O homem sumiu

Bichos à vontade e guias sem trabalho: turismo sofre, mas prevê "boom" dos destinos de natureza pós-pandemia

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Los Angeles (EUA) Lucas Ramos Mendes/Fazenda San Francisco

No Pantanal, um tamanduá-bandeira perambula pelos quartos de hóspede de uma fazenda que não vê turistas há quase três meses. No Jalapão, cobras raras são vistas se banhando tranquilamente numa cachoeira. E, numa comunidade na Amazônia, mais pássaros sobrevoam as beiradas do rio desde que sumiram as lanchas dos visitantes.

Enquanto os animais parecem mais à vontade com o desaparecimento do homem em alguns pontos turísticos do Brasil, aqueles que ajudam a cuidar do seu habitat e fazer sua divulgação sofrem com o apagão do turismo de natureza.

Vaquinhas online pipocam em diversas redes para ajudar os guias e as comunidades que estão há meses sem trabalhar. Pior, eles tampouco têm previsão de quando poderão voltar a receber gente em suas regiões.

Em meio a uma situação tão desoladora, uma luzinha pisca no fim do túnel: a expectativa do mercado é um tremendo boom nos roteiros de natureza no pós-pandemia, graças às tendências de simplicidade e contemplação do meio ambiente, passeios ao ar livre e destinos selvagens com menos gente.

O desafio será acertar a hora certa de reabertura e voltar com protocolos de segurança que, certamente, diminuirá o acesso às maravilhas dos atrativos naturais brasileiros.

De que mercado estamos falando?

  • Prejuízo

    O turismo é uma das áreas mais afetadas pela pandemia. Desde março, acumula perdas de R$ 62 bilhões e deve perder 300 mil postos de trabalho, de acordo com um estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

  • Fronteiras fechadas

    A restrição à entrada de brasileiros na União Europeia tem se desenhado como uma possibilidade real, segundo reportagem do "New York Times". Ruim para quem pretendia visitar o exterior, mas deve ajudar a impulsionar o turismo local.

  • Retomada

    Apesar da queda no faturamento em 2020, o futuro é menos desastroso. Os ganhos em 2021 com o turismo devem alcançar R$ 259,4 bilhões, valor 4,2% inferior ao patamar de 2019, segundo o estudo da FGV Projetos.

  • Novos protocolos

    A perspectiva de um "novo normal" em que distanciamento terá de ser respeito o todo, assim como o uso de máscaras é previsto como item cotidiano nos próximos meses, exige a criação de protocolos e adaptações.

Lucas Ramos Mendes/Fazenda San Francisco

Turismo aliado à preservação

Destinos de natureza no Brasil, como os parques nacionais, sofrem com falta de políticas públicas, embora tenham um tremendo potencial de turismo responsável. Em muitas regiões, o turismo funciona como um aliado na preservação do meio ambiente e envolve uma longa cadeia de pequenos prestadores de serviço, como guias, motoristas e gente que aluga suas casas e prepara refeições.

"A maior distribuição de renda dentro do turismo acontece justamente no turismo de natureza porque existem muitos serviços nos pacotes", explica Jota Marincek, proprietário da agência Venturas Viagens. "Muitas vezes, fazemos o papel que deveria caber ao estado de fazer a visitação ordenada dos destinos. Os guias ajudam a controlar o acesso, a manter a limpeza das trilhas e dos atrativos."

Com a pandemia, Jota teve que dispensar quase metade de seus 20 funcionários. "É muito triste", disse. A expectativa do mercado, no entanto, é que haja uma procura grande por destinos de natureza. O desafio é descobrir a hora certa de voltar a vender e divulgar seus roteiros, sem colocar em risco as comunidades.

"Todo o dia toca o telefone com agências de viagem querendo saber dos nossos produtos. É nítido o interesse", contou Jota. Ele planejou treinamentos online gratuitos para mostrar aos agentes como funcionam os destinos de natureza, geralmente mais complexos que destinos urbanos ou de praias."Alguns poucos clientes também ligam e planejam viagem para daqui a seis meses. E tem outros que querem viajar agora. A gente não encoraja, não. Ainda não é a hora. Existe uma responsabilidade social muito grande em evitarmos a interiorização do vírus para locais remotos e sem grande estrutura de saúde."

Arquivos Fazenda San Francisco

Uma nova hospitalidade "à la" brasileira

Enquanto o turismo não reabre, o momento é de preparação dos protocolos de segurança, como instalação de proteção na recepção de pousadas, compra de equipamentos de proteção pessoal e remanejamento nas frotas de transporte. Veículos que levavam 40, agora devem levar metade para manter o distanciamento.

Para o guia pantaneiro e observador de passarinhos Edir Alves da Silva, há uma certa preocupação com a quantidade de regras que serão necessárias para a volta dos turistas. "A reabertura pode ser um tiro no pé, mas todo mundo vai ter que arriscar, todo mundo tem contas a pagar", disse Edir, guia desde 2006.

"Com o distanciamento, a falta de contato e aquele tapinha nas costas, talvez fique difícil de transmitir a energia, de ficar à vontade. Vamos ver", disse Edir, que trabalha na Fazenda San Francisco e tem saído sozinho para observar e fotografar aves. "Sinto falta de compartilhar a beleza com meus amigos, com os turistas. Estamos numa época muito boa aqui."

Na semana passada, a propriedade recebeu a visita ilustre de um tamanduá-bandeira, ao abrirem os quartos dos hóspedes para arejá-los. "Foi algo inédito, muito legal", disse.

"Achei que até as araras estão sentindo falta de gente", brincou Carolina Coelho, diretora de turismo da Fazenda San Francisco, no Pantanal, sobre as dez aves azuis que moram na propriedade de 14,8 mil hectares, num espaço de reabilitação.

Fernanda Ezabella/UOL Fernanda Ezabella/UOL

Jalapão: Férias para as dunas

Pela vastidão do parque estadual do Jalapão (TO), animais que faziam raras aparições começaram a dar as caras com mais frequência, como veados, cobras, lobos-guará, emas e tatu-peba. Numa cachoeira em Taquaruçu, uma equipe de monitoramento chegou a avistar cinco serpentes achatadeiras venenosas num único dia.

"Dificilmente se vê uma serpente na água. E com essa frequência, não é normal. A gente julga que isso e a aparição de outros animais é por conta da ausência do fluxo turístico", explica o guia Paulo Rodrigues Alves, que leva viajantes pelas dunas e fervedouros do Jalapão desde 2008.

"Aqui os atrativos são bem conservados, mas a natureza está intacta faz meses. O Jalapão está se renovando. Dá para ver algumas diferenças nesse descanso."

Mas o sumiço do turista trouxe problemas para a região: aumentou a fragilidade dos guias autônomos e das comunidades mais carentes que cuidam dos viajantes e que vivem do artesanato. "A realidade para quem depende de turismo não está nada boa. Estamos 100% parados e passando dificuldades", disse Paulo.

O guia ajuda numa campanha para levantar fundos para a compra e distribuição de cestas básicas para as pessoas da região. Já foram distribuídas cerca de 500 cestas com cinco toneladas de alimentos. A campanha pode ser encontrada no perfil do Instagram @coronadobem063.

Para Gállery Albino de Araújo de Araújo, dono da agência de viagens Jalapão Selvagem, a pandemia tem sido uma tragédia para a economia e uma benção para a ecologia. Frequentador do parque há 20 anos, ele nota que havia um desgaste nas famosas dunas, um dos lugares mais cinematográficos para se ver o pôr-do-sol.

"Com certeza o fim frenético de carros e o fluxo constante de pessoas nas dunas vai dar uma nova perspectiva de vida, mesmo que momentâneo", disse Gállery.

Fernanda Ezabella/UOL Fernanda Ezabella/UOL

Lençóis: Cidade fechada

Uma barreira foi montada na única estrada que leva à cidade de Lençóis, no coração da Chapada Diamantina (BA), para proibir a entrada de turistas forasteiros e evitar a chegada da Covid-19, como aconteceu em municípios vizinhos. Agora, só passa quem tem endereço fixo. A iniciativa deu resultado: a cidade continua sem casos confirmados da doença.

Com 11 mil habitantes, Lençóis vive do turismo: são 150 pousadas e hotéis, mais de 60 restaurantes, 250 guias e umas 30 agências de turismo. Da noite para o dia, tudo fechou. Virou uma cidade fantasma.

Uma vaquinha online está ajudando um grupo de 20 guias locais e já levantou cerca de R$ 14 mil. Uma empresa doou para a população 900 cartões de débito com 150 reais cada, e muitos moradores conseguiram sacar o auxílio emergencial de R$ 600. Vaquinha da Chapada: https://abacashi.com/p/sos-guias-chapada-diamantina

"Mas a preocupação é até quando vamos ficar dependendo de ajuda?", se pergunta Vanderlan Barros de Oliveira, guia há 28 anos. "A situação é crônica financeiramente, e o grande problema é a falta de perspectiva. Estamos pensando em 2021."

Já a natureza tem feito seu trabalho fechando com vegetação algumas trilhas do parque, com ajuda das chuvas recentes. "A natureza agradece, com certeza. Dá uma respirada", disse Vanderlan, citando também algumas atrações com alta frequência de visitantes.

A Fazenda Pratinha, por exemplo, no município de Iraquara, é um dos pontos mais visitados da Chapada. Recebia cerca de 800 turistas por dia para uma série de atrativos, como tirolesa, pedalinho, canoagem e flutuação. A reabertura deve acontecer com apenas 200 por dia, pelo menos no início, explica Eriton Solon, gerente administrativo da propriedade de 600 hectares.

"Desde a abertura 30 anos atrás, nunca ficamos sem um fluxo de pessoas. Tem sido um tempo legal para o meio ambiente", disse Eriton. "Lugares que não estão sendo mais pisoteados, a natureza nativa vai voltando. A vegetação do fundo do rio também está crescendo."

Não vai mais existir alta temporada. O público vai querer evitar concentração de gente numa data só e vai buscar um turismo mais privativo. Uma família, por exemplo, vai preferir um carro em vez de uma van cheia. E vai quer ir para a natureza onde não tem tanta gente. Pode ser algo positivo para nós.

Vanderlan Barros de Oliveira, guia na Chapada Diamantina

Welton Marllos Neves Conceição/Arquivo pessoal Welton Marllos Neves Conceição/Arquivo pessoal

Sem fonte de renda, aldeia pede doações

As lanchas que levavam 200 turistas por semana à aldeia Kambeba, em Três Unidos, a 60 km de Manaus (AM), sumiram do rio Cuieiras, um afluente do rio Negro, desde o início da pandemia. A comunidade de 35 famílias perdeu sua principal fonte de renda e a substituiu pelo medo do novo coronavírus. Praticamente todos os 106 moradores contraíram o vírus.

"É uma recuperação muito lenta, mas estamos melhorando", disse Neurilene Cruz da Silva, técnica de enfermagem e filha de lideranças locais. "Tudo se transformou. Enquanto as pessoas estão tristes, os animais estão felizes. Os pássaros estão mais à vontade de voar na beira dos rios porque não tem lancha, nem barcos para eles terem medo."

Uma vaquinha online para ajudar a aldeia atingiu a meta de R$ 5 mil, e a comunidade ainda precisa de ajuda, principalmente para que alimentos e medicamentos cheguem sem que ninguém tenha que ir até Manaus, um dos epicentros de Covid-19. Doações podem ser enviadas no nome de Neurilene Cruz da Silva (Bradesco, agência 3734-6, conta corrente 07423-3, CPF 901.829.792-53).

Quem visita a região todos os anos é o coordenador de viagens pedagógicas Welton Marllos Neves, do Rio Janeiro. "Levo sempre meus alunos lá. O lugar é fantástico", disse Welton, que é também professor de física.

Para o pós-pandemia, ele teve de começar a olhar para roteiros alternativos, que fossem mais próximos do Rio, pouco visitados e com grande potencial turístico. Um exemplo é o trajeto conhecido como Caminhos de Darwin, inspirado no percurso que o naturalista britânico fez no século 19, passando por diversas cidades do estado do Rio.

"A ideia é recomeçar a fazer com escolas e oferecer como opção de passeios guiados de motos", disse Welton, citando um meio de transporte mais apropriado em tempos de Covid-19. "Queremos mostrar o interior do Rio para um público que conhece só o caminho para Búzios e não conhecem as belezas, histórias e culturas dos Caminhos de Darwin."

Getty Images/iStockphoto

Qual seu próximo destino?

Análises sobre o cotidiano em isolamento têm pipocado desde as primeiras semanas de quarentena. Todos os aspectos da vida humana acabaram sendo alterados de alguma maneira, do modo como nos relacionamos, ao que comemos, como trabalhamos e estudamos.

Reflexões mais profundas sobre a importância da família e dos amigos têm ganhado força, assim como uma certa introspecção. O empresário Jota Marincek é um dos que aproveitou o tempo em casa para curtir as filhas e praticar ioga com mais frequência.

A pandemia mudou até a relação dele com o turismo. Proprietário da agência Venturas Viagens e acostumado a estar sempre na estrada, ele planeja sua primeira viagem pós-pandemia e sonha apenas com algumas montanhas no horizonte. "Antes eu precisava de destinos muito impactantes para me envolver, como Petar, Jalapão, Chapada Diamantina. É na veia, ligação direta com a natureza", disse.

"Agora, vou ficar feliz de poder contemplar qualquer paisagem natural. Pode ser aqui do lado de São Paulo mesmo. Mas quando puder, quero ir para a Serra da Canastra."

Enquanto isso...

Tem quem não se abalou

No Parque Nacional do Iguaçu, as 28 onças-pintadas residentes aparentemente nem sequer notaram o sumiço dos 168 mil turistas que visitam as cataratas por mês.

O parque, que reabriu seus portões após quase três meses fechado, tem 180 mil hectares, mas a parte de visitação é bastante restrita, menos de 100 hectares. Ainda que seja tarefa difícil, é possível avistar uma onça-pintada num passeio pelas cataratas.

O projeto Onças do Iguaçu possui cerca de 50 câmeras espalhadas no parque para monitorar as onças-pintadas, cujos números dobraram nos últimos dez anos. "O padrão de deslocamento segue o mesmo de antes da pandemia", disse Yara Barros, coordenadora executiva do projeto.

"A onça é um predador de topo de cadeia, e você só consegue manter no longo prazo populações que estejam em ambientes saudáveis", contou Yara, explicando que a onça-pintada do Iguaçu é a única que tem se multiplicado na Mata Atlântica.

O grande impacto da pandemia tem sido no trabalho com as comunidades dos 14 municípios ao redor do parque, com mais de meio milhão de pessoas. "É um braço muito forte do nosso projeto", explica Yara, citando uma série de programas sociais, como Onça na Escola e Papo de Onça, feito com moradores nas áreas rurais para conversas sobre segurança e manejo.

"Queremos transformar medo em encantamento. Porque o medo que as pessoas sentem das onças é uma grande ameaça. Tudo que dá medo, você quer afastar, quer matar. Queremos tirar o medo da equação e mostrar que animal magnífico que é."

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