Dois anos de isolamento

Em 1991, pesquisadores se fecharam numa redoma de vidro. Os resultados podem ajudar a compreender o presente

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Los Angeles (EUA) John Miller/AP

"Aprendi que nada levanta a moral como uma boa refeição", diz a inglesa Sally Silverstone, após meses vivendo em isolamento com outros sete colegas, num ambiente cada vez mais degradante. Baratas invadiam os cômodos, faltavam alimentos, e o grupo sofria com uma queda misteriosa de oxigênio.

Mas os bolos de Silverstone eram um sucesso, ainda que extremamente difíceis de fazer sem manteiga e açúcar. "Fizemos vinho de banana e acredito que poderia um dia ficar bom. No entanto, assim que tem álcool, não dura nada", ela continua, sobre seus colegas sedentos.

Calma! Silverstone não vem do futuro apocalíptico com uma lição de sobrevivência para nossas quarentenas de Covid-19. Ela vem de 1991, quando um grupo de visionários decidiu construir uma gigantesca redoma de vidro no meio do deserto do Arizona (EUA) e jogar lá dentro oito aventureiros para sobreviver por dois anos seguidos.

Foi a mais longa experiência científica de confinamento humano, no maior laboratório ambiental do mundo. O projeto traria diversas descobertas sobre sistemas fechados e também inspiraria a criação do programa de TV "Big Brother". Mas seu principal objetivo era muito mais nobre: criar biosferas autossustentáveis para levar ao espaço em nossas viagens interplanetárias.

O resultado foi um fracasso épico. Ou não, dependendo de com quem você conversa. Os criadores do experimento, um bando de ecologistas engenhosos que se chamavam de "sinergistas", acabaram expulsos do projeto em 1994.

O espaço existe até hoje, uma estrutura colossal de vidro isolada entre as montanhas de Santa Catalina, e recebe diversas pesquisas, inclusive do Brasil. Mas não há ninguém morando lá dentro.

Um novo documentário relembra as origens dessa odisséia humana de US$ 200 milhões no começo dos anos 1980, duas décadas antes de Elon Musk fundar a SpaceX e voltar a sonhar com a colonização de Marte.

"Faz parte do destino humano, somos uma espécie de exploradores", disse a Ecoa Mark Nelson, um dos oito pesquisadores isolados em 1991.

Aprendemos rapidamente que não existem ações pequenas ou anônimas. Tudo tem consequência. Foi a grande revelação para mim, descobrir essa conexão profunda que sentimos com a Biosphere 2. Acabou com a fantasia de que somos de certa forma separados da nossa biosfera. Somos parte integral dela e temos papéis a cumprir para mantê-la bonita, diversa e saudável. Dava muito prazer plantar nossa comida sem causar danos à nossa biosfera.

Mark Nelson, um dos oito pesquisadores isolados por dois anos, co-autor do livro "Life Under the Glass"

Fotos de arquivo cortesia de Ecotechnics.edu Fotos de arquivo cortesia de Ecotechnics.edu

O planeta Terra numa garrafa

Em 26 de setembro de 1991, oito pioneiros se trancaram na redoma de vidro e aço de 1,27 hectare (cerca de um e meio campo de futebol), completamente vedada ao exterior. Foram quatro anos de construção, na cidadezinha de Oracle, a 50 minutos de Tucson, no Arizona. O espaço ganhou o nome de Biosphere 2, já que a biosfera 1 é o planeta Terra.

Dentro, foram montados diversos ecossistemas, como uma mini savana, uma mini floresta tropical e um mini oceano com centenas de recifes de corais, sem contar plantações orgânicas de arroz, feijão, trigo, banana, etc., responsáveis por 81% da dieta dos "quarentenados", apelidados de "biospherians".

Havia também um sistema de reciclagem para praticamente todos os resíduos, embora não existisse papel higiênico (eles usavam um chuveirinho comprado num catálogo de produtos da Arábia Saudita), nem absorventes - as mulheres usavam copinho de coleta.

Na cerimônia de entrada, os quatro homens e quatro mulheres vestiam uniformes azuis, um macacão com cara de fantasia, para fazer bonito frente às câmeras do mundo que cobriam a empreitada ao vivo, como se fosse um grande lançamento de foguete. O visual astronauta tinha sido repetido antes, em versão vermelha, para as imagens de divulgação. De fato, o projeto tinha cheiro de golpe publicitário, mas em sua origem estavam grandes questões da humanidade.

Arte/UOL Arte/UOL

"Se queremos ir para a Lua e para Marte, precisamos aprender a fazer uma biosfera", explica John Allen, um dos criadores da Biosphere 2, no documentário "Spaceship Earth" (Espaçonave Terra), lançado online em plena quarentena, após estreia no festival Sundance.

O nome do filme é inspirado no clássico da literatura ecológica "Manual de Operação para a Espaçonave Terra" (1968), de Buckminster Fuller (1895-1983), um arquiteto, poeta e futurista americano que fazia a cabeça de Allen e seus colegas por trás do projeto.

"Bucky [Fuller] era uma brisa refrescante de pensamento alternativo", explica Mark Nelson, um dos oito que moraram na Biosphere 2 e relançou neste ano uma nova edição do livro sobre sua aventura de dois anos, "Life Under the Glass" (ed. SynergeticPress), em conjunto com duas parceiras de confinamento.

"Uma das metáforas de Bucky era de que vivemos neste planeta incrível e precisamos usar nossos cérebros para aprender a operá-lo porque não existe um manual. Então, em nossa missão, estávamos literalmente criando um manual para uma pequena biosfera."

A equipe tinha 64 projetos de pesquisas para realizar na Biosphere 2 durante a estadia e mais de mil sensores para monitorar a atmosfera. Apesar de fechados, eles se comunicavam com o exterior por telefone e videoconferências. O espaço virou a segunda atração turística do Arizona (perdia apenas para o Grand Canyon), e turistas podiam tirar fotos através do vidro e comprar camisetas na lojinha oficial.

Quando finalmente as portas da Biosphere 2 se fecharam naquela manhã de 1991, a botânica e "biospherian" Linda Leigh se dirigiu para a floresta tropical e fez chover. "Foi um alívio quando as câmeras pararam de rodar", ela lembra, cansada da atenção constante da mídia, provocada com ajuda de assessores de imprensa contratados de Los Angeles. "Fui para a região da qual era responsável e liguei a chuva. Queria lavar o ar, lavar tudo e começar uma vida nova."

A escolha dos oito "biospherians" levou cerca de um ano e reuniu gente de habilidades diversas: biólogos, botânicos, um médico, especialistas em solo e agricultura, um técnico de sistemas. O mais novo tinha 27 anos, e o mais velho, 67. Havia dois casais, um deles formado durante o confinamento. Eles continuam juntos até hoje.

Por dentro da redoma

Não tinha um tipo de pessoa, não escolhemos oito clones. Não era algo previsível. Procuramos por pensadores livres. Automaticamente eliminei as pessoas que seguiam outras pessoas.

John Allen, numa gravação da época, recuperada no documentário "Spaceship Earth"

Fotos de arquivo cortesia de Ecotechnics.edu

Dicas de sobrevivência

O que o "biospherian" Mark Nelson tem de conselhos para enfrentarmos nossas quarentenas?

  • Crie ocasiões especiais

    "Morar com sete pessoas, mesmo numa biosfera tão grande e diversa, foi desafiador, difícil. Mas toda vez que tinha um banquete, uma festa ou conseguíamos fazer álcool ou café com nossas plantinhas, toda a tensão do grupo desaparecia."

  • Gere gentileza

    "Seja gentil com você mesmo e com tudo ao seu redor, seus móveis, seus gatos. Será uma alegria sair da pandemia e poder tocar seus amigos, ficar próximo. Espero que seja um choque que fará as pessoas apreciar ou repensar como tratam as outras pessoas."

  • Procure a natureza

    "Arranje uma ou duas plantas, plante alguma coisa ou se apaixone pelas árvores que você vê pela janela ou pelas caminhadas pelo bairro. Qualquer pessoa na natureza se sente melhor."

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Quem eram os "sinergistas"?

John Allen era um homem carismático e certamente faz lembrar um líder de culto. Ele se diverte com a comparação, mas era de fato o centro dos "sinergistas", um grupo que começou no espírito da contracultura de San Francisco nos anos 1960. Mas não ouse chamá-los de hippies.

"Queríamos fazer algo que fosse durar", lembra Kathelin Gray, uma das "sinergistas" originais, no filme "Spaceship Earth". "Então a gente não tomava drogas, não daria certo. Um dia, sentamos na sala e nos perguntamos: o que vamos fazer? Pensamos em arte, em teatro, em negócios, ciência. Até que alguém disse: 'Vamos fazer tudo!'. Ok, vamos!"

O grupo de amigos logo se cansou da cena californiana e debandou para o Novo México, onde estabeleceu uma ecovila chamada Synergia Ranch. Aos 91 anos, Allen mora lá até hoje com Gray e outros membros remanescentes. O primeiro projeto em conjunto foi a criação da companhia Theater of All Possibilities e logo veio a ideia de montar um barco do zero, sem que ninguém tivesse qualquer experiência com construções do tipo.

Com o barco "Heraclitus", passaram a viajar o mundo realizando projetos culturais e ecológicos. Fizeram performances na Amazônia peruana, nos desertos da Austrália e nas florestas da Nigéria. Estudaram baleias na Antártica, ajudaram a reflorestar uma região de Porto Rico e conduziram uma documentação de história oral pelo mar Mediterrâneo.

O dinheiro para essas aventuras vinha do bilionário filantropo Ed Bass, um ecologista cuja riqueza crescia nos poços de petróleo nos EUA. O texano investia em terras para o grupo, que em troca aumentava o valor da propriedade criando projetos. Assim fizeram um hotel em Katmandu e montaram uma galeria de arte alternativa em Londres.

"Éramos bem capitalistas", brinca Allen no documentário, rindo. "Começamos com projetos pequenos, e as respostas eram fáceis. Mas eventualmente você precisa fazer coisas mais complexas."

A ideia de fazer do espaço a nova fronteira dos sinergistas veio em 1981, numa das conferências do Institute of Ecotechnics, uma organização focada em harmonizar ecologia com tecnologia, fundada por um membro do grupo, Mark Nelson, que viria a se tornar um dos "biospherians". Um arquiteto convidado falou da possibilidade de criar um mini mundo dentro de uma espaçonave.

"Adorei essa ideia de ficção científica sem ficção. Era como 'Silent Running'", diz Nelson, sobre o filme de 1972, onde um homem cuida do último refúgio de vida terrestre numa estação espacial.

Virei parte da biosfera, literalmente. Quando eu respirava, meu CO2 alimentava as batatas doces que eu plantava. E nós comíamos muita batata doce, muita. E essas batatas se tornaram parte de mim, comecei a ficar laranja de tanta batata doce. Eu literalmente estava comendo o mesmo carboidrato de novo e de novo. Estava comendo eu mesma, de certa maneira bizarra.

Jane Poynter, uma das "biospherians", numa palestra do TED em 2009

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Como a vida era possível lá dentro

  • De onde vinha a energia?

    De geradores movidos a gás natural e diesel localizados fora da Biosphere 2

  • De onde vinha a água?

    Entre 4 mil e 8 mil galões de água eram coletados por dia via condensamento. Um sistema ultravioleta de peróxido de hidrogênio era usado para matar bactérias.

  • Quem controlava a temperatura?

    Duas cúpulas chamadas de "pulmões", conectadas à redoma por túneis, serviam de diafragmas para ajustar as pressões e temperaturas da atmosfera.

  • De onde vinha o entretenimento?

    Cada "biospherian" tinha um apartamento de dois andares com TV, vídeo cassete, rádio e tocador de CD. Uma biblioteca trazia centenas de livros de arte, ciência, filosofia e literatura.

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Cadê o oxigênio que estava aqui?

Os oito "biospherians" completaram a missão de dois anos, mas não sem grandes perrengues e ajustes ao plano original, além de alguns escândalos amplamente cobertos pela mídia. Uma "biospherian" foi acusada de contrabandear comida, enquanto ex-funcionários vazavam segredos e disputas internas, como a instalação de um purificador de dióxido de carbono.

O principal ajuste foi quando tiveram que introduzir oxigênio extra em janeiro de 1993, após meses de quedas inesperadas no nível dentro da redoma, a ponto de poder causar danos cerebrais. O normal é 20% no nível do mar, e a biosfera artificial chegou a registrar 14%. Os sintomas variavam de falta de ar a dor de cabeça e dificuldades para dormir.

A volatilidade de gás carbônico foi outro problema, causado em parte pelo solo rico de material orgânico e pelo concreto usado nas paredes e estruturas da biosfera — o concreto sequestrava gás carbônico e impedia que as plantas o transformassem em oxigênio. A descoberta fez a equipe pensar nos efeitos do aumento de gás carbônico no planeta em interação com nossas florestas de arranha-céus de cimento.

"As bactérias usavam muito oxigênio [no solo rico em material orgânico], diminuindo os níveis de oxigênio. Elas liberavam gás carbônico que ficava quimicamente ligado ao cimento. Isso quebrou o ciclo", explicaram os cientistas David Tilman, da Minnesota University, e Joel E. Cohen, da Rockefeller University e Columbia University, que escreveram em conjunto numa análise da Biosphere 2 para a revista "Science", em 1996.

A dupla concluiu que o experimento havia sido um fracasso. "A empreitada ilustrou dramaticamente que ainda não sabemos replicar os serviços de suporte à vida que a mistura de populações nos ecossistemas naturais oferece gratuitamente", escreveram.

Para os "biospherians", não tinha essa de fracasso. A Biosphere 2 havia sido planejada para durar 100 anos, com muitas missões similares. Essa primeira era apenas uma espécie de teste, defende o "biospherian" Mark Nelson. "Aprendemos muito com as coisas que deram errado. A surpresa foi ver que boa parte da Biosphere 2 operou como pretendido", disse Nelson.

Uma das grandes surpresas entre os biomas instalados na redoma aconteceu na transformação do deserto de névoa, inspirado no Golfo da Califórnia. Em dois anos, o cenário mudou de suculentas para um ecossistema de arbustos e gramas. Já a floresta viu suas jovens árvores dobrarem de tamanho, enquanto 75% dos corais do mini oceano sobreviveram.

Ainda que inspirado em viagens espaciais, muito do que foi aprendido na redoma foi aplicado por aqui mesmo. Ao final da missão, Nelson usou suas experiências no sistema de reciclagem de resíduos para criar a empresa Wastewater Gardens e levou para diversos países sua solução ecológica que usa zonas verdes para tratamento e reutilização de esgotos.

Tínhamos biomas selvagens lá dentro, e ninguém podia tocá-los. Se ficássemos sem comida, não íamos entrar na savana e plantar, ou cortar a floresta tropical para cultivar soja. Esses biomas são blocos vitais da biosfera para manutenção dos ciclos da água e de uma atmosfera saudável. Foi um projeto otimista para mostrar que os seres humanos podem descobrir como viver de maneira saudável. É o drama do nosso tempo no século 21.

Mark Nelson, um dos oito "biospherians"

Outras biosferas espaciais

Mais projetos confinaram humanos para o estudo de ambientes sustentáveis fechados

Reprodução/NASA

NASA Living Pod

Em 1960, a agência norte-americana colocou quatro astronautas numa cápsula fechada, sem contato com o exterior e data de saída. O experimento durou menos do que o esperado, apenas quatro meses, após o sistema de filtragem ficar entupido com cabelos e unhas, poluindo o ar com resíduos.

Nikolay Bugreyev

BIOS-3

Nos anos 1970, um instituto russo na Sibéria construiu o mais avançado sistema fechado do mundo, palco de 10 missões com até três cientistas a bordo. A mais longa durou seis meses. O experimento usava algas para reciclar o ar, mas importava parte da comida e armazenava resíduos sólidos.

Damir Sagol/Reuters

YUEGONG-1

Conhecido como "Palácio Lunar 1", foi construído em Pequim para simular missões de longa duração da agência espacial chinesa. Em 2014, três cientistas ficaram três meses no espaço de 160m2, cuidando de pequenas plantações e comendo minhocas como fonte proteica. A China quer construir uma estação de pesquisa na Lua.

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Famintos, sufocados e felizes?

Além da falta de oxigênio, havia também falta de alimentos. As plantações não eram tão produtivas, pioravam no inverno e os estoques eram atacados por exércitos de ácaros, formigas e baratas. Para tentar conter as pestes, foram introduzidos novos insetos, como uma vespa.

Às vezes, o menu era apenas salada de beterraba, sopa de beterraba e beterraba pura. Das 25 espécies de animais levadas, 19 foram extintas, como os porcos, cuja carne foi congelada para os jantares especiais de domingo. Havia também cabras, galinhas, peixes e tartarugas.

"A dieta era baixa em caloria, mas rica em nutrientes. Raramente ficávamos doentes", afirma Nelson. "Saímos mais saudáveis do que entramos. E passamos nos exames psicológicos feitos ao final, parecidos com os testes de astronautas."

Famintos, sem ar e trabalhando sem parar para manter vivo seu pequeno mundo, as tensões sociais se escalavam. "A gente se odiava. Mas nunca perdemos o respeito pelo compromisso de todos de fazer a biosfera funcionar", lembra Nelson. "Era impensável fazer algo para prejudicar o trabalho do outro, porque entendíamos que a biosfera era nosso bote salva-vidas."

Ainda que o cenário fosse desesperador, havia vitórias e o sentimento de que as próximas missões seriam cada vez melhores. Sally Silverstone, que em 1993 lançou um livro com as receitas dos "biospherians", se voluntariou para continuar ao fim dos dois anos.

"Não queria sair", ela diz no "Spaceship Earth". "Meu sistema agrícola estava realmente ficando bom, estava maturando. As coisas estavam indo bem e queria saber o que aconteceria depois."

Para o diretor do documentário, Matt Wolf, o projeto foi de fato um sucesso. "Talvez o fracasso é por não existir mais da maneira como foi planejado", disse Wolf num evento online para divulgar o filme. "Havia algo de magnífico na Biosphere 2, mas não provou ser sustentável por causa de forças econômicas."

O mantra que tínhamos era: 'você está num vagaroso barco para a China'. Traga todos os livros, filmes e coisas que você acha que nunca consegue tempo para investir. Uma das minhas grandes leituras foi 'Walden', de Thoreau. Ele ficou uns dois anos plantando seus feijões, fazendo suas coisas e a gente sabe que seu mantra era: 'Simplifique, simplifique, simplifique'.

Mark Nelson, um dos oito "biospherians"

Reprodução

Fim das missões tripuladas

Ed Bass, o filantropo do petróleo, foi o grande investidor da Biosphere 2. Sua expectativa era um dia poder licenciar a tecnologia de pequenos biomas para outras regiões e, quem sabe, no futuro, para nossas colônias interplanetárias.

Ele foi também seu grande vilão, ao tirar Allen e sua trupe do controle da mesma, em 1994, no meio da segunda missão tripulada, com novos "biospherians".

Pressionado para mostrar resultados e cansado das polêmicas, Bass trouxe para administrar a Biosphere 2 um jovem investidor chamado Steve Bannon, hoje mais conhecido como ex-estrategista da Casa Branca do governo de Donald Trump, além de um conservador radical negacionista da mudança climática.

Mas não naquela época, quando aparece defendendo a Biosphere 2 e a importância dos estudos do meio ambiente. Ele durou dois anos, quando o espaço passou então para as mãos da Columbia University.

Arquivo Pessoal

Brasileiras na Biosphere 2

A bióloga brasileira Erika Santoro perdeu a conta de quantas vezes mergulhou nas águas da Biosphere 2, um tanque considerado um dos maiores oceanos artificiais do mundo (um pouco maior que uma piscina olímpica). "Ter uma praia no meio do deserto do Arizona era muito legal", lembra a carioca, que trabalhou no local por sete meses em 2019.

"A estrutura parece coisa de filme. Era muito gostoso passear dentro, explorar o lugar. Mas ficar trancado lá por dois anos, é uma loucura. Não sei como conseguiram."

A Biosphere 2 passou a fazer parte da Universidade do Arizona em 2007, após um período sombrio quando quase foi demolida. Ed Bass voltou à cena e doou US$ 30 milhões em 2017 para as pesquisas científicas que agora tomam conta do espaço.

Santoro ajudou na recuperação do mini oceano, que havia ficado parado por um tempo e sofria com excesso de algas. O trabalho fez parte de sua pesquisa de doutorado da Universidade Federal do Rio Janeiro. Sua orientadora é a bióloga carioca Raquel Peixoto, que faz parte do conselho científico da Biosphere 2.

As duas brasileiras desenvolvem uma pesquisa sobre uso de probióticos para proteger recifes de corais e planejam levar corais do Havaí e da Flórida para o tanque do Arizona. Em laboratório, foi possível retardar ou bloquear o branqueamento de corais com uso de probióticos isolados do próprio coral. Agora, a dupla quer testar num ambiente maior e natural, mas onde ainda seja possível controlar as variáveis, como temperatura e ondas.

"Não colocamos nada de novo no ambiente, e sim aumentamos a dose [de probióticos], o que impede o impacto causado pelo aumento de temperatura", disse Peixoto, que estuda probióticos de corais desde 2014 e é professora visitante da Universidade da Califórnia, em Davis.

Hoje, outras 13 instituições americanas e internacionais possuem pesquisas na Biosphere 2. A Johns Hopkins University, por exemplo, participa de um experimento de três anos para testar uma nova teoria sobre quanto tempo a água reside nas encostas e como o movimento da água afeta o transporte de solutos.

O estudo segue mesmo em tempos de pandemia. "Fazemos chover toda terça por oito horas e então coletamos as amostras", explicou John Adams, vice-diretor geral e porta-voz da atual Biosphere 2.

"Não somos um laboratório tradicional, somos um complemento. Podemos fazer experimentos únicos, como criar uma seca na floresta tropical. Somos como um acelerador de partículas, mas para cientistas ambientais."

A lição mais importante [do experimento original] da Biosphere 2 foi aprender como os sistemas biológicos são infinitamente complexos. E independentemente de quanto aprendemos nas últimas décadas, ainda sabemos muito pouco. Nunca vamos conseguir recriar um ecossistema perfeito porque a natureza é brilhante. Suas complexidades estão além das nossas capacidades intelectuais. Podemos entender partes dela, mas não o todo.

John Adams, atual vice-diretor geral da Biosphere 2

Fotos de arquivo cortesia de Ecotechnics.edu

Pandemia 2020: Um experimento oposto?

Há mais de duas décadas trabalhando na Biosphere 2, Adams acredita que uma missão como a de 1991 seria "totalmente possível e necessária" nos dias de hoje. Nem todo mundo concorda.

"Seria extremamente valioso, mas não é nada trivial. Já tivemos conversas com grupos interessados, mas nunca se materializou", disse Adams. Montar uma biosfera perfeita seria tão complicado como reunir um time de cientistas perfeito. "É como a seleção brasileira de futebol. Na teoria, parece ótimo, mas na prática, nem sempre funciona", brincou.

A pesquisadora brasileira Raquel Peixoto, que visitou o local para workshops e reuniões em 2018 e 2019, diz que encararia a missão, embora não por tanto tempo, já que tem marido e três filhos.

Mas ela observa que nesta pandemia do novo coronavírus já vivemos praticamente um experimento ao contrário, com o "sumiço" do ser humano causando queda na poluição de cidades e a volta de animais a antigos habitats.

"Os problemas que vão estourar logo mais por conta das mudanças climáticas poderão ser ainda muito mais graves em comparação às mortes e perdas econômicas causadas pelo vírus", disse Peixoto. "Talvez agora seja o momento de conversar sobre quarentenas e experimentos que possam trazer ideias para vivermos melhor com o planeta e poluir menos."

Para o professor Joel E. Cohen, que escreveu a análise da Biosphere 2 na "Science" em 1996, a abordagem de criação de sistemas fechados mudou: foi de uma única estrutura de grande escala para réplicas menores mais facilmente controláveis. "Deixou de ser um circo para ser um laboratório científico", disse o biólogo matemático.

Ele cita como exemplo o Ecotron, da Imperial College, de Londres, formado por 16 câmaras climatizadas que permitem a reprodução de experimentos e resultados verificados por análise estatística. "Há diversos tipos de sistemas assim espalhados pelo mundo. Dessa maneira, dá para entender as variabilidades e suas consequências, algo impossível de fazer numa única grande biosfera fechada", afirmou.

Para seu colega e professor David Tilman, coautor do texto da "Science", as preocupações de ontem seguem as mesmas de hoje com a montagem de uma missão tripulada na Biosphere 2. "É desperdiçar esforços que deveriam ser concentrados na adoção de tecnologias e estilos de vida para sustentar para sempre a viabilidade da Terra", acredita.

Há muito tempo penso que a Biosphere 2 ofereceu uma lição importante, mas negligenciada, para a sociedade. O futuro da humanidade está inextricavelmente ligado ao futuro da Terra.

David Tilman, cientista da Minnesota University

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