Por um cinema mais preto

Segunda diretora negra brasileira a estrear filme em circuito comercial denuncia genocídio da juventude negra

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Raphael Muller/UOL

A gente tem ali um registro que diz 'isso de fato está acontecendo', não tem como negar que aconteceu [o assassinato de um homem negro inocente pela polícia]. Aconteceu em 87 e acontece hoje. Então a gente tem ali, além das nossas vozes — porque as pessoas não acreditam nas nossas vozes simplesmente —, isso registrado, mais um instrumento para esse combate, para essa luta política e para exigir mudanças.

O que me move é contar histórias. Desde o jornalismo, é conseguir fazer um registro para que outras pessoas possam conhecer essas histórias. Com o audiovisual também é isso e, normalmente, tudo que eu faço está relacionado à questão racial. É o momento de a gente ter os nossos registros, registros dessa memória que é muito oral. É necessário e importante registrar pela nossa ótica (Camila de Moraes)

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Trailer do filme "O caso do Homem Errado"

Cineasta e jornalista, Camila de Moraes tem em seu currículo um alarmante marco histórico. Com o documentário "O caso do homem errado", ela foi a segunda diretora negra a estrear um filme em circuito comercial no Brasil, em 2018. O primeiro — "Amor maldito", de Adélia Sampaio — havia chegado aos cinemas 34 anos antes.

Os vários obstáculos enfrentados por ela e pela equipe durante o processo de produção e distribuição do longa ilustram os motivos por trás desse hiato de mais de três décadas. Foram muitas dificuldades de financiamento e rejeições de festivais até que o filme entrasse em circuito comercial e nos catálogos das plataformas de streaming Spcine Play e Globoplay.

Depois de encontrar o caminho das pedras no audiovisual, Moraes passou a trabalhar para remover pedras no caminho de realizadores negros: assumiu a militância da presença negra no audiovisual, principalmente atrás das câmeras. A sub-representação é gritante: de acordo com uma análise do Gemaa, núcleo de pesquisa da Uerj, há uma ausência total de diretores negros nos filmes brasileiros de grande público produzidos entre 1970 e 2016.

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Herança

Tanto a militância antirracista quanto o audiovisual foram caminhos naturais para Camila. Gaúcha radicada em Salvador, ela cresceu em uma família de artistas e militantes do movimento negro: sua mãe, Vera Lopes, é atriz, e o pai é o jornalista e roteirista Paulo Ricardo de Moraes.

Paulo aparece em "O caso do homem errado" tentando conter as lágrimas ao relatar o horror de ter precisado identificar o corpo do amigo Júlio César de Melo Pinto no IML, em maio de 1987. Operário negro e jovem, Júlio César foi detido por engano após um assalto e executado pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul.

Nascida em abril daquele ano, Camila não conheceu Júlio César. Mas cresceu sabendo da história do assassinato através dos pais, que mantinham um arquivo com recortes de jornal sobre os julgamentos dos policiais responsáveis.

Na época, a comoção extrapolou o luto da família e dos amigos, mobilizou o movimento negro, ativistas pelos direitos humanos e a imprensa do estado e causou indignação na sociedade. Mais de 20 anos depois, a cineasta decidiu reacender a memória sobre o caso em um filme que, mesmo falando do passado, segue reverberando forte no país onde 79% das pessoas mortas pela polícia são negras. Um país onde uma jovem negra grávida de 24 anos, Kathlen Romeu, acaba de ser assassinada em ação policial no Rio de Janeiro.

"Pegamos o episódio do Júlio, um caso específico que ficou conhecido no Rio Grande do Sul, para abordar a questão do extermínio da juventude negra. A gente está falando do Júlio, mas ao mesmo tempo de diversas outras pessoas negras que ainda estão sendo executadas"

Camila de Moraes, Cineasta

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Cinema de quilombo

A ideia para o filme "O caso do homem errado" surgiu em uma disciplina de jornalismo investigativo da faculdade, por volta de 2008. Camila cursava Comunicação no Centro Universitário Metodista, em Porto Alegre, e estava produzindo uma reportagem escrita sobre o episódio de 1987.

Com uma pequena câmera digital, ia também registrando os depoimentos das fontes. Ela já tinha participado da produção de curtas universitários, como "Mãe de gay", e, em certo momento, percebeu que o material poderia render um filme sobre o assassinato de Júlio César.

Foram anos tentando conseguir financiamento, inscrevendo o projeto em editais e buscando apoios para gravar, sem sucesso. Somente em 2016, a partir de uma parceria com a produtora gaúcha Praça de Filmes, foi possível dar início às filmagens.

A essa altura, Camila já tinha se formado e se mudado para Salvador (em 2010, ela foi à capital baiana assistir ao show da cantora Beyoncé. Acabou desmarcando a passagem de volta e ficando por lá definitivamente).

O filme ficou pronto no início de 2017, a tempo de ser lançado no aniversário de 30 anos do assassinato de Júlio César. Foi feita uma marcha da Esquina Democrática, no centro em Porto Alegre, à Cinemateca Capitólio, onde foi realizada a primeira exibição pública de "O caso do homem errado".

Apesar do interesse despertado pelo evento de lançamento, a carreira do filme ainda precisou de muito trabalho para deslanchar. Ele foi recusado em diversos festivais e as negociações com distribuidoras não avançaram, levando Camila a apostar na distribuição independente.

"A gente levou um ano pra compreender que não era que o filme não tivesse qualidade ou que não fosse um bom debate, e sim que, num país racista, havia uma estrutura que colocava alguns obstáculos para esse filme circular", disse a Ecoa. Ela cita a falta de diversidade nas comissões de seleção dos festivais e em outros espaços como um dos nós dessa estrutura racista.

De mesa em mesa de negociação, de estado em estado, o documentário chegou em 2018 a 21 salas comerciais de todas as regiões do país. Depois, ganhou a atenção dos festivais e de outras janelas de exibição, como televisão e streaming.

O aprendizado prático gerado pela distribuição de "O caso do homem errado" fez surgir a Borboletas Filmes, produtora e distribuidora ainda em estágio embrionário, através da qual Camila pretende colaborar para a difusão de filmes como o seu.

"A gente está produzindo sem ter condições para produzir. O que isso faz com as nossas carreiras? Levam anos para que a gente possa dizer que está trabalhando com audiovisual, sobrevivendo do audiovisual, para que a gente consiga ter condições dignas para continuar atuando. O filme trouxe esse viés de que é possível fazer, que a gente tem qualidade, tem técnica, mas que precisa ter recursos financeiros para essas produções. Eu não posso produzir ou distribuir outro filme de forma independente", disse Moraes a Ecoa.

Para Zeca Brito, cineasta e diretor do Instituto Estadual de Cinema do Rio Grande do Sul, o documentário de Camila ocupou espaços simbólicos e mexeu no cenário do cinema gaúcho.

"Foi um filme realizado sem recurso público, de uma maneira muito cooperativa, de quilombo, de pensar coletivamente como enfrentar a engrenagem do audiovisual. Ele tem a relevância de mexer com valores e olhar com uma lupa a história a contrapelo, revisando-a profundamente, sem medo", disse a Ecoa.

Raphael Muller/UOL Raphael Muller/UOL

Movendo as estruturas

A convite de Brito, que assumiu em 2019 a direção do Iecine-RS, Camila foi responsável pela concepção e curadoria do Festival Cinema Negro em Ação, espaço de exibição e formação voltado para realizadores negros, que teve sua primeira edição em 2020.

Segundo ele, trata-se da maior ação afirmativa implementada até hoje no audiovisual gaúcho. Resultou em quase 30 horas de programação em várias linguagens — curtas, longas, videoclipes e videoarte —, exibida na TV e na internet. Além disso, projetos em desenvolvimento puderam estabelecer diálogos com plataformas Netflix e Canal Curta.

Ao criar oportunidades e dar visibilidade para novos realizadores negros, Brito considera que a cineasta gaúcha tem movimentado as estruturas do audiovisual brasileiro.

Os passos de Camila não abrem caminho só para os novatos e tem inspirado até cineastas experientes. Em entrevista a Ecoa, o paulista Jeferson De contou que a presença de "O caso do homem errado" em uma plataforma do porte do Globoplay o levou a querer disponibilizar seu "M8 - Quando a morte socorre a vida" pela Netflix. Com o lançamento nos cinemas adiado devido à pandemia de covid-19, o filme pôde chegar a espectadores de mais de cem países pelo streaming.

"É um trabalho que a Camila faz muito bem: transformar o lugar social em que ela passa, aproveitar as oportunidades e buscar conquistas para o coletivo. É uma característica dela construir as coisas de maneira coletiva e buscar melhorias e respostas, para a sua comunidade mas também para a sociedade como um todo"

Zeca Brito , Diretor do Instituto Estadual de Cinema do Rio Grande do Sul

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