ferreira quer revolucionar com músicas que ecoam amor

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo (SP) Amanda Cardoso/Divulgação

Ao longo de uma conversa, a cantora Bia Ferreira consegue lembrar de muitos nomes importantes. Todos de pessoas pretas. A maioria delas mulheres, de artistas a poetas, escritoras, filósofas e políticas. Estão na ponta da língua referências como Leci Brandão, Ellen Oléria, Erica Malunguinho e Sueli Carneiro. Faz referência e reverência àquelas que vieram antes, e celebra aquelas que vieram depois.

Foram essas pessoas que construíram quem Bia é como artista, ou melhor, artista politizada, que, para ela, significa ser alguém que entende a necessidade de informar a sociedade sobre temas importantes por meio da música. Sua arte fala de questões sociais, raciais e de gênero, que compartilhará ao vivo por aqui no dia 2, quando assume o palco do 1º Prêmio Ecoa.

Bia estourou com a faixa "Cota Não é Esmola", em que narra sobre a importância do sistema de cotas para o acesso da população negra à universidade. Além das 12 milhões de visualizações no YouTube e quase 2 milhões de plays no Spotify, a música virou leitura obrigatória para o vestibular da UnB (Universidade de Brasília) e chegou a ser citada em outras provas como a da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e a da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

A multi-instrumentista está em estúdio, preparando novo trabalho, sequência para o disco de estreia "Igreja Lesbiteriana, Um Chamado", de 2019. Mas se antes ela usava o termo "artivista" para se descrever como aquela que faz da arte um espaço para exercer seu ativismo político, hoje, aos 28 anos, a mineira criada em Aracaju (SE), prefere ser vista como a "sapatona preta viva que ama".

Amanda Cardoso/Divulgação

O Prêmio Ecoa

O conteúdo de Ecoa, plataforma do UOL, destaca o trabalho de pessoas, empresas, organizações, coletivos, movimentos, redes e projetos que agem para transformar o mundo e a sociedade positivamente.

Para potencializar vozes, impulsionar e dar visibilidade às iniciativas, o Prêmio Ecoa surge homenageando transformadoras e transformadores sociais que estão criando soluções para superar desafios e resolver problemas no campo social, econômico e ambiental, promovendo equidade de raça, de classe e de gênero na sociedade.

A lista de indicados é montada a partir de histórias contadas em reportagens publicadas por aqui e é dividida em cinco categorias: Iniciativas que Inspiram, Empresas que Mudam, Causadores, Fizeram História e Vozes que Ecoam — as duas últimas decididas por voto popular.

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Acho que isso é revolucionário nesse país. O afeto é subestimado, é colocado como fragilidade. Nós não somos ensinados a amar e usar o amor como um ato revolucionário. Precisamos entender o afeto como estratégia de sobrevivência em um país que a cada 23 minutos mata o povo preto e a população LGBTQIA+

Bia Ferreira, cantora

Ecoa - Você é a convidada musical do 1º Prêmio Ecoa, que ocorre no começo de dezembro. O que podemos esperar desse encontro?

Bia Ferreira - O show que eu venho preparando fala muito mais sobre esperança e afeto do que um combate político, como as pessoas estão habituadas a me ver fazendo. Eu estou numa onda de apresentar o afeto como tecnologia de sobrevivência, e a informação como chave de libertação para pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+ que sofrem qualquer tipo de opressão. Então, as pessoas podem esperar muito afeto e mensagem de esperança, mais sobre como a gente se mantém vivo, do que denúncia do que está rolando. Estou num fluxo muito maior de tentar apresentar a solução do que o problema.

Mas o que mudou? O que te motivou a mudar de estratégia?

O que mudou foi: enquanto fazia música de denúncia, eu estava falando de coisas veladas na nossa sociedade. E agora as coisas estão explícitas. É meio que chover no molhado te contar que sofro racismo, ou que tenho dificuldade de pegar um táxi porque as pessoas não querem parar para uma pessoa preta na rua. Isso todo mundo já sabe que acontece.

Amanda Cardoso/Divulgação Amanda Cardoso/Divulgação

Você já se definiu outras vezes como "artivista". O que isso significa para você?

Ser "artivista" é usar da sua popularidade e da sua arte para poder levar informação para o público, levar o questionamento do que está acontecendo na sociedade. Nós temos um lugar de fala diferente da maioria da população, então, é importante usar esse espaço para falar sobre questões importantes como o combate ao racismo, a LGBTfobia...

Por outro lado, o termo "artivista" começou a me deixar em um lugar marginalizado enquanto remuneração do meu trabalho, porque era muito mais comum eu receber convites para shows sem cachê, as pessoas acham que eu tenho a obrigação de falar e me apresentar de graça porque sou ativista.

Tenho abolido um pouco esse termo. Hoje, me coloco como uma artista politizada, que é alguém que entende a necessidade de informar através da minha música.

Então, quais assuntos você quer explorar mais agora com a sua música?

Quero apresentar uma nova realidade falando de afeto como tecnologia de sobrevivência. Agora eu me apresento como uma sapatona preta viva que ama. Acho que isso é revolucionário nesse país. O afeto é subestimado, é colocado como fragilidade. Nós não somos ensinados a amar e usar o amor como um ato revolucionário. Precisamos entender o afeto como estratégia de sobrevivência em um país que a cada 23 minutos mata o povo preto e a população LGBTQIA+. Então, pratique a desobediência civil do afeto!

Divulgação

Você estourou com a música "Cota não é esmola". Acha que as pessoas conseguem entender melhor sobre a importância de assuntos ligados ao racismo, LGBTfobia, por exemplo, por meio da música?

A música é uma ferramenta importantíssima para aprendizagem. A música tem um poder de penetração muito maior no inconsciente das pessoas porque a gente é habituado a isso. Estamos aprendendo desde criancinha pela música.

Quando eu ia para a rampa andar de skate, tentava falar com a galera sobre as coisas que eu tava aprendendo sobre necropolítica, genocídio, por exemplo, e riam de mim: "lá vem a Bia falando aquelas paradas esquisitas nada a ver, mano". Só que quando eu pegava o violão, as pessoas paravam para me ouvir.

Então, quando vejo que "Cota não é esmola" entrou como leitura obrigatória no vestibular da UnB [Universidade de Brasília], esse é o resultado de um trabalho bem feito que atingiu o resultado esperado. O meu trabalho é voltado para educação de pessoas, para levar informação. Você até pode discordar dessa música, mas vai ter que estudar sobre ela se quiser entrar na universidade. Isso, para mim, é ser artivista, é poder pautar esse assunto em um lugar tão importante.

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Aliás, por que você começou a cantar sobre essas questões ligadas a assuntos sociais e raciais? O que te motivou a colocar esses debates no papel?

Tenho muita dificuldade de falar sobre um assunto que eu não vivo. Só escrevo sobre minhas vivências. Vivo de música desde os 16 anos, onde me chamavam, eu ia com meu violão. E não tinha outro lugar para ir naquele momento, enquanto uma adolescente que estava entendendo que a música seria o seu meio de trabalho, entendendo como eu queria me identificar como artista, que não queria ser só mais uma. Queria falar de mim e construir minha verdade.

Minhas canções sempre tiveram cunho político, mas no começo era eu tocando música dos outros. Sabia que quando começasse a cantar "diga não ao genocídio preto!" a galera ia se assustar. Mas quando comecei a participar de eventos como slam, sarau de poesias e esses eventos de rua, foi quando comecei a me empoderar das palavras que eu já estava escrevendo.

Você tem definido seu estilo musical como "MMP (música de mulher preta)", o que isso significa para você?

Eu só dei o nome, mas, na real, tem muita gente que já está há um tempo fazendo isso. Carolina Maria de Jesus estava escrevendo músicas antes mesmo de eu pensar em ser um espermatozoide. Dona Leci Brandão, Elza Soares, Alcione, Jovelina Pérola Negra são mulheres que fazem música de mulher preta há muito tempo. E o que é isso? São mulheres pretas tomando protagonismo da sua própria história e contando a partir de si. Isso é música de mulher preta. Não tem ninguém falando por você, é você mesma ali podendo se representar como mulher preta que é a base dessa pirâmide social. E quando pensamos que essas mulheres conseguem se reerguer e erguer sua voz a partir da sua arte, a partir da música, é música de mulher preta.

Quem te inspira a pensar um mundo melhor?

Preta Rara, Bruna Mara, Luz Ribeiro, Kimani, Mel Duarte, Kelly Estácio, Preta Ferreira, Luciane Dom, Renata Souza, dona Conceição Evaristo, Erica Malunguinho, Ellen Oléria, Carol Daffara, Ryane Leão, Sueli Carneiro, Sueide Kinté, Nara Couto... São mulheres pretas que estão fazendo arte, literatura, que estão se posicionando. Elas me constroem, me fortalecem. Existe essa rede de mulheres que vão me dar colo, que vão fazer minha sopa quando eu estiver mal, que vão me dar conselho de vida. Eu só sou, porque essas mulheres são.

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A arte salva e cura
Fez isso na minha vida
Paz para o espírito, paz para meu íntimo
Sigo no ritmo e não vou parar
De terra coberta, lágrima me rega
Não pede quem espera, porque eu vou germinar
Florescer mais bonita como árvore, vida
Fotossíntese filtra que fica e o que vai
Carbônico entra, a folha sustenta
E quando se aumenta, oxigênio sai
Então eu paro, respiro, penso e filtro
Só fica o que é bem dito, o que for maldito vai
Chuva é alimento
Folhas balançam ao vento
E na mente um mandamento:
Nóis enverga, mas não cai

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